CREDITO: ADÃO ITURRUSGARAI_2020
O centrão e a distopia nacional
A sucessão de Bolsonaro depois das eleições municipais
Fernando de Barros e Silva | Edição 171, Dezembro 2020
Os resultados das eleições municipais foram saudados em várias partes como uma verdadeira boa-nova. Teria sido uma vitória da “moderação” contra os “extremos”, do “centro” contra Jair Bolsonaro e o PT. É uma visão deformada do mundo real. Primeiro, porque esses dois extremos são uma ficção retórica para justificar o que, em geral, não passa de antipetismo mal elaborado (ou de bolsonarismo envergonhado, como aconteceu na eleição de 2018). A não ser que você ache que os bravos do PSTU ou do PCO estão prestes a ocupar o Palácio de Inverno, só há um extremo na política brasileira, e ele está no poder. Em segundo lugar, porque esse “centro” que saiu das urnas é bastante direitoso. Em termos partidários, o que aconteceu foi fundamentalmente o crescimento do Centrão e do Democratas, o DEM. A direita ampliou o seu domínio político nas cidades brasileiras. Ou seja, a boa-nova não é exatamente boa nem é propriamente nova. Pouco importa. Parece até que podemos ouvir alguns comentaristas de bigode cantando no banho, à maneira das torcidas organizadas: “Oooô, o Centrão voltoô, o Centrão voltoô, o Centrão voltoooô!”
Os números falam por si. Apuradas as urnas de 15 de novembro, o PP ganhou 167 novas prefeituras e passa a governar 680 cidades; o PSD vem logo atrás, com 649 prefeitos (100 novos). Cresceram também o Republicanos, que passa a ter 207 prefeitos (100 a mais do que tinha em 2016), e o PL, que conquistou 42 novas cidades e vai governar 345 municípios. Se juntarmos a essa lista o PTB, o PSC, o Solidariedade, o Avante e o Patriota, teremos mais de 2 400 cidades brasileiras governadas pela turma bacana do Centrão. Isso sem contar o DEM, que já no primeiro turno havia conquistado 179 novas prefeituras e vai governar pelo menos 458 cidades a partir de 2021. Mas o DEM não pertence à base de apoio do governo.
Fiquemos com o Centrão. Ele foi transformado na tábua de salvação de Bolsonaro mais ou menos na época em que a Polícia Federal descobriu o recanto de Atibaia – a pensão Wassef funcionava num escritório de fachada do advogado (de fachada?) do presidente da República, onde Fabrício Queiroz, o agregado número 1 da família 00, churrasqueava na clandestinidade. Agora, vitorioso nas urnas, o mesmo Centrão passa a ser visto como a senha de que Bolsonaro estaria com os dias contados e não vai além de 2022. O Centrão lembra aquela piada antiga que se contava nas redações. Na véspera do Natal, o dono do jornal chega para o editorialista, uma figura muito zelosa de suas responsabilidades, e transmite a ordem: “Fulano, vamos fazer um editorial sobre Jesus Cristo.” Ao que Fulano responde: “Claro, claro, mas o senhor quer contra ou a favor?” Estará o Centrão contra ou favor do nosso Messias?
Fernando Henrique Cardoso costuma dizer que essa gente não é propriamente conservadora, mas atrasada. Seu compromisso é com a máquina do governo – qualquer governo –, não com os governados. Não existem ideias nem ideais no horizonte de ação do Centrão, o que importa é participar do poder e extrair dividendos disso. Como craca no casco do navio, o Centrão vai aonde o timoneiro levar.
De 1994 a 2014, quem os conduziu foi primeiro o PSDB e depois o PT. Foram várias as turbulências no percurso, mas o navio parecia ter rumo. Armou-se então uma imensa tempestade, o céu veio abaixo na madrugada de 2016, e quando o dia amanheceu, em 2018, o navio estava tomado por piratas. Não faltou nem o papagaio da Havan. Desde então, Bolsonaro insiste em afundar o navio – é sua tara infantil –, mas quer ao mesmo tempo se salvar. Pretendia fazer tudo sozinho, sem o Congresso, apenas com o apoio difuso das polícias e das milícias e a retaguarda dos militares refestelados no Planalto. Não conseguiu. A pandemia chegou e uma rachadinha sob seus pés no casco do navio o deixou em maus lençóis. O pirata então assobiou para o Centrão, que pulou como rato magro para dentro da embarcação.
Os novos tripulantes procriaram nas urnas. E agora? Mais numerosos, irão abandonar o navio de Bolsonaro? Ou serão em 2022 sócios na continuidade do projeto de naufrágio nacional? Metáforas à parte, essa é uma dúvida que não se dissipará tão cedo.
Mas para que ter pressa? Três dias depois da divulgação dos resultados, a Folha de S.Paulo entrevistou Gilberto Kassab, o dono do PSD. Eleição rejeitou radicalismo, mas não é sobre Bolsonaro em 2022, dizia o título. Com sua frieza cínica, Kassab deu um jeito de aliviar a barra de Bolsonaro, sinalizou apoio a Bruno Covas e reconheceu os méritos da candidatura do Psol em São Paulo. Abriu todas as portas sem se comprometer com nenhuma.
Kassab é do tipo que tira as meias sem tirar os sapatos. Quando o repórter Igor Gielow lhe pediu uma avaliação do cenário para 2022, a resposta veio na forma de uma enumeração de nomes, sem ênfases ou juízos de valor, como se estivessem todos dispostos num cardápio: “Que eu saiba, Doria está colocado pelo PSDB, Huck por não se sabe quem, o Moro também não sei por quem, o Bolsonaro, o Ciro, um candidato do PT, talvez com o Psol ou não. E o PSD tem três alternativas: ou o Ratinho Jr., ou o Otto Alencar, ou o Anastasia. Vamos conversar depois do Carnaval.”
Deixemos para “depois do Carnaval”. Onde vislumbramos uma encruzilhada fatal, Kassab vê uma oportunidade de negócios. A extrema direita passou a fazer parte das opções de mercado, o PSD achou que valia a pena apostar nisso daí. Afinal, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro são hospedeiros, nada mais.
A trajetória política de Kassab traduz à perfeição a vocação parasitária do partido que comanda. Ele entrou na vida pública nos anos 1990 pelas mãos do malufismo, como secretário do prefeito Celso Pitta; foi vice-prefeito do tucano José Serra, ganhou a cadeira de presente quando o titular abandonou o cargo para disputar o governo do estado, reelegeu-se prefeito com o apoio do mesmo Serra em 2008. Fundou o PSD em 2011, foi ministro das Cidades de Dilma, veio o impeachment e ele se tornou ministro da Ciência e Tecnologia de Temer. Foi chefe da Casa Civil do governo de João Doria, cargo do qual se licenciou para responder às acusações de que levou dinheiro sujo da JBS. O PSD, já dissemos, é uma das estrelas ascendentes da base bolsonarista no Congresso. Tudo somado, não sabemos quem vai ser o próximo presidente da República, mas sabemos que Kassab estará no governo.
Olhemos um instante para os derrotados desta eleição. Os resultados foram desastrosos para o PT. Em 2012, o partido conseguiu eleger 630 prefeitos; em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, perdeu o governo de quase 400 cidades (ganhou em apenas 257). Neste ano, o partido de Lula se desidratou ainda mais. Escrevo antes do segundo turno, mas o fiasco está consumado – o PT elegeu 179 prefeitos no primeiro turno e estava na disputa em mais quinze cidades, entre elas Recife e Vitória. Contra meu vaticínio, registro aqui o que disse o cientista político Jairo Nicolau em reportagem publicada no site da piauí. Segundo ele, houve uma tímida recuperação do PT em relação aos resultados de 2016 porque o partido conquistou mais cidades médias, acima de 500 mil habitantes. “A direita é a tradicional vencedora das eleições municipais. No cômputo geral, a esquerda sempre perde”, diz Nicolau.
O problema do PT, de toda forma, não está no número de prefeituras que perdeu, mas no caminho que escolheu trilhar. A questão talvez seja saber o que quer, afinal, este senhor de 40 anos. O PT nasceu em 1980 como um partido de esquerda não ortodoxa e conseguiu catalisar para a via institucional as muitas pressões sociais acumuladas durante a ditadura e agravadas pela crise inflacionária dos anos 1980. Em algum momento, esse partido renovador deixou de ser diferente dos demais. Talvez nunca tenha sido tão diferente quanto imaginávamos que fosse. Escalou o poder, foi se corrompendo pelo caminho e passou a girar no diapasão do mesmo patrimonialismo que um dia pretendeu combater. Seria indulgente demais imaginar que o PT está sendo punido agora por suas virtudes. A despeito delas, que são reais, o partido pagou e está pagando por suas escolhas e por seu cinismo.
É sintomático que Jilmar Tatto tenha chegado em sexto lugar em São Paulo, com pouco mais de 460 mil votos, e que o vereador mais votado da cidade seja do PT – Eduardo Suplicy obteve mais de 167 mil votos. O que passa na cabeça do paulistano quando o nome de Suplicy é invocado? Sua atuação contra as injustiças, sim, mas sobretudo o compromisso ético. Ninguém, nem seus adversários, acha que Suplicy é ladrão ou compactue com qualquer roubalheira. O mesmo ocorre com Luiza Erundina, vice de Guilherme Boulos pelo Psol. Essa referência moral, que o eleitor identifica em figuras como Suplicy e Erundina, ele não enxerga mais no PT. Lula age como se a conduta facciosa de Sergio Moro no caso de sua condenação, mais do que evidente, eximisse o PT de se explicar. O petrolão não é um delírio da Lava Jato.
Uma última palavra sobre o cinismo do PT. Em abril deste ano, menos de um mês antes de morrer, o filósofo Ruy Fausto participou por Zoom do debate de lançamento da Rosa, revista eletrônica que idealizou com um grupo de intelectuais. Em sua fala de apresentação, disse que a Rosa deveria tomar parte na luta pela hegemonia de ideias que se trava hoje entre a esquerda e a direita, sobretudo a extrema direita. E expôs a seguir o ponto que me interessa aqui. Depois de afirmar que as armas da direita no debate intelectual costumam ser “a mentira” e “o sofisma”, ele perguntou: “Do nosso lado, qual é a arma?” E respondeu assim: “Acho que não é uma banalidade dizer que a nossa arma é a verdade. Ou seja, se a gente começar a mentir, a gente perde. A direita mente melhor e a extrema direita mente melhor ainda.” Sem mencionar nominalmente o PT, mas deixando bem claro que falava do partido, Ruy Fausto prosseguiu: “[O PT] não pode travar essa luta hegemônica porque ele não diz tudo. Tem um certo número de coisas que ele não abre, mas que a gente conhece. A autocrítica não é um detalhe. Se ela viesse, seria possível travar uma luta pela hegemonia. Porque aí a esquerda, digamos tradicional, teria um discurso de verdade. Se ela não abre o jogo, se ela não faz autocrítica, subsiste uma certa dúvida sobre o que ela diz. A opinião pública não é tão tola assim, ela se engana em muitas coisas, mas ao mesmo tempo existe também um elemento de lucidez e de compreensão. E eu diria que essa falta de sinceridade, que essa recusa em abrir o jogo e reconhecer as próprias faltas, isso compromete o trabalho deles. Não tem muita gente que diga a verdade no Brasil atualmente.”
Está aí, nas palavras de Ruy Fausto, o que chamo de cinismo petista. Ele debilita a esquerda e degrada o debate público. Isso não significa que o PT vá ter papel secundário na sucessão de Bolsonaro. Ele ainda é grande o suficiente para ser de alguma maneira importante ou até decisivo. Mas sua hegemonia dentro da esquerda não é mais uma obviedade. A exaustão das opções de Lula parece cada vez mais evidente.
Posso estar enganado, mas a imagem de Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino reunidos em torno da candidatura Boulos é apenas isso – um retrato na rede. Nada sugere que esses partidos e essas lideranças serão capazes de formar uma frente de esquerda em torno de um único nome. No campo da direita não bolsonarista, de Luciano Huck a Sergio Moro, passando por João Doria e o Democratas, cada um deles parece forte ou ambicioso o bastante para acreditar que agora chegou a sua vez. Qual deles encarnará “o centro” tão sonhado pela imprensa de bigode? Estarão juntos? Impossível saber.
Tudo considerado – dificuldades da esquerda, apetites vários da direta e avanço do Centrão –, o revés de Bolsonaro como cabo eleitoral não parece indicar muita coisa a respeito de 2022. O camelódromo de candidatos em que ele transformou suas lives no Palácio da Alvorada não funcionou, mas parece pouco para deduzir que a política da catástrofe atingiu seu ponto de saturação. É quase o contrário. Preparemo-nos todos, porque os próximos dois anos serão intensamente insanos. Bolsonaro inventará novos comunismos para combater, invasores intergalácticos da Amazônia, urnas eletrônicas que abocanham os dedos do eleitor, o diabo. Ele precisa disso para sobreviver.
Poucos dias depois do primeiro turno, na contramaré da opinião dominante, o editor Carlos Andreazza publicou um artigo no jornal O Globo para explicar por que considera que o projeto da reeleição está vivo. “Bolsonaro não tem como operar na normalidade – o que equivaleria a seu perecimento. Precisa de crises. O chamado Centrão sabe e (mesmo assim) fechou com ele. Não será excesso escrever que a pandemia lhe deu segurança. Não será excessivo afirmar que uma segunda onda lhe garantiria musculatura competitiva. Seu governo é basicamente o auxílio emergencial. Esse é o seu problema […]: assegurar que haja dinheiro para lhe bancar o populismo, manter os parceiros satisfeitos e impulsionar um governo caótico à reeleição”, escreveu Andreazza. Mais adiante, ele usa uma fórmula feliz para definir o que pode estar à nossa espreita: “Um estado de calamidade longevo para um governo permanentemente calamitoso.” Seria algo como um governo em eterno estado de emergência. Kassab entende bem disso. Comprou as ações do pirata na baixa e pode esperar. Quem sabe, seu partido venha a disputar com o PP de Ciro Nogueira a vaga que é hoje do general Hamilton Mourão. Teríamos em 2022 um grande acordo distópico – com militares, com milicianos, com Centrão, com tudo.
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