Lucilene Soares, na casa onde sua filha de 19 anos foi morta pelo padrasto na frente dos irmãos menores, em Belo Horizonte: “Jennifer era minha amiga, minha companheira, meu tudo” CRÉDITO: LEO DRUMMOND_2021
O carrasco em casa
Como três famílias enfrentam o assassinato de mulheres num país com dificuldades para caracterizar o feminicídio
Paula Ramón | Edição 183, Dezembro 2021
Tudo começou com uma tentativa de golpe sofrida por Antônia,[1] atendente de telemarketing. Um homem ligou para o celular pessoal dela, disse que tinha sequestrado um parente e exigiu o pagamento de um resgate. Antônia perguntou o nome da pessoa sequestrada, mas o tal parente não existia – e ela desligou. O homem telefonou de novo, agora com outro propósito: queria apenas conversar. O assunto rendeu, e os dois começaram a se falar regularmente. Ela estava com 31 anos, era viúva e tinha duas filhas, Cecília e Ana. Ele se chamava Pedro, tinha 28 anos, era solteiro e ligava de um presídio, onde cumpria pena por extorsão.
As conversas continuaram por meses, até que Pedro foi solto e, a convite de Antônia, foi morar na casa onde ela vivia com as filhas, num bairro de classe média do Rio de Janeiro. “Saiu da cadeia e foi direto para lá. Pela primeira vez eu me zanguei com ela”, conta Carmen, irmã mais velha de Antônia. Quando Pedro se mudou, Ana tinha 10 anos, e Cecília, 12. “No começo, ele era tudo pra mim. Eu não tinha tido carinho paterno”, recorda Cecília. “Só que, após dois meses, nossa vida virou um inferno.”
Pedro começou a agredir Antônia por qualquer motivo, com gritos, tapas e murros. Também passou a bater nas meninas, além de restringir o que elas podiam comer. “Ana não apanhava tanto porque mamãe e eu protegíamos”, diz Cecília, hoje com 19 anos. As duas irmãs guardavam silêncio sobre tudo que ocorria em sua casa porque eram ameaçadas por Pedro.
Certa vez, tomado de ciúmes, ele foi ao local onde Antônia trabalhava e a esmurrou na frente de todo mundo. Ela perdeu o emprego e decidiu recorrer à Justiça contra o namorado, que se recusava a sair da casa. Também prestou queixa à polícia, que não tomou nenhuma providência, segundo Carmen. Um mês depois, Antônia obteve na Justiça uma medida protetiva impedindo que Pedro se aproximasse dela e de sua família.
Mas ele continuou a aparecer na casa, aterrorizando a ex-namorada e as filhas. Em março de 2016, depois de uma briga, Antônia levou as meninas para a casa de uma amiga e foi a uma delegacia em busca de socorro. “Então minha mãe ligou pra gente contando que o delegado disse que não podia prendê-lo por falta de provas”, lembra Cecília. Antônia assegurou que Pedro não poria mais os pés na casa e, antes de se despedir, disse à filha: “Tchau, te amo.” Foi a última vez que as duas se falaram. “Não tive mais notícias dela. No dia seguinte, fiquei sabendo o que tinha acontecido.”
Quando Antônia chegou em casa, vinda da delegacia, Pedro a matou a facadas.
“Uma amiga me ligou e disse: ‘Sua irmã está morta.’ Eu entrei em pânico”, diz Carmen. Seu primeiro desafio foi dar a notícia às sobrinhas. “Eu falei: ‘Lembra que tua mãe brigou com fulano? Eles brigaram de novo, ela bateu a cabeça e foi para o hospital.’ É por isso que a Cecília diz que eu menti para ela.”
“Tu mentiu, sim”, rebate Cecilia, sentada ao lado da tia, no apartamento em que elas vivem atualmente, numa capital do Nordeste. A jovem continua: “Então começaram a chegar várias pessoas na casa onde a gente estava. Eram pessoas que nunca tinham se reunido conosco, e eu comecei a achar aquilo estranho.” Num tom de voz mais baixo, Carmen tenta se justificar novamente: “Eu então falei que tua mãe não ia resistir.” Cecília responde: “Tu apenas falou que minha mãe caiu, bateu a cabeça e não ia resistir.” Carmen explica: “Eu não podia dizer a você e sua irmã, duas crianças, que a mãe delas tinha sido morta a facadas.”
Não demorou muito para que as meninas ficassem sabendo o que tinha ocorrido. Cecília e Ana entraram em desespero: estavam órfãs e tinham medo de que o assassino fosse atrás delas. Pedro só foi encontrado uma semana depois do crime – e desde então está preso. Até hoje o medo é uma constante na vida de Cecília e sua tia, que só aceitaram conversar com a piauí se a revista não revelasse o nome verdadeiro delas nem os locais onde se encontram atualmente. “Não sei o que se passa na cabeça dele, o que é capaz de fazer”, diz a jovem.
Ao retirar os pertences da irmã da casa onde ela vivia, Carmen encontrou facas escondidas por toda parte. Foi Cecília quem as escondeu, por causa das ameaças que Pedro fazia à mãe dela. “A primeira vez que ele pegou uma faca e foi pra cima, eu a protegi”, conta.
“Ele era muito ciumento”, diz Carmen, uma mulher extrovertida de 58 anos. “Um dia antes do crime, Antônia me ligou pra pedir uma receita. O fulano me ligou logo em seguida pra saber sobre o que a gente tinha conversado.” Ela, que nunca diz o nome de Pedro, acredita que Antônia escondeu tudo que estava passando porque também sentia medo. “Ele sabia que a gente era muito próxima. Imagina minha cabeça, eu também vivi muita violência durante anos.”
Carmen sofreu agressões do marido por vinte anos. Para fugir dele, se mudou do Nordeste para o Rio de Janeiro, pouco tempo antes da morte de sua irmã. “Eu apanhava até quando estava amamentando minha filha. Um dia fui embora só com a roupa do corpo, perdi tudo de uma vez.” Sua voz é imponente e sua figura transmite força e até alegria, apesar de tudo que viveu. É uma pessoa bonita, de cabelos loiros bem lisos, metódica e religiosa.
Nos primeiros meses depois da fuga, Carmen viveu escondida, sem nem mesmo ver as suas duas filhas, já adultas, que ficaram no Nordeste. Alguns diziam que seu marido tinha jurado matá-la. Como sempre estava em contato com Antônia, contava para ela tudo que vinha passando. “Minha irmã tinha medo do que poderia acontecer comigo. Ela me encorajava a me divorciar.” Carmen sabia do relacionamento de Antônia e Pedro, mas não das agressões que ela sofria. Só depois do assassinato, teve coragem de enfrentar o marido e pedir o divórcio.
Após a morte da irmã, Carmen solicitou à Justiça a custódia das sobrinhas, apesar de não ter emprego nem recursos para tanto. Começou a fazer bicos e trabalhou como motorista da Uber. “Foi uma responsabilidade enorme para mim, ainda mais naquele momento, porque eu não tinha chão para recomeçar. Estava preocupada com a falta de tudo e ainda tive que acompanhar dois processos judiciais: o do assassinato da Antônia e o do meu divórcio.”
Ela e as meninas não tinham casa própria e se mudavam frequentemente, vivendo de favor com parentes e amigos. “Para mim foi muito difícil me acostumar com a nova realidade”, conta Cecília. “Um dia a gente estava com a nossa mãe, e no outro dia tinha que preparar o enterro dela e morar com outras pessoas.” Carmen fez do cuidado das sobrinhas uma prioridade em sua vida. Também buscou assistência psicológica para as meninas. O nomadismo no Rio de Janeiro durou três anos, até que Ana não aguentou mais e decidiu morar com uma mulher que ela considerava sua avó adotiva, a mãe de um ex-namorado de Antônia. A menina estava com 14 anos.
O julgamento de Pedro foi uma experiência “horrível”, afirma Carmen. “Eu me senti péssima porque, mesmo sendo ele o réu, falaram mal da minha irmã.” O assassino foi condenado a dez anos de prisão por homicídio qualificado – e não por feminicídio. “Quando cheguei em casa, Cecília estava chorando. Ela achou que ele ia sair da prisão e matá-la.”
Como a tia, Cecília não se refere a Pedro pelo nome – prefere dizer “ele” ou “o outro”. Magra e bonita, ela fala com desenvoltura e tem um jeito doce de se expressar. Quando conta sobre a mãe e o que viveu com Pedro, praticamente não se move. Mas, se o tema da conversa é a irmã, que agora tem 17 anos, seu corpo ganha vida. “A Ana não gosta de falar do assunto. Às vezes ela chora, chamando pela nossa mãe. Diz que tem saudade até do modo como a mãe ficava brava com ela.” Ana deixou o tratamento psicológico, mas Cecília segue até hoje com as consultas.
No ano passado, Carmen propôs à sobrinha se mudarem do Rio de Janeiro para a cidade onde havia morado no Nordeste. Cecília aceitou, apesar de ficar longe de Ana. As duas foram para o apartamento onde a tia vivera os anos de casada, depois que seu ex-marido tinha finalmente concordado em assinar o divórcio e abandonar a residência, graças à mediação das duas filhas do casal, que hoje têm 33 e 37 anos. Ao chegar ao apartamento, Carmen e Cecília encontraram o local inteiramente vazio: o ex-marido tinha levado todos os móveis e deixado uma dívida grande de condomínio.
O apartamento é amplo e precisa de reparos. No seu quarto, Carmen fez um pequeno altar, com imagens de Cristo e da Virgem Maria, ao lado das quais colocou um pequeno porta-retratos com a palavra “mãe” inscrita no alto e uma foto dela e da sobrinha. “Foi a Cecília que me deu de presente”, diz a tia. Ela sorri, mas depois seus olhos se enchem de lágrimas.
A jovem tem agora um quarto só dela, com uma escrivaninha para estudar. Está terminando o ensino médio e arrumou um emprego de meio turno como babá. Aos colegas da escola e da igreja católica que frequenta, evita contar sobre a tragédia que viveu. “Não gosto quando sentem pena de mim”, diz. Na estante, colocou vários porta-retratos com fotos em que aparece ao lado da irmã e de amigos do Rio.
Cecília teve um namorado antes de se mudar para o Nordeste. Carmen aconselha que, ao se interessar por um rapaz, a sobrinha o leve à sua casa e “mostre que tem família, que não está sozinha”. Cecília garante: “Eu já disse que não vou cometer o mesmo erro que você e minha mãe.” Juntas, as duas têm reconstruído a vida delas como é possível. “A gente quer uma solução para acabar com a dor que carrega. Não sei qual é essa solução, mas a gente quer. Sei que essa dor não vai sumir do dia pra noite. Então acabamos acostumando, mesmo que não seja uma coisa pra se acostumar”, diz a jovem.
Ela conta que está dormindo melhor e pensa menos no passado, pois o trabalho e as aulas a mantêm ocupada. Mas não conseguiu se livrar da tristeza. “Não pude dar um último abraço na minha mãe”, diz Cecília, com a voz embargada. “Não pude pedir desculpas, não pude nada. Queria pedir desculpas por não ter ajudado ou não ter pedido ajuda para alguém quando eu podia pedir. Minha mãe era uma guerreira.” Carmen completa: “Antônia era apenas uma mulher que quis construir uma família.”
Ana quer ser escritora ou boxeadora, segundo Cecília, que sempre fala com admiração da irmã, ressaltando que ela escreve muito bem. As duas não conversam diariamente nem são tão próximas como antes, mas Cecília acredita que Ana está sendo bem cuidada e protegida no Rio pela mulher que chama de avó adotiva. “Se ela estivesse comigo, eu não teria como protegê-la. Ela não fala dele [do assassino de sua mãe], mas pelos sonhos que conta dá para ver que ainda tem muito medo.”
Cecília quer se tornar delegada, projeto que nem a tia nem a irmã veem com bons olhos. “Eu não tenho medo. Se for para ajudar as pessoas, para mim está valendo todo o risco”, diz a jovem. “Eu não sei se ele [Pedro], quando sair da prisão, vai vir atrás de mim, da minha irmã, da minha tia. Não sei se ele vai querer se vingar. Mas, se um dia tentar, quero pelo menos estar preparada, como delegada, para me defender.”
A tragédia que ela viveu a deixou em estado de alerta. “O Estado falhou demais com todas as mulheres deste país. Você morre muito fácil no Brasil. O Estado condena, mas não protege a família da vítima, deixa a gente largada. Quero fazer a diferença”, afirma Cecília. “As pessoas têm que tentar entender que, quando uma história como essa acontece, violência, estupro, assassinato, nada disso é culpa da mulher. É preciso parar de botar a culpa na mulher.”
Pedro vai ser levado a julgamento outra vez, agora por feminicídio. Carmen ainda não foi notificada sobre a data e disse que prefere nem perguntar quando será. Ela e Cecília temem reviver todo o trauma e ouvir mais uma vez a defesa do assassino retratar Antônia como culpada, e não como vítima.
A Lei do Feminicídio entrou em vigor no Brasil há seis anos, em 9 de março de 2015, alterando o Código Penal para prever esse delito como circunstância qualificadora do homicídio e o incluir entre os crimes hediondos, ao lado do genocídio, do latrocínio e outros. A pena de reclusão hoje vai de 12 a 30 anos, mas a Câmara dos Deputados aprovou no dia 18 de maio passado um projeto de lei que a aumenta de 15 a 30 anos. Além disso, inclui a proibição de concessão de saída temporária para condenados por feminicídio. O PL 1568/19 ainda precisa passar pelo escrutínio do Senado.
A lei de 2015 define o feminicídio como o crime cometido “por razões da condição do sexo feminino”, ou seja, contra uma mulher (menor de idade ou adulta). Para tipificar um assassinato como feminicídio, segundo a legislação, é necessário que o crime esteja relacionado a uma situação de violência doméstica e envolva menosprezo ou discriminação à condição feminina da vítima. “Feminicídio é o fato de a mulher ter sido assassinada por motivo ligado ao seu gênero e que tem a ver com o seu papel social milenar de subordinação”, define a promotora Mariana Bazzo, professora da pós-graduação em direito da família da Universidade Estadual de Londrina e coautora do livro Crimes contra Mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio.
Apesar do rigor da legislação, a tipificação do crime de feminicídio no momento de formalizar a denúncia ainda é um problema no Brasil – o que dificulta a própria aplicação da lei. “A lei protetiva não está sendo aplicada”, afirma Bazzo. Segundo a promotora, isso ocorre principalmente por falhas na formação dos integrantes do sistema da Justiça e por “um olhar de gênero” da parte deles. “Isso é muito sério e ofende diretamente os direitos humanos das mulheres.”
Como explica Renata Giannini, pesquisadora sênior do Instituto Igarapé, dedicado às questões de segurança e desenvolvimento, a classificação de um assassinato como feminicídio depende das pessoas que chegaram primeiro à cena do crime. Mas falta a elas treinamento para identificar elementos-chave que caracterizam o delito e o distinguem do homicídio. A tipificação do feminicídio exige muitas vezes um exame atento da situação pessoal ou familiar da vítima, além de uma verificação cuidadosa para saber se o crime foi cometido por menosprezo ao gênero feminino. “É preciso capacitar melhor as pessoas para que desde o início seja feita a classificação correta”, defende a pesquisadora. “Não há dúvida de que há muito mais casos de feminicídio no Brasil do que os contabilizados.”
Uma pesquisa divulgada neste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que em 2020, quando a Covid-19 se alastrou pelo Brasil, foram registrados 1 350 feminicídios no país – número pouco maior que em 2019, com 1 326 casos. Do total das vítimas do ano passado, 81,5% foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros, sendo que 61,8% eram negras e 74,7% tinham entre 18 e 44 anos. Mais da metade (55,1%) dos crimes foi cometido com arma branca, como faca, facão ou tesoura.
A delegada Sandra Ornellas, diretora do Departamento-Geral de Polícia de Atendimento à Mulher da Polícia Civil do Rio de Janeiro, concorda com Giannini a respeito da necessidade de mais capacitação da Justiça para tipificar corretamente o feminicídio. “Falta um olhar apurado. Um entendimento muito precário da situação do feminicídio faz com que muitas vezes a gente trabalhe com a hipótese desse crime só nos casos óbvios”, afirma. Advogada de formação e com vinte anos de atuação policial, Ornellas explica que, para o encaminhamento jurídico correto desse crime, são muitas as complicações, entre elas a falta de um protocolo específico para a investigação, a necessidade de fazer um registro criminal complexo e a escassez de equipes especializadas em crimes de violência contra a mulher. Sem falar nos desafios inerentes ao Brasil, “como o tamanho do país e o machismo estrutural, mesmo dentro das corporações [policiais]”, nas palavras da delegada, que considera a Justiça criminal o “pior lugar” para uma mulher. “É ali que se consolida esse machismo estrutural.” Ornellas não é otimista com relação à aplicação da lei. “Não vai ser rápido ajustar todo o sistema de percepção, de registro e investigação dominante”, diz. Mas ressalta que a Lei do Feminicídio tornou visível esse tipo de violência contra as mulheres, fazendo com que elas passassem a buscar ajuda mais cedo.
A demanda por ajuda fica clara quando se observa a quantidade de chamadas que as mulheres fazem ao número telefônico 190, da Polícia Militar, com pedidos de socorro por causa de violência doméstica (embora o número exato para denúncias de violência contra a mulher seja o 180). Em 2020, foram feitas 694 131 ligações desse tipo para o 190, ou uma chamada a cada dois minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para o advogado criminal Luís Francisco Carvalho Filho, colunista da Folha de S.Paulo, o problema na tipificação do feminicídio não se deve propriamente a uma questão técnica. “É um tipo de violência que tem um componente cultural muito grande”, ele diz. “Homens ainda tratam mulheres como se fossem sua propriedade. É uma questão cultural que também envolve autoridades, policiais, juízes… Essa é a dificuldade. São séculos de dominação masculina sobre a mulher.”
Séculos que se refletem na própria atitude de muitas mulheres, que têm vergonha de denunciar as agressões que sofrem, o que poderia evitar muitos casos de feminicídio. Frequentemente elas acham que, ao denunciar o agressor, acabarão submetendo a si mesmas ao julgamento da sociedade – em vão. “A sociedade julga e não faz nada”, diz Sandra Praddo, coordenadora em Curitiba da Casa da Mulher Brasileira. “Quantas vítimas teriam sido salvas se os parentes e os vizinhos se intrometessem?”
Além disso, muitas mulheres temem enfrentar problemas materiais ao denunciar um companheiro que as agride e ter que se afastar de sua casa. “Cerca de 90% das mulheres que chegam aqui, na Casa da Mulher Brasileira, não têm recursos para se manter sozinhas. Muitas delas fogem com a roupa do corpo, sem documentos nem dinheiro, mas com os filhos”, conta Praddo, para quem a falta de centros especializados para acolher as vítimas é um dos principais desafios que o Estado precisa enfrentar se quer combater a violência de gênero. Marisa Chaves, do Movimento de Mulheres em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, afirma que, muitas vezes, a mulher não está preparada para romper com o agressor, pois isso a coloca em risco. “Ir à delegacia não significa que ela vai ter segurança, porque a mulher sai dali e volta para casa.” E a casa não é mais um abrigo para ela: é onde está também o seu carrasco.
Quando a fisiculturista Renata Muggiati morreu, aos 32 anos, fazia seis meses que a Lei do Feminicídio estava em vigor no Brasil. Descobrir que a palavra “feminicídio” poderia ser aplicada ao que ocorreu com sua irmã abalou os alicerces morais de Thereza Cristina Gabriel. Ela nunca se preocupara muito com essa questão nem com a da violência doméstica. “Eu era extremamente arrogante, achava que mulher só apanhava porque gostava”, diz a produtora de eventos de 53 anos, loira e alta, meticulosamente arrumada.
No dia 13 de setembro de 2015, por volta de três da manhã, o namorado de Thereza, Alexsandro Annemann, recebeu uma chamada pelo celular. Ele não queria atender, mas ela insistiu: “A essa hora, deve ser algo importante.” A ligação era de um vizinho de sua irmã, dizendo que, ao chegar ao prédio onde morava, encontrou um grupo de policiais na frente e uma pessoa caída na calçada – era Renata. Thereza e Annemann correram para lá.
Ao entrar no apartamento da irmã, no 31º andar, Thereza se deparou com Raphael Suss Marques, um médico que Renata estava namorando havia uns seis meses. “Eu só o conhecia de foto”, conta a produtora à piauí, na casa de sua mãe, em Curitiba. “Mas, não sei por que, a primeira coisa que fiz ao vê-lo foi perguntar: ‘O que você fez com minha irmã?’”
Na época, Thereza andava um pouco afastada da irmã, que, durante o tempo em que namorou Marques, se distanciou da família e dos amigos. Também deixou de atender alunos na academia de ginástica onde trabalhava como personal trainer e instrutora de musculação em Curitiba. Além disso, perdeu muito peso, algo que teria preocupado seu círculo social, caso ela não estivesse tão afastada de todos. Renata Muggiati era uma fisiculturista premiada no Brasil e no exterior. Por anos, exibiu seus músculos tonificados nas redes sociais.
Daquela madrugada em diante, a vida de Thereza virou uma montanha-russa. Segundo um laudo médico, Renata teria se suicidado. Mas a produtora de eventos não conseguia aceitar essa explicação. A irmã – que ela chamava de “temporona”, por causa da diferença de idade que as separava – era uma mulher bonita, bem-sucedida e com muitos projetos. No passado, as duas haviam compartilhado uma vida feliz, em uma família socialmente privilegiada. Cheia de dúvidas, Thereza passou a colaborar com as investigações policiais. “Fiquei sem trabalhar nos primeiros três meses. Eu voltava para casa como um trapo. Tinha que ir todos os dias na delegacia e no Instituto Médico Legal, tinha que falar com advogados e com a polícia.”
A guinada na investigação ocorreu no momento em que um advogado mostrou à polícia mensagens enviadas a ele por Renata, via Facebook, seis dias antes de sua morte. Uma delas dizia: “Preciso de ajuda.” Havia entre elas também algumas fotos da fisiculturista com o corpo ferido por golpes dados por Marques, como ela contou ao advogado. Aos poucos, vieram à luz alguns fatos que Renata escondera de todos. O namorado, além de agredi-la e afastá-la dos amigos e da família, teria controlado as finanças e limitado as idas dela ao trabalho, como consta da denúncia do Ministério Público.
“Quando soube de tudo isso, não entendi por que Renata não fez as malas e foi embora”, diz Thereza. “Ela tinha força de vontade. Treinava todos os dias. Como ela se deixou arrastar? Por que não pediu ajuda? Eu me sentia impotente por não ter feito algo. Era muito triste pensar nela vivendo tudo isso sozinha. Homens decidem quando mulheres vão morrer. Como é que pode isso?”
A produtora de eventos mostra à piauí as últimas mensagens que trocou com a irmã e que, agora, em retrospecto, interpreta como um pedido de ajuda. “Não estamos nos falando mas lembrei de vc e senti saudades!”, escreveu Renata em uma delas. Thereza respondeu convidando-a para um encontro. A irmã só respondeu uma semana mais tarde: “Acabei tendo uma fratura no nariz sexta qnd falamos q já está hj solucionada e dei um offline no whats p não ter incômodos!!! Vamos nos encontrar, creio eu q estarei desinchada após feriado!! Daí nos vemos e conto todas as novidades! Estou morando perto de vc!! Beijo. Amo vc!!”
O encontro nunca aconteceu. “Faltou tempo”, diz Thereza. A fratura no nariz, segundo perícia feita no carro, não foi causada por um acidente. A família suspeita de que foi resultado das agressões de Marques. “Ele é um psicopata. No dia do velório da minha irmã, marcou um encontro com uma moça. Veja só o nível de empatia que ele tem”, afirma Thereza. De acordo com ela, as investigações revelaram que Marques usava as parceiras como cobaias de tratamentos médicos ou regimes alimentares que, depois, indicava às suas pacientes.
Thereza foi a todas as audiências judiciais do caso. Embora tenha outros dois irmãos, resolveu tomar para si a tarefa de esclarecer a morte de Renata. A investigação policial levou à exumação do corpo e à constatação de que a fisiculturista havia sido asfixiada antes de ser jogada do 31º andar – o que contradiz a hipótese de suicídio, como sua morte foi definida pelo laudo médico, que a investigação policial apurou ser falso.
Em fevereiro de 2019, pouco mais de três anos após o crime, Marques foi acusado de feminicídio e preso. Na cadeia, ele aguarda a definição da Justiça sobre o dia em que será levado a júri popular. A pandemia atrasou o julgamento, o que para Thereza é como deixar incompleto o seu luto. “Não me faz diferença quantos anos ele vai ficar preso. Ele não merece nem meu desprezo. Mas tenho que acreditar que há uma força divina e que vai dar o castigo certo.”
A defesa de Suss Marques nega a hipótese de feminicídio, mas não se alonga em comentário sobre o caso, por este se encontrar em sigilo de Justiça. “Nossa versão desde o início é a negativa de autoria. Não houve feminicídio. Mas enquanto persistir o sigilo do caso eu não me manifesto”, disse o advogado Edson Vieira Abdala à piauí.
Na sala da ampla casa onde vive a mãe de Renata, em Curitiba, não há fotos de familiares à vista. “Ela tirou todas”, explica Thereza, ao lado de Maria do Carmo da Silva Mikoszewski de Muggiati, uma senhora de 75 anos, cujo rosto guarda muita semelhança com o de sua filha morta. Ela explica por que guardou as fotos de Renata: “É ruim ficar pensando, ficar olhando para ela, as mãos, o rosto… Você até adoece.” Sua memória confunde algumas coisas, e é Thereza que de maneira maternal completa as frases. Mas há um momento que Maria do Carmo não hesita e fala com firmeza: ao se referir a Raphael Suss Marques – “Ele é um porco desgraçado. Espero que a Justiça cumpra seus deveres”, ela diz.
Os olhos de Thereza se enchem de lágrimas. “Ela sempre chora quando se lembra da Renata”, afirma Maria do Carmo. “Mas acho que isso não sai do coração da gente.” Pela sala, corre animada a cadela Punk, uma vira-lata que Renata resgatou das ruas e que Thereza levou para a casa da mãe após a morte da irmã. Depois de uma pausa, Maria do Carmo confidencia sobre a tragédia que atingiu sua família: “A vida me reservou isso, então não posso nem chorar, não adianta. Não vai trazer ela de volta. O que me resta é essa vida. Não é como eu gostaria de viver, mas é assim.”
Desde o crime, Thereza passou a alternar seu trabalho com a participação em uma campanha de esclarecimento sobre a violência contra as mulheres. “Eu, que achava que isso só acontecia com pessoas pobres, aprendi do pior jeito que não era bem assim”, conta. “Fiquei espantada ao saber que todas as mulheres da campanha conheciam alguém que tinha sofrido violência. Foi um choque de realidade. Me transformei. Eu precisava fazer com que todos aprendam sobre isso para que não carreguem a culpa que eu carrego.”
Culpa é uma palavra que vai e volta nas frases de Thereza, como se o seu pensamento estivesse sempre numa encruzilhada: achar que poderia ter ajudado Renata de alguma forma ou reconhecer que, por ignorar o que a irmã estava passando, não poderia salvá-la.
“O impacto do feminicídio nas famílias é atroz”, diz a psicóloga Artenira da Silva e Silva, que trabalha há quinze anos com crianças e adolescentes que vivenciaram casos de violência doméstica e feminicídio. “Quando a mãe é submetida a um sofrimento terrível como o assassinato da filha, é preciso que recorra à ajuda de psicólogos para enfrentar a situação. Ela está vivenciando uma dor terrível, tão avassaladora que não vê o entorno”, afirma. O choque causado nos filhos das vítimas é igualmente grave. “Uma pessoa que viveu algo impossível de imaginar, como é o assassinato da sua mãe, imagina que tudo pode acontecer.”
Silva conta o caso de uma criança de 8 anos que, ao ser perguntada se queria visitar o pai, que assassinou sua mãe, respondeu: “Não, porque minha avó pode morrer.” Ela não respondeu à pergunta que lhe foi feita. “Ela estava dizendo: ‘Eu não posso ver meu pai porque vou aumentar o sofrimento da minha avó’”, ressalta a psicóloga. “Para os filhos, ter que resolver os problemas dos adultos é uma desestruturação imensa.”
O trauma é tão grande que as pessoas têm dificuldades de falar sobre o ocorrido, como explica a psicóloga Julia Durand, que se dedica há duas décadas às questões da violência conjugal e seu impacto nos filhos. “Tem casos que acompanhei em que os familiares demoravam até seis meses para falar do que ocorreu. Eles precisavam testar o terapeuta para ver se confiavam nele. Muitas famílias mudam de casa porque ficam envergonhadas.”
Em seu consultório, Silva leva em média seis sessões até conseguir que as crianças toquem no assunto. “Uma coisa é um homicídio cometido por um estranho, com o qual a criança não tem vínculo. Outra coisa é o feminicídio cometido por um parente”, diz. Nesse caso, ela muitas vezes tem uma relação de afeto com o assassino, que pode ser seu pai ou padrasto. “A criança odeia o que ele fez, mas não a pessoa dele. Isso gera um conflito muito forte nos filhos.”
Quando Silva pergunta aos filhos o que gostariam de saber do pai ou padrasto que matou sua mãe, eles colocam sempre estas duas questões: a primeira é saber se ele se arrependeu; a segunda, se sente por eles o mesmo ódio que tinha da esposa. “O filho tem necessidade de separar o que o pai sentia pela pessoa que matou do que sente em relação a ele, filho, esperando que nutra algum sentimento positivo. É uma situação de uma tristeza absurda.” A psicóloga usa o termo “invisibilidade” para explicar o que ocorre com os familiares das vítimas de feminicídios. “Eles são sempre apagados, ficam invisíveis para a sociedade. Não são objeto de estudo. A sociedade vira as costas.”
Reestruturar as famílias depois de um feminicídio é um processo dos mais difíceis. “Elas vivem um luto eterno”, diz a psicóloga Tatiana Rodrigues, que atua no Movimento de Mulheres em São Gonçalo, onde atende crianças cujas mães foram vítimas de feminicídio. “Não existe o ‘levanta, sacode a poeira e dá volta por cima’. Cada pessoa dessa família vai viver esse luto de uma maneira diferente, vai tentar encontrar caminhos para seguir em meio à dor, à culpa e ao medo.”
No ano passado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estimou, com base em uma pesquisa divulgada em 2019, que os assassinatos de mulheres no país deixam órfãos, a cada ano, mais de 2 mil crianças e adolescentes. “Eles perdem a mãe e, muitas vezes, o pai é preso. Faltam políticas públicas para fazer o acompanhamento deles”, diz Renata Giannini, pesquisadora do Instituto Igarapé. “Uma criança que presenciou a morte da mãe seguramente presenciou violências anteriores, e é possível que tenha transtornos que depois venham a se manifestar de forma até violenta.”
“Temos que intervir logo para romper essa cadeia e evitar que casos assim se repitam nas gerações posteriores”, afirma Durand, que defende a criação de pontos de apoio que auxiliem as pessoas sempre que precisarem. “No Brasil, há milhares de pessoas traumatizadas por feminicídio”, diz.
No casamento da empregada doméstica Lucilene Soares, em 2009, sua filha de um relacionamento anterior, Jennifer Flaviana Soares, parecia uma pequena réplica da mãe. Além do vestido branco de princesinha, a menina de 8 anos portava, como a noiva, luvas brancas cobrindo os antebraços e uma tiara composta de flores miúdas. Nas mãos, levava um buquê de rosas vermelhas.
O padrasto, Célio de Castro Silva, foi morar na casa de Soares e sua filha, na comunidade Morro do Papagaio, em Belo Horizonte. Como Jennifer quase não tinha contato com o pai biológico, Silva passou a representar para ela a figura paterna. Um ano após o casamento, ele começou a assediar a menina.
Jennifer chegou à adolescência, e Silva ampliou seu cerco. Passou a recriminar o modo como ela se vestia, dizendo ser indecente, e a chamou até de “filha da prostituição”, por ter nascido de mãe solteira. Alternava as agressões verbais com manifestações de desejo pela enteada. Certa noite, tentou beijá-la na boca, contou Jennifer à sua mãe. O assédio aumentou a tal ponto que, aos 12 anos, a jovem decidiu se mudar para a casa da avó, também no Morro do Papagaio. Na mesma época, seu pai biológico, com quem ela vinha se encontrando de vez em quando, foi assassinado. Aos 14 anos, Jennifer começou a namorar Lucas Martins de Sena, de 21 anos, e foi morar com ele no bairro do Barreiro, a vinte minutos de carro da casa de sua mãe. Logo, o casal teve uma filha, Helena.
A mãe de Jennifer, Luciene Soares, deu à luz Adrian e Talia, seus dois filhos com Silva, mas o casamento pouco a pouco foi desandando. Quando a empregada doméstica conheceu outro homem e engravidou dele, a situação ficou insustentável. Ela acabou se divorciando de Silva. Desempregado havia anos, ele não quis se mudar da casa e começou a maltratar a ex-mulher.
Os abusos físicos e psicológicos passaram a fazer parte do cotidiano de Luciene Soares. “Um dia ele chegou por trás de mim na hora que eu estava cozinhando. ‘Você quer alguma coisa?’, eu perguntei. E ele respondeu: ‘Eu posso cortar tuas duas mãos e teus dois pés, mas não vou fazer isso porque você trabalha para sustentar meus filhos”, conta Soares à piauí, em sua casa em Belo Horizonte. Durante uma briga, Silva chegou a encostar uma faca na barriga dela, ameaçando-a na frente dos filhos. Um vizinho interveio, evitando o pior. Com medo, a empregada doméstica – que estava grávida de Alice, sua filha com o outro homem – resolveu se mudar para a casa da mãe. Tentou levar Adrian e Talia com ela, mas Silva a impediu. Soares procurou a ajuda da Justiça. Confrontada com o ex-marido, acabou perdoando-o pelas agressões, após ele se ajoelhar diante dela e pedir desculpas pelos maus-tratos.
No começo de maio de 2020, quando a pandemia já seguia a passos largos pelo Brasil, Lucilene Soares perdeu o emprego de doméstica. Em 10 de maio, Dia das Mães, Jennifer, então com 19 anos, foi cumprimentá-la pelo seu dia e consolá-la pela perda do emprego. Quando chegou na casa de sua mãe, por volta das oito da noite, Soares estava se preparando para dar banho em Talia. Na sala, brincavam Adrian, de 6 anos, e Alice, de apenas 1 ano. Da cozinha emanava um cheiro bom da torta de maçã que a mãe estava fazendo. Jennifer sentou-se no sofá e, enquanto esperava Talia tomar banho, resolveu ligar para uma amiga. Do banheiro, Soares escutou a filha mais velha dizer ao celular: “Só vim aqui dar um abraço na minha mãe e já vou embora.”
Foram as últimas palavras que ela ouviu da boca de Jennifer. Logo em seguida, sons fortes de pancadas reverberaram no banheiro e, depois, gritos de desespero. Na frente das crianças, o padrasto matou Jennifer com golpes de facão, atingindo-a no pescoço e na mão. Depois, jogou a arma no chão da sala e fugiu.
“Não é para qualquer um, não. Para mim, foi um cenário de terror. Minha filha era minha amiga, minha companheira, era meu tudo”, diz Soares, na sala de sua casa onde Jennifer foi morta. “Eu tive que ir sozinha no IML [Instituto Médico Legal] para reconhecer a minha filha e tive que escolher o caixão, que paguei com o acerto que tinha acabado de receber no meu trabalho.”
Depois do crime, a empregada doméstica foi viver outra vez com a mãe, acompanhada dos três filhos. Demorou três meses para retornar à sua própria casa. “Eu até vim aqui antes, mas, quando coloquei a chave na porta, não consegui abrir.”
Uma irmã e uma sobrinha de Lucilene Soares limparam o sangue derramado na sala. Mas vestígios do crime persistiram durante os meses em que o local ficou trancado. Ao voltar de vez para sua casa, a empregada doméstica lavou as cortinas e jogou fora um armário que não conseguiu limpar. Passou três camadas de tinta branca nas paredes internas da sala e pintou de azul-claro a fachada, onde também havia resquícios de sangue. Os dois pequenos sofás ela apenas cobriu com mantas, porque está desempregada e não tem dinheiro para comprar outros ou mandar lavar no serviço especializado. “A vida da minha filha ficou aqui”, ela diz, levantando as mantas e deixando ver grandes manchas escuras sobre o tecido vermelho.
As três crianças ficaram inquietas ao voltar à casa, como se viver ali as perturbasse, principalmente Adrian. Aos pedidos dele para que se mudassem, Lucilene Soares respondia: “Mamãe não tem dinheiro pra pagar aluguel ou comprar outra casa. É aqui que vamos ficar, essa é a nossa casa.” Ela não consegue falar mais do que alguns minutos sobre a filha sem começar a chorar. Seus vizinhos também caem em lágrimas ao se lembrar da jovem. Alguns deles nem se atrevem a entrar no local onde Jennifer foi morta.
Foram os vizinhos que, imediatamente após o crime, entraram na casa, pegaram os pertences de Silva e queimaram tudo no meio da rua. “Só consegui guardar o álbum do casamento”, conta Soares, hoje com 37 anos. Nas fotos de pouco mais de uma década atrás, ela parece outra pessoa: mais alta, mais radiante. Hoje, seu rosto está cheio de rugas, o ar juvenil dos retratos desapareceu e os olhos afundaram-se na face magra. Seu corpo baixo parece querer se encolher em cada gesto. Mesmo quando ela sorri, a tristeza não se desfaz em seu rosto. Além do desassossego emocional, tem o econômico. Soares não recebe ajuda do Estado e vive de alguns trabalhos que arruma no dia a dia.
“Tem vezes que eu sento aqui na sala e converso sozinha, como se estivesse falando com a Jennifer”, diz Soares. “Penso: se eu estivesse na sala na hora que tudo aconteceu, ela não teria morrido, eu não teria permitido.” Ela não se cansa de rememorar aquele dia, achando que tudo poderia ter sido diferente. “No início eu me senti culpada. Mas depois eu falei para mim mesma: ‘Não. A culpa é dele. Foi ele que tirou a vida da minha filha, não fui eu.’”
Pouco depois do crime, Silva se entregou à polícia. “Ele achou que, se apresentando dois dias depois, ia sair pela porta da frente”, afirma Soares. Foi condenado a 21 anos e um mês por homicídio qualificado – e não por feminicídio. Promotores ouvidos pela piauí disseram que o caso de Jennifer tem as características de feminicídio, mas que eles não falariam publicamente sobre o caso, pois suas declarações poderiam ser tomadas como contestação da decisão judicial.
O marido de Jennifer, Lucas Sena, não tem dúvida: sua mulher foi vítima de um feminicídio. “Ele deu um chupão no pescoço dela aos 9 anos. Isso é assédio. Tentou beijar ela”, diz Sena, na casa que vive com a filha, Helena, de 5 anos, no Barreiro, onde também fica a sua pequena pizzaria. “Deram 21 anos de prisão pra ele. Você acha que no Brasil ele vai cumprir 21 anos? Deve pegar uns sete anos e sair. E olha lá se for isso. Veja o caso do goleiro Bruno, que também foi terrível: o cara cumpriu apenas dez anos.” Em 2013, acusado de matar Eliza Samudio, Bruno Fernandes das Dores de Souza foi condenado a 20 anos e 9 meses de prisão por homicídio triplamente qualificado – e não por feminicídio. Ficou 8 anos e 10 meses preso em regime fechado. Em 2019, passou para o regime semiaberto domiciliar.
A mãe de Jennifer diz: “Muitas pessoas chegaram perto de mim para falar que ele devia ser apaixonado pela minha filha e, como não podia ficar com ela, resolveu que não ia deixar ela ficar com ninguém.” Mas Soares acha que o ex-marido cometeu o crime por vingança. “Eu sinto que ele quis se vingar de mim. Um dia antes do crime, falou que eu ia ter uma surpresa muito desagradável. Pensei que ele ia tirar meus filhos”, conta. “Foi com o meu dinheiro que ele comprou o facão que matou minha filha.”
Da prisão, Silva costuma enviar cartas à ex-mulher dizendo estar arrependido e sentir a falta dos filhos. “Para mim é sofrimento triplicado, porque eu sofro pela morte da minha filha, pelo sofrimento dos meus filhos e pelo da minha neta, Helena”, afirma Soares.
Lucas Sena também oscila entre achar que poderia ter evitado a morte de Jennifer e saber que não teria como mudar o rumo da tragédia. Nas dezenas de fotos que ele e a sogra guardam no celular, Jennifer aparece sorrindo ou fazendo poses, sempre com o cabelo bem-arrumado e as unhas feitas. Nos vídeos, ela parece um furacão de alegria. Sena conta que, após o assassinato, o ódio tomou conta dele. “Eu perguntava a Deus: ‘Por quê?’ Dava soco na parede e até machuquei a cabeça. Eu mesmo me feria para sentir alguma coisa que me aliviava. Não durmo tranquilo até hoje”, diz. “Na primeira semana depois do fato, sonhei que a gente estava numa pracinha com brinquedos, com umas casas todas bonitinhas ao redor. Ela estava sentada de costas e eu chamei: ‘Jennifer.’ Ela levantou e eu falei: ‘Estou com muita saudade, volta.’ Mas ela só sorriu.”
Adrian e Talia, agora com 8 e 6 anos, sabem que o pai deles está preso. Antes, Talia falava: “Não tenho saudades do meu pai porque ele fez mal para a Jennifer.” Agora, costuma perguntar: “Mamãe, que dia que a senhora vai me levar para ver meu pai?” Adrian chegou a ver Silva algemado numa reportagem na tevê. “Ele gritou: ‘Olha lá meu pai!’ Chorava, esperneava, defendia o pai de tudo e qualquer jeito”, lembra Lucilene Soares.
Para Sena, a semelhança física de Adrian com o pai é algo que o perturba. “Sei que ele é uma criança, mas querendo ou não, dá um receio na hora que o vejo. Até o olhar é o mesmo. Não tenho raiva nenhuma do Adrian, jamais. Ele e a Talia são vítimas. Talia veio aqui na pizzaria, viu uma faca e pediu para esconder. Até tampou o rosto – pra você ver o trauma que ela viveu.”
Soares levou Adrian e Talia a um psicólogo, conseguido com o apoio do Ministério Público. Mas parou com as consultas por não ter dinheiro suficiente para a condução. Agora é Lucas Sena quem pensa em buscar ajuda psicológica, “para aliviar um pouco” o que sente. As camadas dessa dor são múltiplas.
“Senti mágoa contra a Lu, sim”, diz, referindo-se à sogra. “E senti muito porque ela mesma deveria ter evitado. Mas a gente não entende a cabeça do assassino. Eu sei que o culpado é ele, não ela.” Sentada na frente do genro, Soares escutava tudo em silêncio. “Toda a vida, a Jennifer sempre olhou meu lado, ela me mudou demais. Eu estava começando a melhorar graças a ela”, afirma Sena, que não terminou os estudos, mas aprendeu a atividade de pizzaiolo. Ele tem 29 anos, é negro, alto e magro, com o cabelo cortado bem curto. Sua vida é atravessada por mortes violentas: além da mulher, foram assassinados seu irmão e uma amiga. Seu pai morreu num acidente de trabalho.
Não há fotos de Jennifer expostas na sua casa. “É para evitar que a Helena pergunte pela mãe”, ele explica. As roupas e outros objetos pessoais da jovem foram dados para a sogra. Sena guardou somente um coração de pelúcia, um suéter e um perfume, que escondeu da filha. Ele não quer que o perfume acabe: é o cheirinho de Jennifer, sempre com ele.
Após o assassinato, Sena e Helena se mudaram para uma casa em que não existe sala: da porta de entrada segue-se por um corredor que leva diretamente ao banheiro e à cozinha estreita, com uma mesa de dois lugares. A cozinha dá em um quarto com dois armários pequenos e uma cama de casal, onde dormem pai e filha. “A gente lutou muito. Depois de tanto perrengue, Jennifer e eu alugamos uma casa grande, que eu limpei e pintei. Na entrada, eu queria colocar uma venda de açaí, que a Jennifer adorava, para ela ter o dinheirinho dela. Mas a gente entrou na casa na segunda, e no domingo seguinte aconteceu o fato.”
Sena sempre se refere ao assassinato como “o fato”. Depois da morte de Jennifer, ele deu cabo de tudo que possuía: uma motocicleta e um terreno, onde estava quase terminando de construir sua casa própria. “Eu tinha um sonho muito grande com ela. Desanimei de tudo. Me arrependo, porque foi uma burrice que eu fiz. Mas acontece que o sonho que eu tinha era com ela. Como eu ia viver esse sonho com outra pessoa, naquele lugar?” Ele não contém o choro. Depois de alguns minutos de silêncio, diz: “Não tem um dia em que eu não pense nela, entendeu?”
A mesma imagem volta à sua mente todas as noites: Jennifer ensanguentada, caída no chão da sala. Ele diz que passa a maior parte das noites sem dormir, olhando para o teto, pensando. Insone, como a sogra, costuma conversar com ela no WhatsApp de madrugada. No início, tomava remédio para dormir, depois recorreu à bebida. “Eu fui me destruindo.” Mas voltou a organizar sua vida por causa de sua mãe e das duas filhas – além de Helena, ele é pai de Thayla, de 10 anos, com outra mulher.
Com um sorriso, Sena mostra as fotos de Helena. Ele recorreu a vídeos no YouTube para aprender como pentear e arrumar os cachos da filha, que se assemelham muito aos de Jennifer. Não foi fácil contar à menina o que aconteceu com a mãe, mas ele resolveu fazer isso de imediato. “Eu já estava sofrendo muito e fui falando.”
Na hora, ele colocou um pagode, A Deus, de Chininha e Príncipe, que diz: Não consigo aceitar que você foi embora/A gente tinha tanta coisa pra fazer/Mas brutalmente a vida me levou você. “É papai que está cantando pra mamãe”, ele disse à filha. “E falei: ‘Mamãe tá no céu, virou estrela.’ Ela começou a entender. Mas não vamos dizer que entendeu. De vez em quando, pergunta: ‘Papai, quando você vai comprar um helicóptero para buscar a mamãe lá no céu?’ Eu digo: ‘Vamos, sim, Helena. Um dia nós vamos para o céu também.”
Apesar de sua fé estar abalada, Sena voltou a frequentar a igreja neopentecostal Ministério Profético Kairós em busca de conforto interior. Ele não punha os pés lá desde que seu irmão foi assassinado, há dez anos. “Peço muito a Deus para tirar isso do meu coração, mas não minto: também peço que me deixe pôr a mão nele”, diz, referindo-se a Silva, o homem que matou sua mulher. Ele não consegue perdoá-lo, ao contrário da sogra, que acha que o perdão é necessário para ela poder seguir sua vida.
Depois que passou a cuidar sozinho da filha, Sena mudou a forma como vê as mães solteiras e viúvas. “Agora entendo as dificuldades que elas passam, o que é cuidar de uma criança, de uma casa, fazer comida.” Mais apegado à filha, ele quer dar a Helena “um futuro”, como diz. “É isso que me deixa em pé.” Apesar das dificuldades durante a pandemia, ele conseguiu manter em funcionamento a pizzaria Degusta, que abriu quando sua mulher estava viva.
É um pequeno local de vendas delivery, com um balcão e uma cozinha. A pizza À Moda – com presunto, calabresa, cebola, azeitona verde e pimentão – é a que mais vende. Sena está agora preparando uma delas na cozinha. Estica a massa sobre a mesa e, de forma metódica, pega os ingredientes em vários potes etiquetados. Depois, apanha uma faca de cabo branco para cortar a linguiça calabresa, o que faz de modo certeiro e rápido. No cabo da faca, ele colou uma etiqueta onde se lê: “Célio” – o prenome do assassino de sua mulher. “É para eu nunca esquecer”, explica Sena. Enquanto termina de fazer a pizza, ele conta que, dias antes do assassinato, Helena sonhou que Jennifer havia morrido. “Parece que a morte gosta de viver aqui por perto da gente”, diz.
[1] Antônia, Pedro, Carmen, Cecília e Ana são nomes fictícios. Os nomes verdadeiros das pessoas relacionadas a este caso foram omitidos, a pedido das que foram entrevistadas pela piauí.
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