Um aliado de Eduardo Campos comparou a opção de Marina a um prêmio imprevisto: "É como se um dia te ligassem dizendo 'Aqui é da Loteria Esportiva, a gente dividiu o último prêmio entre os vencedores e ainda sobrou um dinheiro aqui, você quer?'" ILUSTRAÇÃO: LOREDANO_2013
O casamento do ano
Como Marina Silva gestou seu plano C e se juntou a outro ex-ministro de Lula para enfrentar o PT
Carol Pires | Edição 86, Novembro 2013
Marina Silva estava sentada em uma mesa nos fundos do restaurante do seu hotel, na Vila Olímpia, bairro rico de São Paulo, embrulhada em um xale vermelho-alaranjado. A manhã estava clara, mas fazia frio na cidade na última terça-feira de outubro. Marina conversava com o deputado Walter Feldman, como ela recém-filiado ao PSB, quando seu assessor de imprensa se aproximou. “O Estadão hoje pôs vocês dois na capa”, avisou. Os dois eram Marina Silva e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos. “Você está de língua de fora”, completou o assessor.
– Humm… de língua pra fora? – perguntou Marina, espaçando as sílabas.
– É simpático… a foto mais famosa do Einstein é de língua pra fora – contemporizou Feldman.
– Bem, agora a gente tem que ter cuidado até para respirar – ela disse.
O assessor Nilson de Oliveira riu discretamente e disse que Marina havia ficado com cara de marota na foto.
– Mas eu não sou uma pessoa marota – ela rebateu, acentuando o “não”.
Marina Silva e Eduardo Campos haviam passado a manhã e a tarde do dia anterior, 28 de outubro, reunidos com aliados em São Paulo no Primeiro Encontro Programático entre a Rede Sustentabilidade, o partido sem registro dela, e o Partido Socialista Brasileiro, o PSB, do qual ele é o presidente. Aquela foi a quarta vez que apareceram juntos em público em um mês.
O encontro pretendia traçar um rascunho de um plano de governo conjunto. No fim do dia, concederam uma entrevista coletiva. Como Marina critica a troca de apoio político no Congresso por cargos no governo, o título da reportagem na capa d’O Estado de S. Paulo do dia seguinte era: “Marina defende coalizão de catorze partidos da gestão Campos.”
A primeira aproximação entre os dois remonta a 2010. Marina disputava a Presidência da República pelo Partido Verde, enquanto Campos liderava as pesquisas para se reeleger governador de Pernambuco. Sérgio Xavier, do PV, era um dos lanterninhas no estado, sem nem sequer um ponto percentual nas pesquisas.
Naquela campanha, Xavier acusou o governo de Pernambuco de querer “cobrir de concreto o imenso manguezal” onde fica o Complexo Industrial Portuário de Suape, na região metropolitana do Recife. Escreveu em seu blog que havia sobrevoado a região com Marina e registrado várias afrontas ao meio ambiente.
Reeleito com quase 83% dos votos, Campos criou a Secretaria de Meio Ambiente (até então Pernambuco não tinha uma) e convidou o opositor Sérgio Xavier para assumi-la. Os verdes demoraram a responder. Apresentaram uma lista de quinze condicionantes: investimentos em ciclovias, que Pernambuco não tivesse usina nuclear, que todo o passivo ambiental da construção do porto de Suape fosse resolvido etc. Campos aceitou a lista. E Xavier, o cargo.
Em maio deste ano, quando o processo de coleta de assinaturas para a criação da Rede Sustentabilidade já havia começado, Marina Silva foi ao Recife para fazer uma palestra. Sérgio Xavier, ainda secretário de Meio Ambiente, perguntou se Eduardo Campos não estaria disposto a assinar a ficha de apoio à Rede. Ele topou e plantou ali uma semente.
No dia 14 daquele mês, Marina, Campos, Xavier, o deputado verde Alfredo Sirkis (agora no PSB) e Pedro Ivo Batista, um dos coordenadores da organização da Rede, se reuniram por pouco mais de uma hora no Palácio das Princesas, no Recife. Marina e Campos haviam trabalhado juntos no governo Lula – ele como ministro da Ciência e Tecnologia, ela como ministra do Meio Ambiente. Nunca tiveram um embate público, mas tampouco fizeram parcerias importantes.
No reencontro, os dois se desarmaram. Marina falou do projeto de lei “casuístico” que proíbe deputados filiados a um partido político recém-criado de levarem consigo o tempo de televisão e os recursos do fundo partidário atrelados ao mandato.
A proposta que tirava o oxigênio dos novos partidos havia sido apresentada em 2012 pelo deputado Edinho Araújo, do PMDB de São Paulo, e se arrastava na burocracia legislativa. Bastou Marina anunciar a Rede para que os líderes governistas imprimissem regime de urgência à tramitação. Sete dias depois de determinada a urgência, o projeto estava aprovado na Câmara dos Deputados.
Em 2011, quando o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab fundou o PSD, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os novos partidos tinham, sim, direito ao tempo de televisão proporcional a seus integrantes no Legislativo. O projeto encampado pelo governo mudava esse entendimento e colocava a Rede em risco de ficar sem ar, ainda que a legenda tivesse seu registro aprovado.
Nessa mesma conversa, Eduardo Campos também se mostrou irritado com o que chamou de “medidas persecutórias” do governo. Mencionou como exemplo a presença da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, no porto de Suape, monitorando portuários e sindicatos contrários à medida provisória que mudou a gestão dos portos.
Depois do encontro, um repórter perguntou a Marina se ela tinha identificação programática com o PSB. Ela respondeu com outra pergunta: “Vocês já perguntaram a ele [Campos] se tem identificação programática com a Rede?”
Da viagem ao Recife, porém, o que ganhou as manchetes na imprensa não foi o encontro entre os dois, e sim a declaração dela de que o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o pastor Marco Feliciano, deveria ser criticado por suas opiniões equivocadas, não por ser evangélico. Marina disse que isso era combater um preconceito [de Feliciano contra os gays] com outro [contra os evangélicos]. Uma das manchetes daquele dia dizia: “Marina Silva sai em defesa do pastor Marco Feliciano.”
Cinco meses mais tarde, Sérgio Xavier estava em um hotel, em São Paulo, quando o Tribunal Superior Eleitoral indeferiu o registro da Rede Sustentabilidade como partido político. Ainda filiado ao Partido Verde, ele é um dos articuladores da Rede de Marina.
Xavier embarcou para o Recife na manhã do dia seguinte. Tinha acabado de entrar em casa, por volta de uma hora da tarde, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha era Marina. Sem cerimônia, pediu que ele fosse logo a Brasília. Avisou que tinha uma ideia, mas não quis revelá-la por telefone.
Mal desligou a chamada, Xavier recebeu outra. Era Eduardo Campos, que acabara de falar com Walter Feldman. Ambos – governador e secretário – deveriam ir a Brasília.
– Eu sei, acabei de falar com Marina.
– E o que foi que ela disse?
– Te digo no avião.
Às 15h30 de sexta-feira, 4 de outubro, o jato particular levando os dois decolou em direção à capital.
Marina Silva foi a ministra do Meio Ambiente mais prestigiada do Brasil. Isso fora do país. Em 2008, o jornal britânico The Guardian a incluiu na lista das cinquenta pessoas que podem salvar o planeta. Naquele mesmo ano, Lula nomeou o então ministro Mangabeira Unger para coordenar o Plano Amazônia Sustentável, um projeto articulado por Marina – e ela, desgastada por uma sucessão de embates perdidos, pediu demissão.
Marina saiu do governo sem romper publicamente com Lula. Já adversária de Dilma Rousseff, disse na campanha de 2010 que, apesar do afastamento, ainda podia sentir o coração de Lula. Perguntei recentemente se ela ainda diria o mesmo. “O homem é o homem e suas circunstâncias”, respondeu, valendo-se de uma surrada expressão do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. “Eu fui visitar o Lula quando ele estava fazendo o tratamento do câncer. E o coração dele é aquele. Mas ele tem circunstâncias que são maiores que ele. E eu não quero que as circunstâncias me impeçam de seguir sentindo o coração dele.” Marina disse isso e a seguir chorou.
Em 2010, no PV, ela havia surpreendido a todos. Obteve 19 milhões de votos. Ficou atrás de Dilma e do tucano José Serra, mas foi a terceira colocada mais votada em uma disputa presidencial desde a redemocratização. Foi em grande medida a responsável por levar a eleição para o segundo turno.
Fortalecida, apresentou então uma relação de 42 propostas como condição para apoiar um dos lados. Nem Serra nem Dilma compraram o pacote e Marina se absteve. No ano seguinte, saiu do PV atritada, acusando o partido de não ter cumprido a promessa de realizar eleições internas para renovar sua diretoria.
Sem partido, passou ao largo das eleições municipais do ano passado, o que muitos julgavam ser um erro e um risco de cair no ostracismo. Sua vida política passou a se organizar em torno do Instituto Democracia e Sustentabilidade, o IDS, onde se reúnem com frequência o empresário Guilherme Leal, dono da Natura e principal financiador da campanha de 2010 – na qual foi candidato a vice –, o ambientalista João Paulo Capobianco, o vereador Ricardo Young (ex-presidente do Instituto Ethos) e a socióloga e empresária Maria Alice Setubal, segunda maior doadora física da campanha (573,5 mil reais) e uma das herdeiras do Itaú/Unibanco (banco que doou 1 milhão de reais à campanha verde à Presidência).
Dentre esses, Neca Setubal (apelido como é conhecida a filha do banqueiro Olavo Setubal) é quem mais esteve do lado de Marina na gestação da Rede, inclusive durante toda a semana que antecedeu o julgamento no Tribunal Superior Eleitoral. Quando estive no escritório de Neca, nos Jardins, em São Paulo, no começo de outubro, a secretária havia acabado de colocar sobre a mesa toda a agenda de Marina Silva para os dois meses seguintes.
Foi Leal, de quem Neca é amiga desde os 18 anos, quem a apresentou a Marina. Começaram a se aproximar depois de uma gravação de campanha no estúdio do diretor Fernando Meirelles. “A Marina disse: ‘A Neca e eu temos muitas coisas em comum.’ Eu levei um susto, pensei: ‘O que será que ela vai falar?’ Aí ela disse que tinha sido educada para ser uma menina pobre do seringal do Acre e eu uma menina rica de São Paulo. E porque a gente tinha ido contra o nosso destino, tinha se encontrado”, contou.
“É muito comum as pessoas falarem: ‘Ah, Neca, você podia estar na Daslu, mas você está aqui, que legal.’ E esse é um discurso que eu acho superirritante, porque é rotular que as pessoas têm que falar desse jeito, têm que atuar dentro daquele padrão.”
Enquanto a cúpula da campanha de 2010 se reagrupava no IDS, os militantes de base criaram o Movimento Nova Política. O grupo se descreve como “livre, aberto, autônomo e democrático, suprapartidário e sem vínculo religioso”. No começo de 2013, os “sonháticos”, como se denominam, começaram a discutir se deveriam formar um partido ou não. Marina anunciou em fevereiro que trabalharia para criar a Rede Sustentabilidade. Cerca de 12 mil militantes foram às ruas pedir assinaturas de apoio à nova legenda.
A brasiliense Joyce Matias, de 31 anos, foi uma das responsáveis pela coleta no Distrito Federal. Tinha conhecido Marina em 2007, durante uma audiência no Meio Ambiente entre a ministra e movimentos sociais. Militante do PSOL à época, Joyce se filiou ao PV. Tentou ser deputada federal, gastou 1 800 reais na campanha e não se elegeu. Saiu do PV junto com Marina. Para trabalhar pela Rede, pediu demissão do emprego de gerente comercial de uma loja em Brasília.
Na abertura da Copa das Confederações – Brasil contra Japão no Estádio Mané Garrincha, em junho deste ano –, Joyce reuniu 119 militantes. Dentro do estádio, a presidente Dilma Rousseff foi vaiada; do lado de fora, policiais atacaram manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo e gás de pimenta. Ao final de seis horas, o grupo de Joyce havia coletado 7 mil assinaturas – quase sessenta nomes por militante.
No Brasil todo, a Rede conseguiu 910 mil apoios, mas os próprios militantes descartaram 236 mil deles em uma triagem. As informações que não conferiam no site do TSE, por exemplo, foram jogadas fora. As de homônimos também.
Pela Lei dos Partidos Políticos, para registrar uma nova legenda é preciso reunir um número de assinaturas correspondente a 0,5% do total de votos válidos na última eleição para a Câmara Federal. É necessário que em pelo menos nove estados essas assinaturas correspondam a no mínimo 0,1% dos votantes. Para a Rede, isso significava alcançar o mínimo de 491 949 assinaturas validadas. O partido de Marina conseguiu 442 524 reconhecidas pela Justiça Eleitoral.
Marina Silva chegou ao Tribunal Superior Eleitoral com um colar de flecha no pescoço. Atravessou o salão tranquila, acompanhada do deputado carioca Miro Teixeira, então no PDT, e de Neca Setubal. A corrente e o pingente de flecha foram talhados e montados pela própria Marina. Uma ponta da flecha é a réplica da lança dos índios apurinãs, do Amazonas, em forma de seta. A outra, como um garfo de duas pontas, é dos índios craôs, da região fronteiriça do Norte com o Nordeste.
Marina ainda falava ao telefone com a filha Moara, tentando saber se ela tinha conseguido entrar no tribunal, quando o julgamento do pedido de registro da Rede começou, às 19h7 do dia 3 de outubro. Nas duas horas e 37 minutos seguintes, ela permaneceu concentrada nos ministros, sentada ao lado do senador do PMDB gaúcho Pedro Simon.
Instantes antes do início do julgamento, Alfredo Sirkis comentou com Walter Feldman: “Eu só tenho dúvida se vamos perder por unanimidade ou se teremos um voto.” Gilmar Mendes foi esse voto. Invocou o princípio da proporcionalidade: diante dos indícios de abusos dos cartórios na rejeição de fichas sem justificar as razões, a Rede não podia sofrer a maior sanção, o indeferimento.
Quase um mês depois da derrota, já filiada ao PSB, Marina fez uma palestra fechada à imprensa para cerca de 250 professores e estudantes, na Primeira Jornada de Estudos do Instituto Ciência e Fé da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba. Mais à vontade do que de costume, queixou-se da decisão do TSE: “O partido do Kassab, o partido do Paulinho e o partido daquele vereador do interior de Goiás, que disse que não tinha nada o que fazer, tava tomando uns birinaites, e resolveu criar um partido – eles conseguiram os registros.”
Além do PSD, ela se referia a dois novos partidos: o Partido Republicano da Ordem Social, Pros, e o Solidariedade. O presidente do primeiro é Eurípedes Junior, um incógnito ex-vereador de 38 anos, de Planaltina, Goiás, declarado caixeiro-viajante. O do segundo é o deputado federal Paulinho, ex-presidente da Força Sindical.
Para formar o Solidariedade, Paulinho contratou o advogado trabalhista Marcílio Duarte, que também atuou na fundação de outras seis legendas: Prona, PGT, PTN, PTR, PSL e PST. A coordenadora da coleta de assinaturas da Rede foi a advogada Marcela Moraes, uma paulista de 32 anos que estava estudando para o concurso da Defensoria Pública de São Paulo quando se aproximou de Marina, na campanha de 2010. No começo deste ano, Marcela se debruçou sobre a legislação eleitoral e enfrentou pela primeira vez a missão de viabilizar legalmente a fundação de um partido.
Ao deixar o TSE depois de ver seu pleito derrotado, Marina ainda não tinha um plano B. No estacionamento do tribunal, avisou à filha Moara que estava indo para a casa da socióloga Maristela Bernardo, sua amiga de longa data. Pegou uma carona com Miro Teixeira. Com ela foram também Walter Feldman e Alfredo Sirkis.
“Eu fui entrando no carro e pensei: a gente dizia que não tinha plano B. Mas qualquer decisão que tomássemos, a interpretação seria de que aquele era o plano B. Iam dizer que a gente já tinha e não queria revelar. Mas o alfabeto tem outras letras, então você pula uma – já que não tinha o B, teria o C.” O sentido, segundo ela, surgiu antes da figura.
No trajeto até a casa de Maristela, os deputados reclamavam em voz alta contra a decisão. Miro Teixeira já negociava deixar o PDT para se integrar ao Pros. Sirkis era o mais preocupado. Sem a Rede,queria ficar no PV, mas tinha recebido o recado de que não teria vaga como candidato. Walter Feldman ainda estava filiado ao PSDB. Marina era a mais calma.
Desde 2011, quando ocupou em Londres o cargo de secretário especial de Articulação para Grandes Eventos de São Paulo, na prefeitura de Gilberto Kassab, Feldman vinha se aproximando de Marina. Um dia ligou para ela da capital inglesa: “Estou em busca de uma referência. Queria sentar com você.” Remanescente da turma de Mario Covas, até a noite do revés ele nunca havia perguntado a Marina se havia alternativa caso a Rede não saísse do papel. Ela tampouco aceitava conversar sobre isso. Todas as 21 pessoas com quem falei disseram que Marina nunca tinha aceitado tocar no assunto. No carro, Feldman puxou o assunto:
– Olha, eu nunca te perguntei isso…
– Eu sei. Mas agora nós vamos discutir.
No início da madrugada da sexta-feira, o porteiro do prédio de Maristela estava surpreso. “Subiram mais de quarenta pessoas para um apartamento onde só cabem umas seis.” Marina ficou sentada no único sofá da sala, de três lugares, ao lado da filha e do marido. Muitas pessoas ficaram de pé, outras se acomodaram no chão.
O primeiro a falar foi Pedro Ivo Batista – um cearense de 52 anos, óculos de ar acadêmico e barba e bigode estilo Lênin –, amigo de Marina desde os 20 e poucos anos, quando ambos estudavam história e militavam no Juventude Caminhando, o braço do Partido Revolucionário Comunista no movimento estudantil.
O PRC era um partido marxista clandestino que funcionava dentro da estrutura do Partido dos Trabalhadores. Quando, em1989, a organização se desfez, Pedro Ivo e Marina seguiram caminhos diferentes no PT: ele foi para a corrente Tendência Marxista, que defendia a ditadura do proletariado, e ela para a Nova Esquerda, de inclinação reformista.
Lula chamou Marina para ser ministra do Meio Ambiente em 2003 e ela convidou Pedro Ivo para sua equipe. “Isso me tocou muito, porque quem conhece o pessoal do PT sabe que as pessoas da Tendência Marxista só chamam pessoas da Tendência Marxista para trabalhar.” Quando conversamos, numa sexta-feira, Ivo aproveitava a ausência de Marina para comer carne numa churrascaria em São Paulo. Assim que ela saiu do Ministério, ele foi junto. Do PT, foram para o PV e também juntos saíram dele. Ivo agora é do PSB.
Marina Silva disse na saída do TSE e repetiu na casa de Maristela que a Rede Sustentabilidade era o primeiro partido clandestino formado na democracia. Com 26% das intenções de voto àquela altura, ela era a única que poderia levar a disputa eleitoral contra Dilma para o segundo turno.
A opção mais discutida era o Partido Popular Socialista. Em Brasília há uma piada segundo a qual o PPS é um partido comunista de direita. Sucessor oficial do antigo PCB, a legenda caminhou para uma oposição estridente ao governo Lula, como força auxiliar do PSDB e do DEM. Marina teria que explicar por que se aliaria a um opositor do projeto de governo de que fez parte durante anos a fio.
As outras opções postas sobre a mesa eram partidos totalmente inexpressivos, o Partido Ecológico Nacional ou o Partido Humanista da Solidariedade. “Se fôssemos para um nanico, a imprensa ia tirar um esqueleto do armário por semana, seria muito desgastante”, disse Sirkis, semanas depois, no gabinete na Câmara dos Deputados, vestido de gravata verde e terno arrematado com meia social e tênis Nike preto, ao estilo do verde alemão Joschka Fischer, que, como o carioca, é um ex-carbonário convertido à moderação.
Sirkis é a Cassandra no teatro grego da Rede. Ao sustentar que seria difícil acomodar todos os perfis do partido em uma sigla como o PPS, ele se lembrou de ter dito naquela madrugada:
– Olha só, nós somos um grupo extremamente heterogêneo. Temos aqui evangélicos, social-democratas, temos ex-petistas, ainda muito afinados com aquela cultura, temos verdes, temos extrema-esquerda e temos anarquistas. Isso tudo para um movimento, tudo bem. Mas para um partido convencional é complicado demais gerir todas essas contradições.
Houve um mal-estar no ambiente. Marina não gostou da insinuação de que evangélicos eram conservadores, nem da descrição da Rede como um saco de gatos. “Eu só fiz uma observação de que dentro da Rede, da direção da Rede, os evangélicos são poucos, que não têm nenhum poder de decisão”, me explicou Marina depois.
Alguém defendeu que ela não se filiasse a partido nenhum e se apresentasse como anticandidata. Sirkis perdeu de vez a paciência: “Eu já estava assim, no pico da irritação. Porra, a oito horas de tomar a decisão fatal, aconteceu exatamente o que eu tinha plantado, e eu ouvindo essa opinião sem pé nem cabeça.” Ele se levantou, avisou que tinha que ir embora e disse:
– Quando você decidir, me manda um SMS.
Marina ficou chateada com a ironia. Disse que uma decisão dessa não se comunica por mensagem de texto e respondeu no mesmo tom:
– Você me dá o direito de te ligar?
No livro Marina Silva, a Vida por uma Causa, a jornalista Marília de Camargo César relata que Fabio Vaz de Lima, o marido da biografada, lhe contou, aos risos: “Marina é teimosa feito uma porta. Quando decide uma coisa, dificilmente muda de ideia. Fica com aquele jeitinho de quem está escutando, mas se já tomou a decisão…”
Todos já haviam comido pizza e dado a sua opinião. Sirkis já tinha deixado o apartamento daquele jeito. Marina então pediu que os demais fossem para casa descansar, com exceção do marido, da filha Moara e de assessores mais próximos.
Feldman desceu com o grupo, mas Marina pediu que ele voltasse. Já eram 3h30 da madrugada.
– Eu vou falar algo que me ocorre aqui, para ter um feedback do movimento de sobrancelha de vocês – disse Marina. Ponderou, então, que se ausentar da eleição e esperar 2018 não seria coerente com o discurso de que a preservação do meio ambiente é uma questão urgente. Por outro lado, se escolhessem outro partido para viabilizar sua candidatura, seriam acusados de incoerência e oportunismo. A saída não podia ser um partido de aluguel.
– A gente saiu baleado do TSE e vamos morrer sangrando na pista. Isso vai prejudicar a Rede, vai prejudicar as nossas ideias, as nossas propostas. A gente vai perder a potência – prosseguiu.
E então emendou: “O que eu acho que é mais potente é a gente conversar com o Eduardo Campos, apresentar nossas ideias, e, se ele se comprometer com essas ideias, a gente apoiar a candidatura dele.”
“Quando eu falei isso, as sobrancelhas encostaram no cabelo”, relembrou Marina, sorrindo.
Pedro Ivo foi o primeiro a dar apoio, usando a mesma expressão que Feldman usara minutos antes: “Genial!” Fabio Vaz, o marido, não reagiu bem. Achou que ela não podia desperdiçar o capital político da eleição de 2010. Neca Setubal concordou: “Poxa, Marina, não consigo te ver de vice.”
João Paulo Capobianco, ex-secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, coordenador da campanha do PV em 2010 e hoje presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade, também não entendeu. “[Campos] não foi um ministro com o qual nós desenvolvemos parcerias nem coisas importantes no governo.” Semanas depois, em São Paulo, em seu escritório na Vila Madalena, ele recordou:
“Falei: ‘Marina, eu não sei o que você está vendo.’ Mas ela insistiu que era uma oportunidade, e que ela achava que devia tentar, explorar. O fato é que saiu uma aliança mesmo.”
Todos foram para casa às cinco da manhã, quando o grupo já parecia ter assimilado a ideia. Um deles brincou: “Então agora vai ser o Campo e a Floresta.”
Marina Silva mora de aluguel, no Lago Norte, região rica de Brasília, em uma casa térrea, com dois arbustos de primavera, uma roxa e outra laranja, na frente do portão. Lá vivem a filha Moara, o filho Danilo e os boxers Torrone e Paçoca. Shalon, a filha mais velha, é casada, e Mayara, a caçula, estuda em Campinas, interior paulista. Fabio Vaz é secretário adjunto de Desenvolvimento, Indústria, Comércio, Serviços, Ciência e Tecnologia do governo do Acre. Mora em Rio Branco e vai a Brasília a cada quinze dias. São casados há 27 anos.
Enquanto Marina ainda dormia, Sirkis publicou em seu blog, às 7h55 de sexta-feira:
Para ser direto em bom carioquês: “Demos mole.”
Marina é uma extraordinária líder popular, profundamente dedicada a uma causa da qual compartilhamos e certamente a pessoa no país que melhor projeta o discurso da sustentabilidade, da ética e da justiça socioambiental. Possui, no entanto, limitações, como todos nós. Às vezes falha como operadora política, comete equívocos de avaliação estratégica e tática, cultiva um processo decisório ad hoc e caótico, e acaba só conseguindo trabalhar direito com seus incondicionais. Reage mal a críticas e opiniões fortes discordantes, e não estabelece alianças estratégicas com seus pares. Tem certas características dos líderes populistas embora deles se distinga por uma generosidade e uma pureza d’alma que em geral eles não têm.
Não tenho mais idade nem paciência para fazer parte de séquitos incondicionais e discordei bastante de diversos movimentos que foram operados desde 2010. A saída do PV foi precipitada por uma tragédia de erros de parte a parte. Agora, ironicamente, ficamos à mercê de algum outro partido, possivelmente ainda pior do que o PV.
Na noite anterior, quando o quarto ministro votou contra o registro da Rede, Eduardo Campos, que estava no Recife com o ex-deputado Pedro Valadares, ligou para o deputado Márcio França, presidente do PSB em São Paulo. Pediu que ele convidasse os parlamentares que estavam na expectativa de se filiarem à Rede a irem para o PSB.
Às 9 horas em ponto, França chegou a seu gabinete, na Câmara, e telefonou para Walter Feldman. O tucano já havia tentado falar com França uma hora antes, mas estava com o número errado.
“Convidei ele e a Marina. Convidei por educação, porque ninguém imaginou que ela fosse”, me disse França, quase um mês depois. Feldman agradeceu, confirmou que uma aproximação com o PSB seria boa, mas não deu detalhes das conversas da madrugada. França telefonou outra vez para Eduardo Campos e o avisou de que Feldman tinha sido receptivo. O governador estava entrando em uma consulta médica com a mulher, Renata, grávida do quinto filho do casal.
O senador Rodrigo Rollemberg, do PSB do Distrito Federal, tentava falar com Marina Silva desde cedo para se solidarizar pela derrota na Justiça Eleitoral, mas só conseguiu ser atendido pelo telefone às 11 horas, quando a casa dela já estava outra vez cheia de aliados. Ela agradeceu e colocou Feldman na linha. Os dois combinaram de se encontrar na casa de Rollemberg por volta de uma da tarde. O acordo começava a ser esmiuçado ali.
Mais cedo, Marina Silva comentou com o marido que deveria consultar o senador Pedro Simon. Telefonou para ele pouco antes das 9 horas e pediu reserva sobre o assunto. Simon disse que, por coincidência, estava tentando falar com Eduardo Campos naquele momento para sugerir uma aproximação. Marina imita Simon, simulando uma voz de homem gaúcho: “Claro que o Eduardo não ia te propor uma coisa assim. Mas se tu tá dizendo isso, tchê, maravilhoso!” Foi o que ela disse ter ouvido.
Os filhos e a mulher de Rollemberg não estavam em casa, e a cozinheira tinha preparado pouca comida: carne, salada, arroz e farofa. Ele pediu que ela fritasse também uns ovos caipiras, porque Feldman só come peixe e frango. Sentados à mesa com o Bazileu Margarido, coordenador executivo da Rede, começaram a conversar.
“A Marina refletiu durante a madrugada e entendeu que a melhor alternativa é o PSB. É o partido que guarda maior identidade com a gente”, disse Feldman, arrematando que a ex-senadora iria para apoiar a candidatura de Eduardo Campos. Na hora, Rollemberg pediu licença e foi ao quarto. De lá, telefonou para o governador:
– Eduardo, você precisa vir pra Brasília agora. Há uma disposição da Marina de ingressar no PSB.
– Mas é isso mesmo?
– É, é isso mesmo. Mas, olha, isso é tão importante que eu não quero que você ouça de mim, eu quero que você ouça isso do Walter.
De volta à sala de estar, Rollemberg telefonou de novo, dessa vez do seu telefone fixo, e passou o aparelho a Feldman. O tucano recordou a conversa:
– Puxa, mas isso é muito importante – disse Campos.
– É, é muito importante, a Marina já avisou a equipe. Mas não pode ser como estamos fazendo. Precisamos conversar.
– Walter, só não posso afirmar nada nesse momento sem consultar o PSB. Temos um caminho traçado.
– Não se preocupe, em nada você será constrangido. Jamais pense que a Marina vai te constranger nesse sentido.
– Eu entendo, mas eu preciso ir para essa reunião pautado.
– Eduardo, nós não queremos nada de você além daquilo que você pode dar. Será uma conversa de dois estadistas.
Tão pronto desligaram, o celular de Rollemberg voltou a tocar. Era Eduardo Campos outra vez. Avisou que estava indo para Brasília.
Nesse momento, Marina, em casa, escutava sugestões dos militantes sobre o caminho a seguir. Cerca de sessenta deles estavam conectados em rede. A discussão dissonava da conversa da madrugada com os dirigentes do partido frustrado: a maioria era contra a intenção de Marina Silva de se filiar a outra legenda.
Ao fim da conexão, ela disse que havia ouvido tudo, mas que não poderia agradar a todos. Antes de seguir para a coletiva de imprensa, bateu o martelo com dirigentes da Rede e decidiu ir em frente com o plano C.
O saco de gatos que Sirkis identifica na Rede está de alguma forma plasmado nas referências teóricas de Marina, muito variadas. Numa única palestra, ela é capaz de citar a filósofa e pensadora política Hannah Arendt, o psicanalista Jacques Lacan, o filósofo na moda Zygmunt Bauman, o sociólogo e ambientalista Eduardo Viola, o teólogo da libertação Leonardo Boff, o poeta Thiago de Mello, o filósofo e dramaturgo existencialista Jean-Paul Sartre, o escritor Victor Hugo, um versículo da Bíblia e, de quebra, um refrão dos Titãs, a banda de rock – “Tudo ao mesmo tempo agora.”
Ela também gosta de jogar com as palavras. Recorre a trocadilhos e poetiza os jargões políticos: “Num Brasil que já é gigante pela própria natureza, nós precisamos nos agigantar pela natureza das decisões que tomamos”; há no Brasil “uma política de curto prazo para alongar o prazo dos políticos”; “nosso objetivo não é de oposição pela oposição, nem de situação pela situação. Nosso objetivo é assumir posição”.
No final de outubro, Marina vinha de uma semana de viagens (São Paulo, Cascavel, Maringá, Curitiba) e demonstrava bom humor. Diante de professores, estudantes e do arcebispo de Maringá, dom Anuar Battisti, arrancou muitas risadas ao enumerar, em ritmo de despacho, as tantas doenças que já teve: “Três hepatites, cinco malárias, uma leishmaniose, uma contaminação por metais pesados, e eu vou parar por aqui para vocês não chorarem.” Aproveitou para citar Sartre: “Não somos o resultado e o produto do que o passado fez conosco, mas o resultado e o produto daquilo que fazemos com o nosso passado.” A plateia gostou.
Pelo histórico de doenças, contraídas quando trabalhava no seringal, Marina vive submetida a uma lista de interdições. A dieta é restrita, o uso de cosméticos também. Leo Cabral, o editor de vídeos que a acompanha para cima e para baixo, tem sempre na bolsa uma beterraba, da qual ela raspa o sumo para usar como batom.
Marina calcula receber, em média, 180 convites para palestras por mês. Em três anos, participou de 260. Recusa-se a dizer quantas foram pagas e quanto cobra de cachê. As apresentações podem ter um recorte econômico, social ou espiritual, mas sempre têm como solo comum o desenvolvimento sustentável, uma espécie de mantra da nova aliada de Eduardo Campos. Diz com frequência que, antes, as pessoas queriam ser algo, e hoje só querem ter coisas. Esse é um estilo de vida insustentável para o planeta, e precisamos todos “ressignificar nossas vidas”.
Entre os economistas que a cercam, Eduardo Giannetti da Fonseca é com quem Marina mais se consulta. Ele se mostra cauteloso diante da nova aliança. Diz que ainda não está convencido de que uma discussão programática pode resultar em planos de governo reais. “Para usar um termo caro ao grupo, ainda estou metabolizando”, resumiu.
Em seu livro O Valor do Amanhã, Giannetti sustenta que o crescimento econômico não deve ser o único critério de sucesso ou realização humanos, e que abrir mão do crescimento acelerado em nome de valores “afetivos, ecológicos, estéticos ou existenciais” pode ser uma escolha ética.
O problema dos limites físicos do planeta também vem sendo abordado por um dos gurus econômicos do tucanato, hoje simpático a Marina. André Lara Resende diz em seu livro recém-lançado, Os Limites do Possível, que, “se formos necessariamente obrigados a crescer e a enriquecer para continuar a melhorar a qualidade de vida, estaremos diante de um impasse, pois é evidente que não será mais possível crescer, enriquecer e sobretudo consumir nos padrões de hoje, por muito mais tempo, sem esbarrar nos limites físicos do meio ambiente”.
Se o ritmo de produção de riqueza diminui, a redução da desigualdade só pode ser alcançada com a distribuição da riqueza que existe. Segundo Lara Resende, trata-se de discutir “como reduzir as disparidades dos padrões de vida sem aumentar a intermediação do Estado e restringir as liberdades individuais”. Um dos desafios que se coloca hoje é saber “como reverter o consumismo, a insaciabilidade material, sem reduzir a percepção do bem-estar”. Marina parece pensar a mesma coisa quando afirma: “O consumo tóxico está nos inviabilizando como civilização.”
O público que a aguardava naquela sexta-feira, 4 de outubro, estava ávido por outro tipo de informação. Marina estava diante de um batalhão de jornalistas e não tinha microfone. Vestindo uma camisa preta com o símbolo da Rede, teve que impostar a voz para ser ouvida no salão. Faltava apenas um dia para o fim do prazo de filiação do TSE. Ela frustrou a todos ao dizer que o anúncio era que ainda não havia anúncio. “Aaaah, fala sério!?”, soltou no ar a repórter de uma rádio.
A hipótese da filiação ao PSB estava até então ausente da sala de entrevistas. Àquela altura, o jornalismo passava ao largo do acordo que vinha sendo urdido por ambos os lados. As perguntas tentavam arrancar de Marina se ela seria ou não candidata, e ela repetia que estava pensando em programas para o país, em quebrar a polarização entre PT e PSDB.
– Se a senhora não for candidata, essa polarização já está explícita – atalhou um jornalista.
– Olha, eu não acho que eu seja a única pessoa que pode dar essa contribuição para acabar com a lógica da oposição pela oposição. Existem outras pessoas que estão se dispondo a uma outra lógica política, de assumir posição. […] Agora há a possibilidade de uma governabilidade programática, e eu acho que isso deveria unir as pessoas de bem do país.
A entrevista acabou sem que os nomes de Eduardo Campos e seu partido tivessem sido citados.
Por volta das 15h20, quando o governador já se preparava para decolar rumo a Brasília, Walter Feldman telefonou para a sua chefe de gabinete, Patrícia Chaves. Explicou-lhe o que estava para acontecer e pediu que a reunião entre Marina e Campos, muito reservada, fosse no apartamento dela. O encontro ficou marcado para às 19h30.
Patrícia foi ao mercado, comprou frutas e quiches. Na hora marcada, chegaram Marina Silva, Walter Feldman, Pedro Ivo e Bazileu Margarido. Menos de meia hora depois, chegou Eduardo Campos, acompanhado de Rollemberg e Xavier. Os filhos mais velhos e o marido de Patrícia foram instruídos a não voltar para casa, onde ficaram apenas a babá e o caçula, de 5 anos.
Sérgio Xavier assegurou a Marina que Campos estava cumprindo as exigências feitas pelo PV em 2010 para que ele assumisse a Secretaria Estadual em Pernambuco. No momento em que Marina foi propor a aliança a Eduardo, só os três e Feldman ficaram na sala. Os demais foram para um quarto.
Como no encontro de maio, no Recife, Marina se queixou do que “eles” tinham feito com a Rede. Eduardo Campos, outra vez, disse que ela nem imaginava o que “eles” faziam com o PSB pelo Brasil. Tinham no PT um algoz comum.
Eduardo Campos abriu a conversa se solidarizando, dizendo que as pessoas da Rede que quisessem ser candidatas poderiam ingressar no PSB sem o compromisso de apoiá-lo.
“Eu fiz uma avaliação do que estava em jogo no Brasil, da necessidade de que a gente avance na política. É o atraso na política que pode subtrair os avanços que a gente já alcançou. E disse que, em cima de algo dessa magnitude, a gente até se inclinava, se ele se comprometesse com esse processo, a apoiá-lo. Mas, primeiro, a gente tinha que começar fazendo uma aliança programática, e para selar essa aliança eu me filiaria ao PSB para apoiar a candidatura dele”, recordou Marina.
Eduardo Campos arregalou os olhos azuis e passou as duas mãos na cabeça, como quem acaba de emergir de um mergulho e quer tirar a água do rosto para voltar a enxergar.
– Meu Deus! – exclamou.
– É isso mesmo – respondeu Marina.
Ele abaixou a cabeça, levou as duas mãos ao pescoço e disse:
– Minha nuca tá até esquentando.
Combinaram de segurar o anúncio até o dia seguinte. A imprensa não conseguiu adiantar uma só informação. O celular de Feldman apontava mais de oitenta chamadas não atendidas naquela tarde.
O encontro durou cerca de três horas. Eduardo Campos tomou café, Marina só tomou chá de erva-doce. Ela chegou a dizer ao novo aliado que sentia muito carinho por ele. No final, a decisão e o encontro haviam sido muito rápidos diante da dimensão do que estavam articulando. Um aliado de Campos comentou o seguinte a respeito disso: “É porque não tinha o que ser discutido da parte dele. É como se um dia te ligassem dizendo: ‘Aqui é da Loteria Esportiva, a gente dividiu o último prêmio entre os vencedores e ainda sobrou um dinheiro aqui, você quer?’”
O presidente do PPS, Roberto Freire, ficou em Brasília, à espera de um sinal de fumaça de Marina. Ao meio-dia daquela mesma sexta-feira, reafirmou, pelo Twitter, o convite para que ela disputasse a Presidência pelo PPS em 2014. Permaneceu sem notícias até as dez da noite, quando Feldman enfim lhe telefonou pedindo um encontro na manhã seguinte, no apartamento da chefe de gabinete, Patrícia. Freire ligou de imediato para os líderes do partido. Raul Jungmann chegou a Brasília sábado pela manhã com nada mais que a carteira e a roupa do corpo.
Depois do encontro com Marina, Campos e Rollemberg foram com assessores jantar no Piantella, bastante frequentado por políticos na capital. Tomaram duas garrafas de vinho. Rollemberg, que é pré-candidato ao governo do Distrito Federal, estava nervoso com a possibilidade de esbarrar com algum jornalista e evitou até mesmo cumprimentar as pessoas nas mesas ao redor.
“Fiquei morrendo de medo de vazarem a informação e desconfiarem de mim”, ele disse, dias depois, no seu gabinete no Senado. Ainda carregava no bolso do paletó cinza o papel dobrado em que havia anotado as exigências de Marina lidas por Pedro Ivo durante o encontro que selou o acordo: “Filiação democrática, coligação programática e reconhecimento da Rede como partido.”
Os militantes que esperavam Marina à noite na casa dela não sabiam o que havia sido negociado. Joyce Matias, a organizadora da coleta de assinaturas no Distrito Federal, ainda tinha o rosto marcado da pintura dos índios kayapós que fizera semanas antes. Começou a chorar quando ouviu a decisão de sua líder.
Duas semanas mais tarde, já sem pintura no rosto, mas com um brinco da tribo kamaiurá na orelha esquerda, Joyce contou que começou a digerir o acordo quando ouviu Marina dizer que “não se faz o novo do nada; tudo que existe é porque foi capaz de preservar alguma coisa”.
Na manhã de sábado, a notícia ainda não tinha se espalhado, mas já havia algum zum-zum no ar quando Marina chegou à casa de Patrícia para a reunião com o PPS. Feldman, Marina e Freire foram para o quarto dos filhos de Patrícia, onde há duas camas de solteiro paralelas. Freire sentou-se em uma, Marina e Feldman na outra. Freire ouviu a decisão de Marina, de ir para o PSB. Surpreso, lembra-se de ter respondido o seguinte:
– Olha, muito provavelmente você vai ficar manietada com a hipótese de ser candidata lá. Porque o candidato do PSB é o Eduardo, e ele é um ótimo candidato. Por outro lado, não sei se é a melhor alternativa para as oposições. Já não tivemos a candidatura de Serra, perdemos a sua. Isso enfraquece a possibilidade do segundo turno, que com a sua presença seria quase uma certeza.
Enquanto Freire e Marina conversavam em Brasília, Sirkis tinha saído para correr no Aterro do Flamengo. Decidiu ligar para Sérgio Xavier a fim de saber das novidades. Informado do que tinha ocorrido desde que deixara o apartamento em Brasília na madrugada de sexta, correu desabaladamente para o aeroporto, de volta rumo a Brasília.
Eduardo Campos também saiu para correr por volta das 10 horas no Parque da Cidade, em frente ao hotel Meliá, onde estava hospedado no Distrito Federal. Fez o percurso de 4 quilômetros acompanhado do deputado Beto Albuquerque, do PSB do Rio Grande do Sul. Às 11 horas, a chefe de gabinete de Feldman foi buscá-lo para um último encontro com Marina antes da coletiva de imprensa em que tudo, finalmente, seria anunciado. Entraram pela garagem, o governador abaixado no banco de trás.
Antes de irem para o Hotel Nacional, Eduardo Campos retornou ao Meliá para almoçar. Recebeu uma ligação de Pedro Simon:
– Embora eu não tenha procuração, quero falar em nome do teu avô: o Arraes tá satisfeito, tá contente, e pediu para eu falar para ti que tu fez o que tinha que fazer.
Campos tinha se afastado da mesa para atender ao telefone. Voltou com os olhos vermelhos.
No Hotel Nacional uma bandeira grande do PSB pregada na parede ao lado de uma pequena da Rede confirmava as notícias em destaque nos sites. O clima no local já havia mudado. Nos encontros festivos da Rede, as músicas de fundo costumam ser Gilberto Gil e Lenine. No salão, no entanto, dois telões mostravam cenas do programa político do PSB e trechos do filme O Auto da Compadecida, baseado na peça do pernambucano Ariano Suassuna, quando João Grilo ressuscita Chicó tocando O Pulo da Gaita. Antes de Campos e Marina entrarem, a bandeira grande do PSB foi trocada por uma menor.
Marina Silva foi apresentada pelo secretário-geral do PSB, Carlos Siqueira, como “essa figura extraordinária da vida política nacional, essa senadora exemplar, essa militante política de nome extraordinário na vida nacional, que vai entrar no nosso partido”. Eduardo Campos, como “o próximo presidente da República”.
Na noite anterior, enquanto os presidenciáveis selavam o casamento político mais importante do ano, Lula estava em um sítio no interior de São Paulo e não recebeu as chamadas de Campos, que queria comunicá-lo dos fatos. Dilma Rousseff acabara de chegar a Brasília, de uma viagem oficial a Campo Mourão, no Paraná; José Serra estava recluso em São Paulo; e Aécio Neves estava se casando com a gaúcha Letícia Weber em uma cerimônia íntima no apartamento dele, no Rio de Janeiro.
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