ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
O cordel das mulheres
Uma nova geração reage ao machismo de um gênero poético
Fernanda da Escóssia | Edição 168, Setembro 2020
Era um tempo de dinheiro curto na casa da paraibana Maria das Neves Baptista Pimentel. Seu marido, o comerciante alagoano Altino Pimentel, desafiou: “Você não é tão boa de fazer versos? Faça uns pra vender.” Filha do poeta e editor Francisco das Chagas Batista, ela não pensou duas vezes – transformou um romance num folheto de cordel.
Corria a segunda metade dos anos 1930, e mulheres não assinavam cordéis. A saída para Maria das Neves foi adotar o pseudônimo Altino Alagoano, e o próprio marido se encarregou de levar o cordel para ser vendido nas feiras de Rio Largo, em Alagoas, como contou a filha caçula do casal, Alzinete Pimentel.
Pesquisadores divergem sobre o ano exato, se 1935 ou 1938, mas são unânimes em reconhecer em Maria das Neves, nascida em 1913, a primeira mulher a publicar um cordel, ainda que com nome masculino.
Oito décadas mais tarde, a literatura de cordel segue pródiga em histórias enredadas pelo machismo. Uma das mais recentes teve como protagonista Izabel Nascimento, pedagoga, poeta, presidente e fundadora da Academia Sergipana de Cordel. Numa das mesas virtuais do Terceiro Encontro Paraibano de Cordelistas, no dia 27 de junho, o tema era o cordel como instrumento de transformação social. Nascimento cobrou que o gênero mudasse o tom muitas vezes machista, racista e homofóbico. Sem citar nomes, combinou serenidade e firmeza nas suas palavras: “A vida está nos pedindo isso a passos largos.” E mirou o machismo como um mal persistente: “Se formos falar do cordel feminino, cordelistas ficam achando que queremos tocar fogo nos livros deles. Se formos falar em literatura feminista, acham que queremos tocar fogo neles.”
A escritora recebeu a solidariedade de muitas mulheres e de alguns homens, mas também ataques nas redes sociais porque, choramingaram os críticos, ela estaria fomentando a cizânia. Em apoio a Nascimento, as cordelistas criaram o #cordelsemmachismo, povoando o Instagram com fotos de mulheres de vários lugares do Brasil segurando cartazes com as palavras de ordem do movimento. A refrega foi se espalhando pela imprensa regional, do site sergipano Infonet ao jornal cearense O Povo, até chegar ao portal Uol. “Há machismo no cordel quando somos assediadas, quando os espaços e as referências têm predominância masculina. Quando há uma falsa concepção de que somos poucas”, disse Nascimento à piauí.
Na noite de 7 de agosto, a reação ao movimento sobreveio na forma de outra live, conduzida pelo cordelista Iranildo Marques, da Academia Literária Virtual do Clube da Poesia Nordestina, de Serra Talhada, em Pernambuco. A chamada é autoexplicativa. “Tema: Machismo? A mulher não é mais discriminada. No cordel não existe esse machismo!” Mulheres e homens convidados pelo organizador endossaram o mote de que o mundo da poesia tem igualdade de gênero. “Esse movimento está trazendo o tempo de Maria das Neves. Quer chegar aonde, dizendo que o cordelista é machista?”, questionou Marques à piauí. Ele caracterizou o movimento como “político”, “radical”, algo para dividir os cordelistas, mulheres de um lado, homens de outro.
O presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), Gonçalo Ferreira da Silva, 82 anos, disse que o machismo no cordel é coisa de outrora. E que há seis mulheres no time de quarenta integrantes da ablc, que ele encabeça desde a fundação, em 1988.
A última mulher a ingressar na academia foi a médica pernambucana Paola Tôrres, empossada na cadeira 38, herdada do compositor Moraes Moreira. Oncologista e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), Tôrres cresceu numa família que se reunia em torno de rodas de violeiros. É autora do cordel A Saga do Caroço, explicando a origem dos tumores de mama e quais as formas de prevenção.
Participante e apoiadora do #cordelsemmachismo, Tôrres diz que foi sempre acolhida pelos colegas – talvez, ela ressalva, por não ser identificada como uma “concorrente”, uma vez que é médica e professora. Mas diz que os principais espaços e eventos do cordel são dominados por homens e, embora muitas mulheres escrevam, elas têm menos folhetos publicados que eles. Tôrres assinala que, na maioria dos folhetos tradicionais, o que rima com mulher é submissão: “Ou é a prostituta, a santinha, a princesa.” Muitas poetas, para serem aceitas, mimetizavam a visão masculina. “É como diz Paulo Freire: quando o oprimido não tem uma reflexão, o sonho dele é virar opressor”, analisa a médica, que criou na Unifor a Cordelteca Maria das Neves Baptista Pimentel, em homenagem à pioneira.
Maria das Neves publicou pelo menos três cordéis, sempre assinando como homem. Depois da morte do marido, esmagado por um trem em 1945, não voltou a publicar. Continuou versejando só para divertir sua prole, que sustentou sozinha, lembrou a filha Alzinete, guardiã dos poemas inacabados da mãe, que morreu em 1994. Só a partir dos anos 1970 se tem notícia de cordéis assinados por mulheres.
As herdeiras de Maria das Neves cresceram e apareceram. A nota de apoio a Izabel Nascimento, lançada no início da mobilização, tem o suporte de mais de oitenta instituições, entre editoras, associações, feiras e coletivos de poesia. O abaixo-assinado supera 2 mil signatários, entre mulheres e homens. “O movimento é nacional. O que houve com Izabel foi a gota d’água num cálice cheio”, afirmou a cearense Julie Oliveira, de 27 anos.
Escritora e editora, filha do consagrado cordelista Rouxinol do Rinaré, Oliveira verseja desde os 11 anos. Muitas vezes ouviu: “Esses versos foram feitos por você ou por seu pai?” Ela conta que o machismo também se revela na participação menor de mulheres em festivais – “os curadores em geral são homens que convidam quase sempre os mesmos homens” –, sem falar no assédio, disfarçado ou escancarado. Num evento recente em Fortaleza, um poeta recitou um cordel em que a personagem feminina só mudava de atitude depois de levar uma surra.
No embalo do #cordelsemmachismo, as mulheres reagem em versos como estes, feitos por Oliveira: Por um cordel sem machismo/Nós seguimos a lutar/Pois respeito, equidade/Cabem em todo lugar/Ainda mais na poesia/Que é o que nos alia/Vamos juntos repensar!
A próxima estrofe dessa batalha inclui a realização de um inédito festival exclusivamente feminino, além de um censo para mapear as poetas e seus escritos. Oliveira, Nascimento e tantas outras fazem parte de uma geração que recusa o lugar da submissão e denuncia o machismo cotidiano. Escrevem sobre dores, amores e vivências do ponto de vista feminino e sabem que negar a existência do machismo é como consertar um verso de pé quebrado – ruim de emendar, impossível de esconder.
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