Capriles em campanha na cidade de Barinas. As pesquisas colocam Hugo Chávez na dianteira, com até 20 pontos de diferença, mas ele diz não estar preocupado: "Nunca perdi uma eleição. Não me sinto um predestinado. Mas estou seguro de que, por alguma razão, Deus me pôs aqui," FOTO: MEREDITH KOHUT_2012_WWW.MERIDITHKOHUT.PHOTOSHELTER.COM
O candidato TOCOCHA
Rico, jovem e branco, Henrique Capriles encabeça o movimento Todos Contra Chávez. O presidente só se refere a ele como porcariazinha
Consuelo Dieguez | Edição 69, Junho 2012
Henrique Capriles despiu a camisa azul-carbono molhada de suor e a jogou de lado. Com o dorso branco e liso de músculos definidos à mostra, puxou uma nova camisa, cinza-escura, de uma maleta. Enquanto a abotoava, explicou a origem das peças. “Essas camisas foram feitas sob medida por uma costureira excelente de Caracas. Não foram compradas no Império e nem importadas do Brasil. Olha como vestem bem. Não é preciso ir buscar lá fora o que se pode fazer melhor aqui na Venezuela.”
Acompanhado de um sorriso, o comentário vinha carregado de ironia e crítica ao discurso e à prática de Hugo Rafael Chávez Frías. O presidente venezuelano não passa um dia sem atacar os Estados Unidos, a quem só se refere como “o Império”. Por outro lado, estreitou os laços com o Brasil, de onde a Venezuela importa de tudo, desde produtos de confeitaria até equipamentos e máquinas pesadas, o que gera um saldo a favor da balança comercial brasileira de mais de 3 bilhões de dólares ao ano. Henrique Capriles pretende mudar tanto a relação conflituosa com os Estados Unidos quanto o desequilíbrio no comércio exterior da Venezuela. Para isso, precisa primeiro derrotar Chávez, até agora o favorito na disputa pela Presidência do país. As eleições ocorrem no dia 7 de outubro.
Henrique Capriles Radonski, ou simplesmente Capriles, como é chamado, é um político jovem, de 39 anos. Sua família é dona de uma rede de cinemas e de uma distribuidora de alimentos na Venezuela. Olhos claros, cabelos pretos e largo sorriso de dentes perfeitos, é tido como um homem bonito. Quando caminha pelas ruas, mulheres de todas as idades gritam, à beira da histeria, outras se atiram sobre ele, lhe sapecam beijos e o agarram, a ponto de quase lhe arrancar a camisa (uma das razões para que ele as troque mais de uma vez ao dia).
Em 1998, aos 26 anos, Capriles foi eleito deputado, o mais novo do Congresso, e logo se tornou presidente da Casa. Em 2000, concorreu à Prefeitura de Baruta, município onde mora. Reeleito em 2004, ganhou com 70% dos votos. Em 2008, candidatou-se a governador de Miranda, o segundo estado mais populoso do país, onde fica Caracas, e mais uma vez saiu vitorioso, derrotando Diosdado Cabello, apoiado por Chávez. Pode-se dizer que é um político bem-sucedido.
Numa prévia aberta, na qual votaram 3 milhões de eleitores em fevereiro deste ano, Capriles foi escolhido o candidato da Mesa da Unidade Democrática, a frente oposicionista que pretende derrotar Chávez. Com um discurso moderado, que busca o centro e soa muitas vezes mais técnico do que político, ele venceu adversários de posições mais extremadas, à direita e à esquerda, tornando-se o candidato TOCOCHA – Todos Contra Chávez –, a alcunha com a qual os insatisfeitos com o reinado chavista, que já dura catorze anos, se referem à frente de oposição.
Desde que ganhou as prévias, Capriles roda a Venezuela para se fazer conhecer num país congestionado de outdoors com o rosto de Chávez, ou El Comandante, como ele se autointitula. O candidato da oposição percorre, toda semana, de duas a três cidades, em estados diferentes. Procura visitar moradores em suas casas nos bairros pobres. Nos mais ricos, onde ele já costuma ser o favorito, sua presença é prescindível. Nada se dá ao acaso. Às vésperas das viagens, os organizadores da campanha de Capriles selecionam entre a população local os relatos mais dramáticos, de preferência de desempregados ou subempregados. São eles que o candidato visita.
Capriles ajeitou displicentemente a camisa cinza-escura que acabara de colocar e sentou-se no último banco da van branca que o transportava, junto com assessores e um pequeno grupo de aliados. Tirou do isopor cheio de gelo uma lata de Coca-Cola Light, uma das tantas que tomaria naquele dia, e bebeu com prazer. Voltava da primeira visita casa por casa no bairro El Jardin, na cidade de Barinas, a uma hora e meia de voo de Caracas. Era uma quinta-feira, 10 de maio. Capital do estado de mesmo nome – o mais pobre da Venezuela –, Barinas tinha um significado especial para a campanha oposicionista. Hugo Chávez nasceu e foi criado ali. Quem governa o estado hoje é Adán Chávez, irmão mais velho do presidente. O antecessor no cargo foi o pai deles, Hugo de los Reyes Chávez. Também por isso, a ansiedade dos organizadores da campanha de Capriles era grande.
O candidato desembarcou do jatinho que o levou de Caracas às 11 horas. Já no saguão do aeroporto podia-se sentir a tensão. Os donos da lanchonete, a única do local, foram orientados pelo governo a não abrir as portas. Do lado de fora, um grupo de eleitores esperava o candidato. Em frente, do outro lado da rua, motoqueiros vestindo coletes vermelhos em apoio a Chávez iniciaram um buzinaço. Houve reação. “Todo mundo tem direito a ter seu candidato”, berrou uma senhora, exibindo na direção dos chavistas o cartaz de boas-vindas a Capriles: “A cidade é de todos.” Os motoqueiros aceleraram e entraram buzinando na área do aeroporto. Os organizadores da campanha de Capriles se postaram na frente e pediram energicamente aos aliados que não aceitassem a provocação. Por pouco não houve confronto.
Capriles saiu em carreata com as cortinas da van fechadas. Após circular por quinze minutos numa estrada asfaltada, o pequeno cortejo se embrenhou por ruelas de terra esburacadas, ladeadas por barracos feitos de latão e casebres de alvenaria. A comitiva parou na esquina de uma delas. Um caminhão de som anunciou a chegada do candidato enquanto seu jingle, uma salsa, já soava a toda altura: “Há um caminho, uma esperança, Capriles Radonski, pa’lante, pa’la” (“para a frente, para lá”, na gíria local). Capriles desceu do carro e deu alguns passos. Imediatamente braços femininos o agarraram, dificultando sua caminhada. Com o sol e o calor úmido da região, em pouco tempo ele estava empapado de suor.
O grupo à sua volta naquela manhã, embora barulhento, não somava mais do que 400 pessoas. Capriles não arrasta multidões. Não possui uma oratória vibrante. Seu carisma é reduzido e, se comparado ao do seu opositor, é quase nenhum. Num debate com Chávez, há razões para supor que seria massacrado. O presidente só se refere ao adversário como majunche (algo como “porcariazinha”). O que move o eleitor na direção do candidato da oposição, além do fascínio que exerce sobre as mulheres, é muito mais o sentimento anti-Chávez do que o ardor caprilista.
Luis Vicente León, um homem pequeno e agitado, é o dono do Datanalisis, o maior instituto de pesquisas da Venezuela. No seu escritório, abarrotado de livros e papéis, no 16º andar de um edifício numa das ruas mais movimentadas de Caracas, ele afirmou que é muito difícil traçar um cenário para as eleições de outubro. O quadro, nesse momento, dá a vitória para Chávez. A diferença entre os rivais, medida pelos institutos de pesquisa, vai de seis a vinte pontos, sempre a favor do presidente. Se as eleições fossem hoje, León não tem dúvida de que Chávez seguiria no poder. Pelo Datanalisis, ele tem 44% dos votos e Capriles, 31%. Como na Venezuela não há segundo turno, ganha quem tiver o maior número de votos em termos absolutos.
Seja qual for a diferença entre um e outro, não é isso, na opinião de León, o que mais importa no momento. Segundo ele, as eleições venezuelanas nunca estiveram cercadas de tantas incertezas. A maior delas é o câncer de Chávez. “Tudo hoje no país gira em torno da sua doença. Todo mundo só fala disso. De quando Chávez vai e vem de Cuba, da operação, do substituto, se morre ou se não morre, se tem cura, se é farsa, se é mentira para chamar a atenção”, enumerou. “Se todos estão falando de Chávez e de sua doença, não sobra espaço para que se fale de Capriles nem da própria campanha. Isso aumenta a dificuldade do candidato da oposição.” Para León, a situação de Capriles se compara à de alguém que está tentando conversar em uma discoteca com o som no máximo. “Mesmo que as pessoas queiram ouvi-lo, o barulho impede que escutem o que tem a dizer.”
As circunstâncias que envolvem a doença se desdobram em outras dúvidas. Chávez estará ou não na campanha? Se estiver, em que condições irá concorrer? Se estiver são, León não tem dúvida de sua vantagem. Se doente, as perspectivas mudam. “Se a doença se agravar, Chávez poderá representar só o presente, enquanto Capriles, o futuro. É natural que o eleitor se pergunte se Chávez conseguirá tomar posse e terminar o novo mandato.” Seria, assim, mais fácil para o candidato oposicionista conquistar os indecisos, os chamados “ninis” – ni Chávez, ni Capriles –, que hoje somam mais ou menos 30% dos eleitores.
Agora, se Chávez morrer ou não tiver condições de participar da campanha, o quadro parece ainda mais nebuloso. Não se sabe qual será o substituto capaz de aglutinar em torno de si os vários grupos que disputam espaço no interior do chavismo. Militares, civis, ideológicos, pragmáticos – o guarda-chuva do poder abriga muitas forças heterogêneas. Os militares estão divididos entre os institucionalistas e os que defendem o golpe para permanecer no poder mesmo sem o líder. No cenário de implosão do chavismo há quem vislumbre o risco de convulsão social na Venezuela, com várias forças se digladiando. Mas León não parece apostar nisso: “Chávez será candidato vivo ou morto”, avalia. “Se morto, seu substituto só falará dele, da sua simbologia”, disse. “Por isso, a situação mais confortável para Capriles é concorrer com um Chávez debilitado.”
Qualquer que seja o quadro, a campanha será difícil para Capriles. Chávez tem dinheiro, meios de comunicação e instituições em suas mãos. Pode, por exemplo, entrar em rede nacional de rádio e televisão quantas vezes e quantas horas quiser sem pagar nada às emissoras. Já houve ocasiões em que falou durante dez horas seguidas na tevê. Chávez tem amplo controle sobre o Judiciário e o Conselho Nacional Eleitoral, a justiça eleitoral do país. Dispõe dos recursos do petróleo para distribuir entre os eleitores. Os programas sociais do seu governo são difundidos em painéis gigantescos espalhados pelas cidades, com a foto de Chávez indicando a direção. Um dos slogans mais frequentes é Pa’lante, Comandante – Para a frente, Comandante.
Nem assim o dono da Datanalisis acredita que a candidatura de Capriles esteja morta. “Pela primeira vez é possível um candidato de oposição ter alguma chance contra Chávez. Essa possibilidade nunca existiu em 2006, quando o nome oposicionista era Manuel Rosales.”
Apesar do seu favoritismo, Chávez perdeu a simpatia de muitos venezuelanos nos últimos anos. A estratégia de Capriles de ir ao encontro dos eleitores é a mais acertada quando é preciso enfrentar um opositor onipresente, opina León. “Falar frente a frente com as pessoas, ouvir suas queixas, conseguir transmitir de perto as suas ideias é a melhor maneira de tocar o eleitor”, disse. “É a sua chance de se tornar conhecido.”
Capriles parecia satisfeito com o resultado do seu corpo a corpo com os eleitores naquele dia. Com a van já em movimento, se serviu da quentinha com frango e arroz oferecida por um assessor. Almoçou tranquilamente, fazendo graça com a fotógrafa da revista Time, que queria sua imagem para a capa da revista. “Não vou fazer pose. Isso não é do meu feitio. Pode me fotografar do jeito que você quiser.” Diante da insistência da fotógrafa de que deveria abrir uma exceção, pois se tratava da Time, ele respondeu, sorrindo: “A Time não me dá votos.” Voltou sua atenção para a entrevista. Indagado sobre o efeito que esperava da abordagem que acabara de fazer, mostrou-se otimista. “Minha campanha não é show de tevê. Eu falo diretamente com as pessoas. É assim que tenho vencido eleições. Meu opositor só se comunica por meio da televisão. Num país como a Venezuela, a eleição se ganha nas ruas”, disse. Ao comentar as pesquisas, Capriles afirma que sempre começou em desvantagem e nunca perdeu uma eleição.
Ele admitiu que está fazendo exatamente o que Chávez fez em 1998, quando conquistou pela primeira vez a Presidência da Venezuela. Na época, com apenas 5% dos votos contra a folgada maioria de sua opositora, a ex-Miss Universo Irene Sáez, El Comandante foi para as ruas. Mas o que virou totalmente o eleitorado a seu favor foi a decisão de Irene de se aliar aos dois grandes e desgastados partidos da Venezuela, a Acción Democrática, a AD, e o Partido Social Cristão, o Copei, que se alternavam no poder desde a redemocratização, em 1958. Para concorrer à Presidência, ela havia criado seu próprio partido, o IRENE, Integración y Renovación Nueva Esperanza, que era muito popular entre os venezuelanos. Ao se aliar em seguida com a AD e o Copei, perdeu a identificação com o povo e foi derrotada pela aliança do MVB (Movimiento Quinta República) de Chávez, com alguns partidos de esquerda.
Em seu livro, El Chavismo como Problema, o jornalista Teodoro Petkoff, dono do jornal Tal Cual, analisa a trajetória e as consequências do chavismo para o país. Ele conta que, quando Chávez venceu em 1998, a Venezuela era um país mergulhado numa crise sem precedentes. O presidente Rafael Caldera, que vencera as eleições anteriores com um discurso antiliberal, acabou capitulando e seguindo o receituário do Fundo Monetário Internacional, de corte de gastos e privatizações, na tentativa de corrigir graves problemas econômicos. Não conseguiu. Ao final de seu governo, a inflação estava em 59% ao ano – quando quase todos os países latino-americanos já haviam conseguido baixar os seus índices para um dígito –, o desemprego batia em 16% e o Produto Interno Bruto no primeiro trimestre caíra 8,9%. Numa população de 24 milhões de habitantes, a pobreza atingia 60%. Desse percentual, metade vivia na pobreza extrema.
Antes do declínio, o país havia experimentado um longo período de bonança econômica entre o final dos anos 50 e o início dos 80. Tal ciclo esteve intimamente ligado ao significativo aumento da participação do Estado na venda do petróleo. Até os anos 20, a Venezuela era um país pobre e insignificante no cenário mundial, que vivia da exportação do cacau e do café. A constatação de uma grande reserva de petróleo – a segunda maior do mundo – se deu em 1928, quando companhias americanas, preocupadas com o risco de redução da oferta da Rússia e do México, que atravessavam processos revolucionários, foram buscar alternativas de fornecimento em outros países. O óleo venezuelano garantiu aos Estados Unidos farto fornecimento durante a Segunda Guerra, quando o mundo carecia do produto e os campos do Oriente Médio ainda não haviam sido explorados.
As companhias americanas de petróleo – as “Sete Irmãs”, como são chamadas, entre elas a ExxonMobil e a anglo-holandesa Shell – tomaram conta do país. Todo o petróleo era manejado por elas, que pagavam um percentual ínfimo sobre o que exploravam. Em 1943, o Congresso venezuelano aprovou a Ley de Hidrocarburos, que fixou um imposto sobre a renda do petróleo e estabeleceu um prazo de quarenta anos de concessão para essas companhias. Em 1948, o presidente Rómulo Gallegos determinou que o Estado ficaria com metade do que fosse produzido e exportado como pagamento de royalties. Gallegos seria derrubado pouco depois por um golpe militar. Seu sucessor, o general Marcos Pérez Jiménez, contrariando a Ley de Hidrocarburos, entregou às companhias estrangeiras grandes áreas de exploração e produção.
Em 1959, com a chegada de Rómulo Betancourt ao poder, o país, como diz Petkoff em seu livro, começou a tomar consciência do valor geopolítico de sua condição de grande produtor e exportador petroleiro. Foi a Venezuela quem capitaneou a criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep, no começo dos anos 60, organizando a produção e elevando os preços do combustível. O país enriqueceu. Os ganhos aumentaram ainda mais com a criação da Petróleos de Venezuela, a PDVSA, em 1976, pelo presidente Carlos Andrés Pérez. Sete anos antes das concessões acabarem, ele indenizou as multinacionais eo Estado passou a se apropriar quase que totalmente da renda petroleira. A PDVSA chegou a figurar entre as três maiores companhias de petróleo do mundo. Durante esse período de fartura, o país fez grandes obras, como a usina hidrelétrica de Guri, a segunda maior da América Latina, uma grande siderúrgica, a Sidor, além de fábricas de alumínio. Também se esbanjou muito. A elite venezuelana chegava a fazer compras de supermercado em Miami.
Ainda que os mais ricos ficassem com a maior parte das divisas do petróleo, um pouco desse ganho chegou à base da sociedade. Os níveis de educação, saúde e renda dos venezuelanos aumentaram. Foram erradicadas doenças como a febre amarela e o impaludismo. O último marco dessa era de pujança é o Teatro Teresa Carreño, no centro de Caracas, o maior da América Latina. A impressionante construção de concreto, com mais de 2 mil lugares, acústica perfeita, cercada por jardins e decorada com painéis do artista plástico venezuelano Jesús-Rafael Soto, é uma joia da arquitetura contemporânea. A Venezuela, até o começo dos anos 80, fazia parte do circuito das melhores companhias de ópera, balé e música erudita do mundo. Hoje, o teatro é sistematicamente requisitado para os comícios de Chávez. Caracas, com algumas belas e ousadas construções dos anos 50 aos 80, obras de seus melhores arquitetos, como Carlos Raúl Villanueva – muitas delas bastante danificadas –, desperta o sentimento de nostalgia de um país que poderia ter sido e não foi.
A bonança econômica veio acompanhada de estabilidade política. Desde o início do século XX, o país vivera sob ditaduras civis e militares. O pacto firmado entre a AD e o Copei, os dois principais partidos do país, chamado de Punto Fijo (Ponto Fixo), no qual estabeleceram a alternância no poder, pôs fim aos sobressaltos. A união da classe política advinda do Punto Fijo, em 1958, pôs fim aos movimentos golpistas. A Venezuela foi, ao lado da Colômbia e da Costa Rica, o país latino-americano que experimentou o mais duradouro período de democracia. Para lá imigraram brasileiros, chilenos, argentinos e uruguaios acossados por ditaduras em seus países. Muitos intelectuais estrangeiros, como Fernando Henrique Cardoso, deram aula na Universidad Central de Venezuela, a UCV.
A crise internacional dos anos 80 veio cobrar a conta. Endividada pelos anos de desperdícios e gastos exagerados, a Venezuela rapidamente afundou. Caracas, situada em um vale, onde se destaca a verdejante cadeia de montanhas chamada El Ávila, é cercada por favelas. Em 1989, o país entrou em convulsão. Revoltados com o aumento do gás, da gasolina, da energia e dos transportes decretado pelo presidente Carlos Andrés Pérez, em seu segundo mandato, os venezuelanos desceram dos morros, saquearam e incendiaram a capital num movimento conhecido por “Caracazo”. Estima-se que quase 2 mil pessoas morreram em confronto com as Forças Armadas.
Nos anos 90, a pobreza se acentuou e havia a percepção difusa de que a corrupção havia atingido dimensões inauditas. Carlos Andrés Pérez foi cassado, e Rafael Caldera – rompido com o Copei que havia ajudado a fundar – ganhou as eleições em 1994, concorrendo pela Convergência Nacional. Mas a economia continuou no fundo do poço e a insatisfação popular não arrefeceu, pelo contrário.
Chávez foi eleito com um discurso de recuperação econômica e contra a corrupção. Durante a campanha, prometia na tevê “fritar as cabeças” dos adecos e copeianos, como são chamados os políticos da AD e do Copei. Arregimentou não só a massa pobre. Setores das classes média e alta votaram nele. Teve o apoio de vários veículos de comunicação e da maioria dos intelectuais. Ele, que surgira na cena política nacional em 1992, após uma malsucedida tentativa de golpe militar, assumia a Presidência do país seis anos depois respaldado pelo voto.
Nenhum presidente antes de Chávez teve tantas chances de tirar a Venezuela da crise. Desde que foi eleito até hoje, o preço da gasolina saltou de 10 dólares o barril para mais de 100 dólares. Os ganhos com as exportações de petróleo se multiplicaram. Mas, quatorze anos depois de sua chegada à Presidência, a maioria dos venezuelanos está longe de viver numa sociedade decente. O desemprego segue alto – quase 9% da população de 28,7 milhões de habitantes. A informalidade chega a 45% e a inflação média é de 26% ao ano, cinco vezes mais alta do que a brasileira. Indústrias fecharam, a produção agrícola desabou, o país produz metade do aço e do alumínio que produzia quando Chávez chegou ao poder. A dependência da renda do petróleo aumentou.
Hoje, 95% das receitas de exportação da Venezuela vêm do petróleo, contra 70% em 1998. Se o preço do óleo despencar, a pátria da revolução bolivariana estará diante de uma gigantesca enrascada. Com a crise mundial de 2008, a Venezuela passou oito trimestres em recessão. O PIB recuou 6,1% no começo de 2009. Só em 2011 a economia voltou a crescer, reflexo da estabilização do preço do petróleo e do significativo aumento do gasto público, e não do crescimento do setor produtivo.
O economista José Guerra é o coordenador do programa econômico de Capriles. Num começo de tarde, em Caracas, ele apontou as fragilidades do país. Avalia que o crescimento está comprometido pela inflação alta num contexto perigoso de escassez de produtos. De cada 100, faltam quinze. O Estado controla todos os preços, de alimentos e gasolina a tarifas de celular e hotéis. Muitos estão congelados. Para evitar que a falta de oferta pressione ainda mais a inflação, o governo importa tudo: leite, carne, frango, manteiga, massas, azeites, enlatados, cimento, aço. Boa parte disso sai do Brasil. Os supermercados de Caracas vendem, basicamente, produtos estrangeiros. Até os peixes vêm de fora, apesar da extensa costa venezuelana. Os preços dos alimentos só se mantêm acessíveis graças ao subsídio concedido pelo Estado aos importados. A taxa de câmbio é controlada em 4,2 bolívares por dólar. Mas é um câmbio artificial. No paralelo, o dólar chega a valer de 8 a 10 bolívares. Para se trocar dólares é necessário recorrer ao mercado negro ou trocar a moeda por uma taxa irreal.
Os produtores venezuelanos que necessitam comprar sementes e fertilizantes são obrigados a importar pelo câmbio paralelo, o que aumenta o custo de produção e desestimula o plantio. Em janeiro deste ano, segundo José Guerra, a produção de alimentos caiu 7% em relação a 2010.
Chávez nacionalizou muitas empresas que haviam sido privatizadas, na esperança de aumentar a produção. Não deu certo. Nas mãos do Estado, seu desempenho revelou-se desastroso. A siderúrgica Sidor produz 50% de sua capacidade. As fábricas de alumínio, 40% – uma delas foi presidida por um professor de educação física; outra, por um militar que perguntou pelas minas de alumínio ao tomar posse. Parte desse mau desempenho deriva do apagão elétrico. O país passou por uma severa crise de energia, fruto da falta de investimento em novas hidrelétricas. Nos últimos dois anos, o governo injetou 10 bilhões de dólares no setor para tentar recuperar o prejuízo. Mas, ainda que dê certo, levará tempo para que as novas usinas entrem em operação. O país também sofre com a carência generalizada de material de construção – turbinas, vergalhão, arames, malhas de aço. As três fábricas grandes de cimento foram nacionalizadas e a produção despencou. A Venezuela hoje importa cimento de Cuba.
Guerra continuou com sua radiografia. O setor privado, segundo ele, não investe pelo medo de desapropriação. O governo deve 8 bilhões de dólares aos donos de empresas expropriadas, mas não paga. Parte da nacionalização se deu no estado de Zulia, onde está a maior produção de petróleo. Ali, pequenas empresas que prestavam serviço à PDVSA passaram para as mãos do Estado.
Em 2002, antes da greve petroleira, a companhia produzia 3,5 milhões de barris ao dia. Agora, a produção gira em torno de 3 milhões. O número de empregados da PDVSA, nesse mesmo período, subiu de 25 mil para 100 mil. Alguns trabalham em empresas de alimentos que hoje integram a companhia. A dívida da petroleira passou de 4 bilhões de dólares para 52 bilhões. “Ninguém sabe como a PDVSA se endividou tanto. Aquilo é uma caixa preta”, disse Guerra.
Em 1998, havia 900 mil funcionários públicos no país. Hoje, são 2,5 milhões. É justamente no setor público que ocorrem os maiores conflitos trabalhistas. Todos os dias há protestos de trabalhadores na Venezuela. Chávez criou em Caracas uma milícia própria para conter os descontentes. Os milicianos ficam instalados em barracas de lona espalhadas pelo centro da cidade. O Palácio de Miraflores, sede do governo, um caixotão branco que pertenceu a uma família abastada do século XIX, é cercado por favelas onde convivem jovens desempregados e gangues chavistas. No ano passado, a Venezuela registrou cerca de 20 mil assassinatos, provocados por assaltos, sequestros, tráfico de drogas – um índice elevadíssimo. Nos estados do sul do país, há movimentos guerrilheiros orientados pelas Farc colombianas. “Hugo Chávez faz vista grossa para a guerrilha”, diz Capriles.
“É preciso acabar com a insegurança, com o medo da expropriação e estimular o setor privado a voltar a investir”, afirmou Capriles. E voltou a citar o Brasil: “O Brasil nos vende coisas. E o que nós vendemos para o Brasil? O que fazemos é trazer coisas de lá. Até animais vivos. O que queremos é que os brasileiros venham investir aqui, mas eles só virão se sentirem que há segurança.”
Em 1957, o economista Celso Furtado, designado pela Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – para fazer um estudo sobre a Venezuela, já detectara a sua vocação rentista. O país não desenvolvia um setor industrial para agregar valor à produção petroleira. Acomodara-se com os ganhos fáceis da exploração e venda do óleo. A Venezuela, como Furtado reconhecia na época, era uma economia subdesenvolvida de mais alto nível per capita do mundo, similar à renda per capita de países como a Alemanha. A constatação dessa dependência absoluta do petróleo, sem o desenvolvimento de outros setores da economia, levou o economista brasileiro a escrever um ensaio chamado Subdesenvolvimento com Abundância de Divisas, publicado recentemente pela Contraponto.
Antes de Chávez, o país importava mais dos Estados Unidos. El Comandante mudou o eixo do comércio, aproximando-se de países como Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os Brics. Um estudo feito por Pedro Silva Barros e Luiz Fernando Sanná Pinto, dois economistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, que vivem em Caracas, analisa a maior presença dos Brics no país. Por determinação de Lula, o Ipea firmou um acordo de cooperação com a Venezuela para identificar as áreas em que pode ser desenvolvida uma indústria complementar à brasileira. “É possível promover a integração entre o norte do Brasil e o sul da Venezuela, principalmente nos setores de petróleo, gás, naval e agrícola”, disse Pedro Barros.
A aproximação com os Brics ganhou força na Venezuela com as recentes descobertas de petróleo na faixa do rio Orinoco, que colocou o país na condição de dono das maiores reservas do mundo. O Brasil tem intenção de ser parceiro privilegiado para a exploração nessa área. Hoje, o maior parceiro é a China, que exporta de tudo para a Venezuela e financia obras em troca de petróleo. Já a Rússia tornou-se a maior fornecedora de armas para a República Bolivariana.
Depois que Lula se aproximou de Chávez, o comércio bilateral passou de 900 milhões para 6 bilhões de dólares, segundo o estudo do Ipea. As exportações do Brasil para lá foram de 4,6 bilhões de dólares no ano passado. O BNDES também passou a financiar grandes obras no vizinho, como a extensão do metrô de Caracas e a ponte sobre o rio Orinoco, feita por construtoras como a Odebrecht e a Camargo Corrêa. Como contrapartida, todos os equipamentos, projetos e engenheiros são brasileiros. A deputada oposicionista María Corina Machado me disse, irritada: “Lula considera Chávez o melhor presidente dos últimos 100 anos. Melhor para quem? Para alguns setores de empresários brasileiros.”
Capriles é mais suave. “O Brasil é a sexta economia do mundo. Não podemos prescindir do Brasil”, disse. “O modelo brasileiro é o que eu pretendo seguir”, diz ele, sem nunca fazer a ressalva “caso eu chegue à Presidência”. “OBrasil entendeu a combinação de crescimento com igualdade. Tirou 30 milhões da pobreza gerando emprego.”
O ídolo, porém, despreza seu fã. Naquela semana, a agência Reuters noticiava que Lula havia dado uma chamada no governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que se dispusera a receber Capriles. Dois marqueteiros de Cabral, Chico Mendez e Renato Pereira, participam da campanha do venezuelano, e pediram ao governador que o recebesse. Capriles reagiu à notícia dizendo que não daria ouvido a fofocas. João Santana, o marqueteiro oficial do PT, responsável pelas eleições de Lula em 2006 e de Dilma em 2010, foi contratado por Chávez para coordenar sua campanha.
Capriles busca contornar o incômodo. “Não caio na política pequenina de rejeitar o modelo de Lula só porque ele é amigo de Chávez. Eu tenho todo o direito de gostar do modelo dele.” Lula é popular na Venezuela e, para alguns oposicionistas, sua simpatia por Chávez ajuda a respaldá-lo. Capriles não vê dessa forma. Lembra que Lula já criticou o projeto de reeleição indefinida aprovada por seu oponente.
O governo chavista costuma alardear dados que mostram a redução da pobreza e da desigualdade na Venezuela. O Índice de Desenvolvimento Humano, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que inclui saúde, educação e renda, cresceu 0,5 entre 1998 e 2011. É pouco para a grande propaganda que o governo faz disso, mas muito para quem foi beneficiado.
Pelas ruas de Caracas, cartazes divulgam os feitos do governo: Gran Misión Vivienda, de construção de casas populares; Misión Barrio Adentro, de instalação de postos de saúde nas favelas onde trabalham cerca de 40 mil médicos cubanos (a Venezuela paga ao governo de Cuba com petróleo); Gran Misión en Amor Mayor, de aposentadoria para os que nunca tiveram renda.
“Antes os pobres não recebiam nada”, disse o garçom Juan Paez, enquanto atendia a mesa. E continuou, orgulhoso: “Os Estados Unidos mandavam aqui. Agora nós dizemos não, saiam vocês daqui.” O salário mínimo aumentou e houve uma melhora, ainda que também modesta, na distribuição de renda.
Isso não seria um ponto a ser admirado em Chávez, apesar dos outros indicadores negativos na economia? Capriles esfrega as mãos uma na outra, gesto que repete seguidamente: “Depende do que significa sair da pobreza. Para mim, é ter emprego estável, é melhorar as condições de consumo, é ter renda para comprar casa e não ficar dependendo de ajuda do Estado. Se o preço do petróleo cai, os programas vão para o espaço e as pessoas voltam para a mesma situação de miséria que estavam antes. A saída da pobreza tem que ser real”, disse, e citou alguns pontos favoritos do seu discurso.
E prosseguiu: “Precisamos criar alternativas para o fim da pobreza. Assistência não tira as pessoas da miséria, apenas evita que se siga afundando nela. O que tira as pessoas da pobreza é o emprego, e emprego qualificado. O que acontece aqui é que o Estado abre uma empresa, emprega, e no terceiro mês ela está praticamente fechada por falta de eficiência. Aqui, quem consegue exportar é herói. Não se veem contêineres saindo dos portos da Venezuela. Além disso, nossos portos estão arrasados.”
Como convencer a população pobre venezuelana, que há catorze anos depende dos programas sociais do Estado, a trocar a segurança da assistência, ainda que limitada, pela promessa de desenvolvimento e emprego? De acordo com estimativas do Instituto Nacional de Estatística da Venezuela, 75,7% da população com emprego formal, cerca de 5 milhões de trabalhadores, ganham entre um e dois salários mínimos. É esse eleitor que Capriles precisa convencer.
Entre as camadas médias e intelectuais venezuelanos, a crítica incide no acento clientelista da política chavista. Não há progresso material, mas, antes, uma dependência cada vez maior das benesses de El Comandante. Teodoro Petkoff traduziu essa insatisfação em seu livro: “O chavismo reproduz os piores vícios do populismo latino-americano e venezuelano, acompanhados de autoritarismo, do controle autocrático de todos os poderes do Estado e de um forte militarismo.”
Segundo ele, o chavismo se equilibra sobre quatro pivôs: as Forças Armadas; as camadas pobres da cidade e do campo; a chamada “boliburguesia”, a burguesia bolivariana, que se aproveita das vantagens da aliança com o regime; a frondosa burocracia do Estado. “O regime é personalista. O comportamento de Chávez é tipicamente caudilhesco. Ele é o último dessa estirpe, tão latino-americana e tão perniciosa. Personagens que atuam como se não tivessem limite para o seu poder”, diz Petkoff.
Muitos venezuelanos esperavam que Chávez pudesse fazer a transição para um Estado moderno. O que ele fez foi caminhar progressivamente para uma política clientelista e autoritária, ancorada no petróleo. A historiadora Margarita López, da Universidad Central de Venezuela, avalia que, depois da vitória sobre a tentativa de golpe da oposição em 2002, Chávez se distanciou da Constituição descentralizadora de 1999, que seu partido havia ajudado a aprovar. “Ele se desviou do projeto de democracia participativa. A Constituição fortalecia as instituições e as organizações”, disse ela. “Agora o Estado as comanda. Elas são um braço do Estado. Chávez não quer independênciados poderes. O seu projeto de socialismo do século XXI é o mesmo socialismo do século XX, nos moldes soviéticos e cubanos.”
Ao mesmo tempo que critica Chávez, Capriles se esforça para se desvincular dos políticos do passado. “Eu pertenço a uma nova geração. Acho que o caminho para a Venezuela não é o dos anos 70 e também não é o de Chávez. Esse modelo entrou em colapso”, diz.
“Chega de expropriações”, ele diz. “O Brasil está crescendo com o setor privado. Por que não podemos fazer isso aqui?” Isso poderia significar que Capriles privatizaria novamente as empresas nacionalizadas e expropriadas por Chávez? “Precisamos ver caso a caso”, responde, com muita cautela. “Privatização é uma palavra que gera reservas na Venezuela.” O mesmo discurso cuidadoso e tíbio ele aplica aos produtores expropriados. “Chávez expropriou terras e não pagou. Vamos analisar o caso de cada um.” Quanto aos programas sociais, Capriles promete mantê-los. Em vez de serem distribuídos pelo presidente, como ocorre hoje, serão transformados em lei. Cada ministério se encarregará de tocar os programas referentes à sua pasta. José Serra, na campanha de 2010, fez algo parecido, quando prometeu ampliar o valor do bolsa-família – uma tentativa de se apropriar de um dos pontos fortes do adversário.
A PDVSA é outra questão delicada. Capriles afirma que a empresa “se meteu na política, o que não devia ter feito nunca”, e critica a participação da companhia em políticas sociais. Para ele, tais programas teriam que ser geridos pelos ministérios, cada um na sua área, e não pela PDVSA. “Empresa de petróleo não pode distrair o foco do petróleo. Senão perde a competitividade.”
Para boa parte dos pobres, Capriles representa tudo o que mais rejeitam: é branco; ricachón, algo como menininho rico; vem da mesma elite que sempre os explorou; é ligado aos partidos tradicionais (entrou na política pelo Copei), embora tenha se desligado e criado, com outros políticos, o Primero Justicia. Chávez é mestiço, militar e veio das classes populares. E, principalmente, subsidiou os preços dos alimentos, garantindo que elas tenham acesso à comida.
O antropólogo venezuelano Fernando Coronil, morto no ano passado, tinha uma explicação para o fenômeno chavista. Com Chávez, dizia, pela primeira vez os venezuelanos pobres sentiam que o Estado estava olhando por eles. Alguém percebeu, ainda que de forma equivocada, por meio de uma ultrapassada política clientelista, que eles existiam. Não há exclusão maior do que a indiferença. Coronil é autor do livro El Estado Mágico: Naturaleza, Dinero y Modernidad en Venezuela, que analisou o governo Carlos Andrés Pérez. Nele, o autor afirma que a renda petroleira não é produto do trabalho venezuelano, e sim um negócio do Estado que recebe dinheiro em troca. Isso faz com que o presidente seja forte. Os que ascendem ao poder se sentem como magos, que acham que podem realizar tudo. A historiadora Margarita López complementa: “Fantasias e poder intoxicam. Pérez chamava seu projeto de Gran Venezuela. Chávez, de Socialismo do século XXI. Eles impõem um projeto para se preservar no poder.”
Capriles não aceita ser identificado como um representante da elite. Tenta se desvencilhar da imagem mostrando um histórico familiar ligado ao trabalho. “Não me sinto atingido por esses ataques. Não pertenço a uma burguesia, não vivi do Estado. Sou a terceira geração de imigrantes. Meu pai sempre me ensinou o valor do trabalho e do quanto custa ganhar um bolívar. Nunca fui um voltarata [espécie de ‘mauricinho’ brasileiro]”, disse. Sem alterar o tom de voz, continuou com sua defesa. “Se alguém deve ao Estado é Chávez. Ele se formou militar e logrou ter o que tem dependendo do Estado. Minha família nunca dependeu do Estado e nunca esteve metida com negócios do Estado.”
Os avós maternos de Capriles, os Radonski, eram judeus. Vieram da Polônia fugindo da perseguição nazista. Chegaram a Caracas, segundo o neto, apenas com uma mala. O resto da família pereceu em campos de concentração. O avô começou a trabalhar com aluguel de fitas de cinema para pequenos exibidores. Com o tempo, o negócio prosperou e virou uma grande rede de cinemas, a Radonski. O avô chegou a ser produtor de cinema. A avó, Lili, que ele diz ser sua paixão, falava sete idiomas. Era amiga de atores famosos, como Cantinflas, a quem Capriles diz ter conhecido. “Era um ser humano extraordinário”, contou, embora tenha estado com ele apenas duas vezes: uma na casa da avó, em Caracas, e outra na casa do ator, na Cidade do México. Ele diz que herdou dos avós a paixão por cinema. Seus filmes favoritos são os que tratam do Holocausto. “Gosto do filme O Pianista. Minha avó conheceu o pianista na Polônia. Ela não era pessoa de chorar. A única vez que a vi chorando foi quando viu esse filme”, contou. Diz gostar também de A Lista de Schindler e de todos os filmes de Cantinflas.
Os bisavós paternos vieram de Curaçau, uma ilha de colonização holandesa, no mar do Caribe. Trabalharam com distribuição de alimentos. O pai ficou órfão cedo e teve que ajudar no sustento dos irmãos. Capriles conta que, por essa razão, ele incentivou os filhos, dois homens e uma mulher, a trabalhar desde cedo. Capriles é o filho do meio.
Aos 11 anos, ele foi ser office-boy. Não porque precisasse, mas porque gostava de trabalhar. “Na minha casa existia a cultura do trabalho.”
A política, no entanto, não é herança familiar. “Sempre me atraiu. É uma coisa minha. Ninguém na minha família é ligado em política, nem se falava disso lá em casa.” Capriles formou-se advogado, passou um tempo em Nova York se preparando para fazer mestrado em políticas públicas. Voltou para a Venezuela e se empregou no Tribunal Eleitoral. Um primo o convidou para concorrer às eleições legislativas. Concorreu, ganhou e nunca mais deixou a política. “Gosto de ser político. Quando alguém leva a profissão a sério, só tem satisfações. Satisfações espirituais. Não me preocupo com o dinheiro. As coisas materiais não me motivam. Gosto de inaugurar uma escola e ver o prazer das crianças. Mas não faço mofa disso como o outro candidato. Você não vai ver minha cara espalhada pela cidade, nem uma placa com meu nome em escola que inauguro.” E continuou, com uma de suas raras críticas diretas e abertas a Chávez: “Ele vive em um set de televisão. Ele manipula. Eu não, eu sou uma pessoa simples.”
A van se aproximou de um novo bairro pobre e esburacado. Uma tropa de mulheres, arrumadas, pintadas e com flores no cabelo, já tomava a dianteira para recebê-lo. Capriles sorriu quando perguntado sobre o fascínio que exercia sobre elas. “Tenho que tirar proveito disso.” Depois, rindo ainda mais, respondeu se era solteiro. “Sim, sou solteiro, mas não solteirão.” Qual a diferença? “Bem, o solteirão tem muitos sobrinhos”, foi sua explicação para dizer que não era gay. “Eu pretendo me casar. Só não me casei ainda porque tenho muitas namoradas. As mulheres são meu ponto fraco.” Dali, com uma nova camisa, de cor cáqui, ele seguiu para um encontro com produtores rurais. “Não é possível que a Venezuela, com tanta terra fértil, tenha que ficar importando alimentos”, discursou, sob aplausos de uma pequena audiência.
Em Barinas, muitos produtores tiveram suas terras expropriadas. “Como pode o estado do presidente ser o mais pobre da Venezuela?”, provocou. Ouviu as queixas dos produtores contra a estatização da Agroisleña, uma empresa de produtos agrícolas que foi nacionalizada por Chávez e transformada na Agropatria. Eles alegam que agora não conseguem mais comprar sementes nem fertilizantes e, por isso, a produção está minguando. “Vamos fazer o campo prosperar, independente da cor da camisa de cada um. Não vamos favorecer um grupo só porque usa camisa vermelha”, disse Capriles, recebendo aplausos entusiasmados.
No dia seguinte, pela manhã, ele se reuniu no hotel Eurobuilding Express, no centro de Barinas, para conversar com aliados de campanha. Ao lado de um shopping, é uma das poucas construções que destoam do cenário de pobreza. Equipes de jornalistas de várias partes do mundo o aguardavam. Desde a americana CNN à rede francesa Canal +. Seguranças fecharam as portas impedindo os jornalistas de entrar.
Dentro do hotel, uma equipe da Uniovision, uma rede de tevê americana que produz para a comunidade hispânica, o esperava para gravar no horário combinado na véspera. Pouco antes, um dos irmãos de Chávez, Argenis Chávez, chegou ao hotel. A repórter Mariana Atencio e o cinegrafista Jesús Olarte, já com câmera, microfone e luzes preparados para receber o candidato, foram abordados pela gerente do hotel que, nervosa e quase chorando, pediu para que saíssem dali. Os jornalistas pediram explicação. Ouviram que o irmão de Chávez ordenara que a imprensa saísse. Como o hotel está sob risco de expropriação, a gerente atendeu imediatamente.
O episódio daquele dia assustou os jornalistas. Mas Capriles não quis comentá-lo. Evitar o confronto com Chávez tem sido a estratégia da Mesa da Unidade Democrática, o MUD. É esse o nome da frente que agrega partidos de esquerda, centro, direita e até os tradicionais AD e Copei. Em meados de maio, a campanha de Capriles ganhou mais um aliado com grande simbologia política. O Partido Pátria Para Todos, PPT, bandeou de lado. Não se trata de um partido grande, mas de expressão política, que integrava a base de Chávez, o PSUV, Partido Socialista Unido de Venezuela. A maior liderança do PPT é o governador do estado de Lara, Henri Falcón, muito popular, que deve puxar votos para Capriles.
A opção de não confrontar El Comandante se justifica pelos equívocos grosseiros cometidos por parte da oposição no passado. O maior deles foi a tentativa de golpe para tirar Hugo Chávez do poder, em 2002. O episódio foi filmado por uma televisão irlandesa e transformado no documentário A Revolução Não Será Televisionada. Pelo filme, fica claro como os partidos de direita, capitaneados pela Federação das Empresas da Venezuela, a Fedecamaras, manipularam para que uma manifestação contra Chávez se transformasse num conflito sangrento que justificaria a intervenção das Forças Armadas no governo. Chávez foi deposto e a Presidência foi ocupada pelo presidente da Fedecamaras, Pedro Carmona, um empresário truculento.
Os Estados Unidos e a Espanha foramos únicos países que reconheceram o novo governo. Uma multidão cercou o Palácio de Miraflores exigindo a volta do presidente. Um grupo de oficiais fiéis ao chavismo pôs fim ao golpe, que durou apenas 48 horas. Chávez acusa Capriles de ter apoiado o golpe e, como prefeito de Baruta, não ter impedido a invasão da embaixada de Cuba. Capriles nega. Disse que entrou na embaixada a pedido do embaixador cubano para tentar impedir a invasão. Foi preso pelo governo, mas, dias depois, liberado.
No final daquele ano, houve uma nova tentativa de desestabilizar o governo com a greve da PDVSA. Em dezembro, o presidente da companhia, apoiado pela maioria dos empregados, insatisfeitos com as demissões e a decisão de Chávez de obrigar a empresa a abrir as contas, anunciou a greve. Discursou dizendo que, sem petróleo, o governo cairia em uma semana.
Em solidariedade a Chávez, o governo Lula, recém-eleito, enviou petróleo para a Venezuela. Antigos funcionários da companhia e engenheiros da Universidad Central de Venezuela entraram na PDVSA e conseguiram fazê-la funcionar. Na época, até adversários políticos do governo se manifestaram contra a greve.
Em 2005, a oposição cometeu novo equívoco, do qual levou anos para se recuperar. Na tentativa de enfraquecer o presidente, os oposicionistas não participaram das eleições legislativas. O erro histórico serviu para fortalecer Chávez como nunca, ao conquistar a totalidade do Congresso. Com isso, embora em 2007 a população tenha dito não ao referendo que propunha a mudança na Constituição para facultar ao presidente a possibilidade de se candidatar indefinidamente, em 2008 Chávez conseguiu aprovar a lei. Em 2010, pela primeira vez nos últimos anos, a oposição unida teve mais votos que o governo nas eleições parlamentares. Com a rearticulação da oposição, a Venezuela é hoje um país polarizado, com ódios explícitos.
O advogado e cientista político Luis Salamanca é professor de ciências jurídicas da Universidad Central de Venezuela. Ele está preparando um estudo sobre as próximas eleições. No escritório de seu amplo apartamento, com um vista de 360 graus para Caracas, ele explica que as eleições presidenciais deste ano serão plebiscitárias. “Não se trata só da eleição de um presidente, mas de um dilema dos venezuelanos entre dois caminhos. O que encarna Chávez e o que encarna Capriles e a oposição”, disse. “São dois caminhos completamente distintos. São dois modos de pensar a vida, o papel do Estado, o papel da população na vida pública e a saída da pobreza.”
A Venezuela, na imagem de Salamanca, está numa encruzilhada. Se optar por continuar com Chávez, seguirá por um modelo estatizante e autocrático, em que o Estado é o centro de tudo e a sociedade lhe estará submetida. Será um modelo dependente apenas do petróleo. O que o governo tem demonstrado, afirma Salamanca, é que quer reduzir ao mínimo a atividade econômica capitalista. “É um estatismo anticapitalista nos moldes cubanos e da extinta União Soviética. Nós sabemos aonde isso nos levará”, disse, sem disfarçar seu desalento e suas preferências por Capriles. “O outro modelo é uma aposta em uma virada da Venezuela rumo à modernidade.” Pela juventude, pelo ar despreocupado, pelo jeito displicente de menino rico, Capriles dá a impressão de desconhecer a dimensão do desafio que tem pela frente. Salamanca discorda. “Ele já foi deputado, prefeito e é agora governador. Tem experiência e fez um bom trabalho na prefeitura e agora também no governo de Miranda. Ele tem demonstrado que saberá como gerir o país.”
Capriles sentou novamente no último banco da van que o levara na véspera. Naquela manhã, usava uma camisa verde-bandeira. A organização da campanha teve que mudar os planos da visita ao bairro de Barinitas porque um grupo chavista fechara a passagem da comitiva com faixas. Pressionavam Capriles a sair do estado. “Veja todas essas coisas. Chávez se diz de esquerda, mas é uma esquerda retrógrada.” E como ele se definiria politicamente? “Eu me coloco no século XXI. Sou um progressista. Eu creio no progresso. Reconheço o esforço do ser humano como o eixo para o desenvolvimento. O Estado não pode pretender se colocar acima do ser humano. O Estado não é o proprietário dos meios de produção, nem das pessoas”, refletiu.
A conversa prosseguiu e Capriles enveredou por uma trilha messiânica. Disse se sentir guiado por Deus em todos os passos que dá na política. Abriu a camisa e puxou um cordão com um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora do Vale. Embora seja filho de mãe judia, foi criado no catolicismo, por opção materna quando ela se casou com um católico. “Sou católico e mariano, devoto de Nossa Senhora”, complementou. Fez uma ressalva. “Para os judeus, como nasci do ventre de uma judia, serei sempre um judeu. E me orgulho disso também.” Assumiu um ar contrito. “Um evangélico me disse que os judeus são predestinados”, contou. Os evangélicos representam 20% da população venezuelana. “Eles respeitam muito os judeus e dizem que Chávez está como está porque falou mal da colônia judaica e de Israel.”
Capriles se sente um predestinado? “Eu não me sinto um Messias, mas eu creio que os tempos de Deus são perfeitos. Não me sinto predestinado, porque isso pode soar como algo que não sou. Mas sinto que Deus põe alguém num caminho e as coisas vão acontecendo. Estou seguro de que, por alguma razão, Deus me pôs aqui.”
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