"Qualidade sem resultados não tem sentido; resultados sem qualidade não têm graça", dizia Cruyff FOTO: EAMONN MCCABE_GETY IMAGES
O craque do futebol total
Dentro e fora do campo, Cruyff fez nascer um novo jeito de jogar bola
Marcelo de Paulos | Edição 115, Abril 2016
“A Holanda não me preocupa. Estou pensando na final com a Alemanha.” Este foi o palpite do técnico Mário Zagallo para a partida que valia a última vaga na decisão da Copa de 1974. Os holandeses haviam passado por uruguaios e argentinos com autoridade e tinham a vantagem do empate, mas nenhuma tradição: duas participações anteriores em copas, com uma derrota em cada. E só.
Quem estivesse prestando atenção no futebol jogado na Europa naquele começo de década pensava diferente. O Ajax de Amsterdã havia conquistado três títulos europeus seguidos sob o sistema de “futebol total” do técnico Rinus Michels, que empregava jogadores sem posições fixas e uma ocupação sufocante dos espaços. O sucesso do sistema se baseava na genialidade de um atacante longilíneo, veloz, inteligente e de técnica apurada, dono da camisa 14. Hendrik Johannes “Johan” Cruyff já conquistara duas Ballon D’Or quando o mundial começou na Alemanha Ocidental.
No campo, os atletas de laranja pareciam uma matilha de lobos famintos pela bola. Ignoraram o pedigree brasileiro e evisceraram os tricampeões do mundo. Hoje talvez seja seguro afirmar que aquela derrota marcou o momento em que o Brasil perdeu o protagonismo no debate intelectual sobre o futebol. Por ter sido o líder daquela demolição – imposta ao time símbolo do futebol-arte –, Cruyff poderia ser confundido com um arauto do que estava por vir, um tempo em que prevaleceria o futebol-força. Nada mais equivocado.
Nascido em 1947, Cruyff começou a jogar pelo Ajax aos 10 anos e estreou no time principal aos 17, um ano antes da chegada de Michels. O técnico viria a ser o responsável, mais tarde, por convencer aquele que já era o melhor jogador do continente a assinar com um Barcelona em crise, enquanto os dirigentes do Ajax negociavam com o todo-poderoso Real Madrid. No Barça, Cruyff comandou uma goleada de 5 a 0 no campo do arquirrival e, já na primeira temporada, tirou o clube catalão de uma fila de catorze anos sem vencer La Liga (o Real levara nove taças). Recuperou a autoestima da Catalunha, a ponto de alguns observadores darem-lhe crédito por estremecer a já cambaleante ditadura do general Franco, notório apoiador madrilista. Dos torcedores do Barça, recebeu a representativa alcunha de “Redentor”.
Perdeu a final da Copa de 1974 para a anfitriã Alemanha, e acabou abrindo mão de disputar a Copa de 1978, depois que sua família sofreu uma tentativa de sequestro. “Quando se perde a alegria, é difícil suportar a pressão”, explicou. Fracassou miseravelmente num negócio de criação de porcos e foi fazer caixa jogando nos Estados Unidos, na mesma liga do Cosmos de Pelé. Aos 34 anos, voltou para o Ajax, onde se provou novamente. Dois anos depois, teve a renovação negada. Assinou com o arquirrival Feyenoord, e venceu o campeonato e a copa holandeses daquela temporada.
Cruyff estreou como técnico no Ajax, onde estendeu seu sistema de “futebol total” às divisões de base, responsável por formar jogadores como Van Basten, Rijkaard, Bergkamp, Overmars, Kluivert, Koeman e Seedorf. Seu clube de infância é hoje o maior campeão holandês e uma potência continental.
No Barcelona, sua filosofia – palavra desgastada como sinônimo de “tática”, mas que reencontra seu significado no futebol de Cruyff – plantou raízes profundas. Chegou em 1988 a um time mais uma vez em crise, contornou um motim dos atletas contra o presidente, montou aquele que até hoje é chamado de Dream Team e conquistou o primeiro título europeu para o clube, em 1992. Outras glórias vieram, mas a transformação mais profunda ocorreu em La Masía, a academia de base do Barça: lá atletas como Guardiola, Xavi, Fàbregas, Iniesta, Puyol, Piqué e Messi foram moldados no estilo “cruyffista”, um equilíbrio de técnica, movimento, ritmo e flexibilidade, que hoje inspira o melhor do futebol mundial.
Herdeiro de um povo que tem aversão ao não essencial e à ostentação, Cruyff defendeu um olhar bem holandês para a beleza no futebol, da qual foi sempre devoto: “A jogada mais simples é também a mais bela.” Mesmo assim, deixou obras-primas, como o “gol fantasma” contra o Atlético de Madrid em 1974 e o gol por cobertura que fez na sua reestreia pelo Ajax, depois de driblar dois adversários. Mas defendia que a beleza não devia ser um fim em si mesmo. Afirmava nunca ter feito malabarismos com a bola em intervalos nos treinos. Segundo Cruyff, “qualidade sem resultados não tem sentido; resultados sem qualidade não têm graça”.
A sentença pesa como uma condenação do futebol brasileiro desde aquela derrota para a Holanda: em meio a fracassos mais retumbantes, nossas duas seleções que encantaram o mundo (as de 1982 e de 2006) falharam em fases intermediárias de suas respectivas copas, e os dois times do Brasil campeões do mundo nesse período se apoiaram em retrancas estéreis com lampejos individuais de craques que, aliás, haviam feito suas estrelas nos campos da Holanda e da Espanha.
É possível que Cruyff tenha colaborado para o abismo que o 7 a 1 para a Alemanha evidenciou. Mas não do nosso lado: embora carrasco da execução que nos lançou numa crise bipolar de identidade futebolística, Cruyff não tem responsabilidade pela miséria organizacional do futebol brasileiro ou pela indigência intelectual de seus profissionais. Sua contribuição nítida é na “Renascença” do futebol europeu, ainda que ninguém possa receber sozinho os louros por inventar o futebol moderno. Como afirmou Gary Lineker, artilheiro da Copa de 1986 e seu atleta no Barça, “ele fez mais pela beleza do jogo do que qualquer pessoa na história”, talvez sugerindo que o apelido de Redentor devesse ser usado por mais fãs do que somente aqueles do clube catalão.
Por ter perdido uma final de Copa do Mundo e se recusado a jogar a Copa seguinte, Cruyff costuma ser sacrificado no altar de uma visão, profusa no Brasil, de que somente os vencedores de copas têm lugar entre os grandes. Se assim for, o craque não terá sido o primeiro holandês chamado Johannes a ser injustiçado pela história: foi somente dois séculos depois de sua morte que Vermeer passou a ser considerado um dos grandes da pintura. Que a posteridade seja mais justa com Cruyff.
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