Sequência macabra: no processo que ficou inacessível por meio século, fotos da localização e do transporte dos despojos do soldado Juarez Monção Virote, torturado e morto por militares CRÉDITO: REPRODUÇÃO
O crime do século
O processo militar do início dos anos 1970 que condenou integrantes do Exército por tortura e assassinato
Glenda Mezarobba | Edição 193, Outubro 2022
O menino Dalgio Miranda Niebus nasceu em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, de parto normal, na casa da família. Primogênito e com duas irmãs, começou a frequentar o Instituto de Humanidades da cidade aos 4 anos. Gostava “de leitura mais adiantada para sua idade”, lembrou a mãe, que o achava “muito adulto” porque, além de preferir a convivência com os mais velhos, “dava opiniões”. Niebus concluiu o então curso ginasial aos 15 anos e fez o colegial na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Porto Alegre, depois de ser aprovado em 14° lugar, entre 3 mil candidatos, para orgulho da mãe.
Aos 21 anos, terminou a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no estado do Rio. Era tímido e introvertido, mas, a partir do ingresso na vida militar, seu relacionamento com estranhos tornou-se menos penoso. “Razoavelmente mulherengo”, em suas próprias palavras, casou-se aos 22 anos e teve dois filhos. Sentia-se bem com sua família e mantinha um bom relacionamento com a mulher. A mãe contou que, entre os três filhos, foi Niebus quem lhe “menos causou problemas”. Ela disse que sempre ensinou as suas crianças a “respeitar os superiores e os mestres”. Mesmo assim, quando soube do “acontecido”, sentiu-se culpada.
Foi o “acontecido” que, no segundo semestre de 1972, levou o capitão de infantaria Niebus, então com 30 anos, a um exame de sanidade mental. O capitão, que pouco tempo antes desempenhava as funções de oficial de informações no 1° Batalhão de Infantaria Blindada (BIB) de Barra Mansa, foi internado na clínica psiquiátrica do Hospital Central do Exército (HCE), na cidade do Rio de Janeiro, para ser entrevistado e examinado por dois médicos peritos. A sua mãe também prestou esclarecimentos sobre a infância e a adolescência do filho.
No laudo do exame, assinado em 19 de setembro, os médicos concluíram que Niebus era “paciente lúcido, orientado auto e alopsiquicamente, não apresentando distúrbios sensoperceptivos” e não demonstrava alterações no pensamento nem “atividade delirante”. Também não manifestara, durante a entrevista, nenhuma alteração “de sua emotividade, parecendo que era um simples relator de um fato”. Respondendo a questões encaminhadas pelo advogado de defesa de Niebus, no entanto, os peritos registraram que o capitão apresentava “personalidade psicopática antissocial, isto é, personalidade mal estruturada que pôde se manifestar no tempo quando assumiu função de mando e investigações”. E não tinha, ao contrário do que pretendia crer a defesa, a personalidade marcada por “excessivo sentido de responsabilidade, notadamente quanto em defesa das instituições, a ponto de modificar o seu comportamento, sobretudo pelo entendimento de agir defendendo uma justa causa”. Em relação ao “acontecido”, Niebus, salientaram os médicos, “agiu de forma apurada, por seu livre-arbítrio” e deixava “a impressão de que, para fugir à responsabilidade, procura justificar seu procedimento com a defesa das instituições e de uma causa justa”.
Um lacônico “sim” anotado pelos peritos tratou de confirmar a plena capacidade de Niebus de “entender o caráter ilícito” das ações descritas na denúncia contra ele. O parecer final foi taxativo: “Incapaz definitivamente para o serviço do Exército. Pode prover os meios de subsistência. Não é alienado.”
O “acontecido” a que se referia a mãe do capitão Niebus foi uma sucessão de graves violações de direitos humanos cometidas por integrantes do Exército Brasileiro, em dependências das Forças Armadas, durante a ditadura militar. A tortura, nesse caso, não foi de civis ou ativistas políticos, mas de quadros da própria instituição – uma espiral de crueldades contra quinze soldados que culminou na morte de quatro deles.
Ao contrário do que ocorreu ao longo dos 21 anos do regime de exceção, tais crimes não foram acobertados pela Justiça Militar. Houve uma investigação no 1°BIB, e os acusados pelas torturas e mortes foram levados a julgamento e condenados a penas severas. Apesar de o processo ter corrido em segredo de Justiça, a imprensa publicou breves e esporádicas notícias sobre o caso à época e nos anos seguintes.
Os autos do processo permaneceram guardados por décadas nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM). Constituem cinco volumes de documentos, com cerca de 2,3 mil páginas. Trazem os relatos de sobreviventes, de testemunhas e dos próprios acusados, as petições de advogados, os pareceres e as decisões jurídicas.
Até recentemente, o conjunto desses documentos esteve inacessível. Uma parceria entre o Instituto Vladimir Herzog e a agência de dados Fiquem Sabendo, especializada na Lei de Acesso à Informação, possibilitou a obtenção de uma cópia digital completa. Este texto reconstitui passo a passo, a partir das próprias (e incriminatórias) palavras dos autos, o desenvolvimento do processo judicial que resultou no reconhecimento pelas Forças Armadas de tortura praticada por militares e contra militares.
Passados 37 anos do fim da ditadura, até hoje as Forças Armadas brasileiras insistem em negar a ocorrência de tortura como prática sistemática do período. Muitos anos depois de deixar o governo, o ex-presidente Ernesto Geisel reconheceu a existência de tortura, mas “não todo o tempo”, disse ele, em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getulio Vargas. Segundo Geisel, seriam casos esparsos, jamais uma política disseminada.
A sequência de crimes que agora vem à luz em seus pormenores é mais uma prova de que a tortura estava longe de constituir exceção. As sessões de espancamento e choques elétricos aconteceram dentro de um quartel, no local destinado ao isolamento de presos políticos. E o esforço para encobrir os crimes e impedir o acesso da opinião pública ao processo judicial foi justificado como uma maneira de evitar que “elementos comuno-subversivos”, no Brasil e no exterior, tomassem o caso como comprovação da existência de tortura no país.
Os fatos tiveram início em 26 de dezembro de 1971, quando o capitão Niebus foi encarregado pelo tenente-coronel Gladstone Pernasetti Teixeira de instalar uma sindicância sobre o uso e tráfico de maconha dentro do 1º BIB. No mesmo dia, a equipe de Niebus prendeu o soldado Hélio Botelho Luiz, apontado pelo próprio irmão, Expedito Botelho Luiz, como traficante. A equipe era constituída pelo segundo-tenente Paulo Reynaud Miranda da Silva, os terceiros-sargentos Ivan Etel de Oliveira, Rubens Martins de Souza e Sideni Guedes e os cabos José Augusto Cruz e Celso Gomes de Freitas Filho.
No dia 28, foram presos os soldados Nilson Senhorinho Marcato, José Getúlio Novo Pauferro e Célio Ferreira, que passaram a ser interrogados pela equipe do capitão Niebus em uma dependência do batalhão conhecida como “arquivo”. Tratava-se de um pavilhão afastado das demais instalações do 1° BIB, construído em 1969 para o isolamento de “presos subversivos”, composto por um salão e duas celas surdas (à prova de som), além de instalações sanitárias.
Os interrogatórios dos quatro primeiros militares levaram à prisão, em 30 de dezembro, dos soldados José Rodrigues Alves, Pery Silvares Henrique e Sergio Amorim Vieira, e nos dias seguintes, dos soldados Luiz Gonzaga Pereira, Geomar Ribeiro da Silva, Evaldo Luiz Lima, Aparecido Dias Machado, Vanderlei de Oliveira, Juarez Monção Virote, Roberto Vicente da Silva e Valter Soares de Matos. À exceção do soldado Pery, à época com 20 anos, todos os demais soldados presos tinham a mesma idade, 19 anos. Nenhuma das detenções foi oficializada em publicação no boletim interno da unidade. Durante o tempo em que estiveram no “arquivo”, todos os soldados foram torturados pelo capitão Niebus e sua equipe.
Em 31 de dezembro, o soldado Botelho conseguiu fugir por um alçapão que havia em sua cela. Antes disso, havia sido submetido a três dias de suplício, conforme declarou algum tempo depois. Em uma das sessões de tortura, foi espancado ao tentar cumprir a ordem de se equilibrar sobre duas latas de massa de tomate. Em outra, foi obrigado a “engolir uma corrente grossa de relógio de bolso antigo e uma pedra, dessas conhecidas como ovo de arigó”. Foi também algemado em uma cadeira e submetido a choques elétricos de um magneto.[1] Além de socos, tapas, pontapés e descargas elétricas, as sessões de tortura envolviam a utilização de objetos como palmatória, cano de ferro e prensa.
A brutalidade era exercida de distintas maneiras pelos militares. Enquanto o capitão Niebus, o tenente Miranda e o cabo Cruz batiam nos soldados, inclusive na região dos rins e do fígado, os sargentos Rubens e Guedes se valiam de uma prensa para apertar os pés dos presos, que apanhavam de cinto ou eram espancados com fios elétricos pelo sargento Etel. O cabo Freitas, por sua vez, empregava o magneto para choques e aplicava socos. “O mínimo que faziam”, anotou o coronel Mário Orlando Ribeiro Sampaio, encarregado do Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado para apurar o caso, “era usar as mãos para os espancamentos, sendo que o cabo Cruz usava uma luva preta quando o fazia.”
Em 12 de janeiro de 1972 a situação começou a escapar do controle do capitão Niebus, “o mais violento na aplicação dos instrumentos de tortura”, como registrou o coronel Sampaio. As sessões daquela quarta-feira resultaram na morte dos soldados Monção e Vanderlei, depois de eles atravessarem dias de intenso suplício.
Para acobertar seus crimes, o capitão Niebus, o tenente Miranda, os sargentos Etel e Rubens e o cabo Cruz decidiram montar uma farsa: forjar uma luta entre os quatro soldados que estavam presos no “arquivo”. Na versão da equipe, a batalha fictícia teria resultado em sérios ferimentos nos soldados Vicente e Geomar e na fuga, pelo telhado, de Monção e Vanderlei. “O capitão Niebus dirigiu a execução desse plano, tendo, inclusive, determinado ao sargento Rubens que subisse no telhado pelo alçapão existente na sala de instrução (pavilhão do arquivo) e arrebentasse uma das telhas de amianto, materializando assim o local da ‘fuga’”, escreveu o coronel Sampaio em seu relatório. A finalidade era ocultar os dois soldados “para sempre”, “uma vez que seria providenciada a oficialização das suas ausências do quartel e posterior deserção”.
No interrogatório realizado em 31 de janeiro, no quartel do 15° Regimento de Cavalaria Mecanizado (RCM), na cidade do Rio de Janeiro, o tenente Miranda detalhou a ação: “Veio então a ideia não sei de quem de escondermos os corpos tendo toda a equipe concordado.” Coube ao próprio tenente e ao capitão Niebus levar a proposta ao tenente-coronel Gladstone, que havia determinado a instalação de sindicância sobre o uso e tráfico de drogas no batalhão.
O relato ao comandante do 1° BIB começou com a informação de que um soldado estava passando mal e que, caso viesse a morrer, a equipe pretendia esconder seu corpo. Terminou com a confirmação de que dois soldados estavam mortos. Interrogado em 1° de fevereiro no mesmo quartel, o capitão Niebus disse que, antes do encontro com o tenente-coronel Gladstone, “as soluções para o problema foram ventiladas e debatidas” e que se chegou a um “acordo entre todos, que os corpos seriam transportados numa picape para serem enterrados”, “tendo então o tenente-coronel Gladstone concordado” e mandado executar “a solução”.
Na madrugada do dia 13 de janeiro, o capitão Niebus assumiu a direção da picape, tendo o tenente Miranda ao seu lado. Na parte de trás do veículo, junto com os corpos dos soldados Vanderlei e Monção, viajaram os sargentos Rubens e Etel e o cabo Cruz. De acordo com o relato do capitão Niebus, o corpo do soldado Vanderlei foi “colocado num buraco que já existia e coberto com mato” na região da represa de São João Marcos, no estado do Rio. “Antes, porém, o Miranda com minha ajuda cortou a cabeça do referido soldado e seus dedos, tendo sido a mesma jogada em outro lugar.” A cabeça foi deixada cerca de 10 km de distância do local onde o corpo foi ocultado.
Por volta das seis da manhã, o corpo do soldado Monção foi abandonado em um bambuzal, às margens da estrada que liga Rio Claro a Angra dos Reis, no estado do Rio. De volta ao quartel, “depois de tomar café”, o capitão Niebus informou ao tenente-coronel Gladstone o que havia sido feito, e comunicou a fuga fictícia ao coronel Arioswaldo Tavares Gomes da Silva, que, com o término de suas férias, estava reassumindo o comando do batalhão.
Conforme depoimento do tenente Miranda, o tenente-coronel Gladstone, ao tomar conhecimento de que o corpo do soldado Monção não havia sido bem escondido, determinou que a tarefa fosse refeita. Acompanhado de Nelson Ribeiro de Moura, auxiliar de perícia lotado na delegacia de Barra Mansa, e do fiscal auxiliar de censura e comerciante Iranides Ferreira, o tenente Miranda voltou naquele mesmo dia ao local onde o corpo tinha sido abandonado. Moura e Ferreira envolveram o cadáver do soldado Monção em um saco de aniagem e, auxiliados pelo tenente Miranda, o colocaram no porta-malas de um automóvel Rural Willys. Às margens da estrada que liga Rio Claro e Bananal, cidade já no estado de São Paulo, os despojos do soldado foram embebidos em gasolina e queimados.
Pouco depois de reassumir o comando do batalhão, em 13 de janeiro, o coronel Arioswaldo soube que o soldado Geomar, gravemente ferido, havia morrido por volta das 13h40. Nos dias em que esteve preso, “Geomar apanhou muito de todos os elementos da equipe, principalmente do capitão Niebus, que julgava sempre que os interrogados estavam mentindo”, contou o cabo Cruz, depois de ser indiciado no inquérito instaurado para apurar o caso. O coronel Arioswaldo mandou que levassem o corpo de Geomar para necrópsia na Santa Casa de Misericórdia de Barra Mansa e avisassem sua família.
Ao examinarem o corpo, os médicos-legistas apontaram como causa da morte “insuficiência cardio-hepatorrenal”. No laudo, indicaram não ter identificado “qual o instrumento ou meio” envolvido na morte de Geomar, que eles negaram ter sido “produzida por veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel”. Ao tomar conhecimento de que o soldado Vicente também estava gravemente ferido, o coronel Arioswaldo determinou a transferência dele para a enfermaria.
A cabeça do soldado Vicente havia sido “arrebentada pelo capitão Niebus, que batia com a palmatória de lado”, detalhou o cabo Cruz, que confessou ter utilizado “o magneto do aparelho telefônico” no soldado. A palmatória “pesava cerca de 2 kg e tinha o cabo tão grosso que eram necessárias as duas mãos para segurá-la”. Mais tarde, soube-se pelo sargento encarregado da carpintaria do batalhão que duas palmatórias haviam sido confeccionadas a pedido do capitão Niebus, “uma delas com modelo fornecido pelo próprio oficial”. Nas palavras de Cruz, a “pancadaria” só foi interrompida quando o capitão Niebus constatou ter aberto a cabeça do soldado Vicente – em seguida, ordenou que o cabo chamasse o padioleiro para fazer um curativo na vítima.
Nas primeiras horas do dia 14 de janeiro, o soldado Vicente foi levado para o HCE. O coronel Arioswaldo sintetizou, em um relatório, as investigações que vinham sendo realizadas e assinou portaria determinando que o tenente-coronel Gladstone instaurasse um IPM para apurar os fatos. No dia 17, Gladstone assinou um edital convocando os soldados Botelho, Vanderlei e Monção, “que se acham ausentes da unidade, sendo que os dois últimos citados evadiram-se da prisão onde se encontravam detidos para averiguações”. Na mesma data, depois de receberem o edital, as emissoras Rádio do Comércio e Rádio Sul Fluminense, de Barra Mansa, e Rádio Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda, informaram ao batalhão os horários de sua grade de programação reservados para divulgar a convocação dos soldados.
Pouco tempo depois, o comandante da 5° Brigada de Cavalaria Blindada, general Walter Pires,[2] determinou a substituição do capitão Niebus de suas funções, “bem como a de todos os graduados da 2ª Seção do 1º BIB”. “Tendo em vista a gravidade dos fatos que estavam ocorrendo no quartel” – como o ocultamento de informações e os “indícios bastante acentuados de espancamento de presos” –, também determinou que o coronel Sampaio procedesse a um inquérito para apurar as circunstâncias da morte do soldado Geomar e da internação do soldado Vicente.
Durante a realização do exame de corpo de delito, em 17 de janeiro, o soldado Vicente informou ter sido “espancado por socos, porretes, cano, fios e choques elétricos por tenentes e sargentos de seu quartel”. Em testemunho posterior, o soldado Aparecido declarou ser “voz corrente que comprimiram a cabeça do soldado Vicente” em uma prensa. Os peritos registraram lesões nas regiões parietal, peitoral e dorsal, bem como nos braços e nas coxas. Devido à gravidade dos ferimentos, Vicente morreu sete dias após o exame, no próprio HCE.
Depoimentos posteriores revelaram que, alguns dias mais tarde, “por ordem do tenente Miranda”, dois soldados se desfizeram, no Rio Paraíba, “de uma bolsa e de um saco de roupas pertencentes ao soldado Vicente e que estavam manchadas de sangue”. Em 20 de janeiro, menos de uma semana após ter sido designado para apurar os crimes (nos quais estava envolvido, como se constatou depois), o tenente-coronel Gladstone encerrou as investigações e remeteu os autos do inquérito ao coronel Sampaio. No dia 24, na condição de novo encarregado do inquérito, o coronel determinou que começassem a ser ouvidas as testemunhas.
À medida que os envolvidos puderam narrar suas versões, os relatos revelaram-se coincidentes em todo tipo de barbárie. Em seu testemunho sobre as sessões de suplício a que foi submetido no “arquivo”, o soldado Aparecido contou que, além de ter sido agredido a socos, pontapés e bofetadas “desferidas pelo tenente Miranda, sargentos Rubens e Etel e cabos Cruz e Freitas”, “os torturadores” o colocaram no centro de uma rodinha “para melhor ser espancado”. “Após mais de meia hora de pancada” ordenaram que ele tirasse a roupa. Nu, foi acomodado em uma cadeira, “com as mãos algemadas por trás do espaldar, e a seguir violentamente espancado com um cano de ferro” pelo capitão Niebus e pelo cabo Cruz.
Ferido por golpes de cinto em outra cela, quase ao mesmo tempo em que lhe faziam o curativo na cabeça, o soldado Aparecido também passou a receber “violentos choques elétricos” com “fios de um magneto de aparelho telefônico” presos em seus tornozelos. Dois dias mais tarde, debilitado em decorrência da tortura, disse que estava com sede e teve sua cabeça mergulhada sucessivas vezes em uma lata com 20 litros de água, até quase se afogar.
O soldado Getúlio, ele próprio interrogado sob tortura pelo capitão Niebus e sua equipe, presenciou o soldado Geomar ser espancado. De acordo com seu relato, o soldado foi agredido pelo sargento Rubens e pelo cabo Cruz, “com cinto [militar] NA, socos e tapas no ouvido, sendo auxiliado nesta tortura pelo sargento Etel”. Ao ser perguntado se viu alguém morrer ou tomou conhecimento da morte de alguém, respondeu que sim: “Soube das mortes dos soldados Geomar e Vicente.”
“Interrogado à base de espancamento”, o que incluiu, em suas próprias palavras, a utilização de uma prensa para apertar seus pés, o soldado Pery também declarou ter visto Geomar ser agredido e contou que soube de sua morte “por intermédio de soldados que estavam na guarnição”. O mesmo ocorreu com o soldado Gonzaga, outra vítima de tortura no 1° BIB. Em seu depoimento ao coronel Sampaio, ele disse que presenciou o capitão Niebus e sua equipe agredirem Geomar, até deixar seu corpo “cheio de vergões”. Outra vítima de tortura, o soldado Evaldo viu Geomar “com marcas no corpo, ferimentos, inchações e passando mal”.
Os detalhes do horror não foram relatados apenas pelas vítimas. No desenrolar do inquérito, o sargento Rubens declarou que “realmente assistiu um cabo, não se recordando se o cabo Cruz ou o cabo Freitas, espancar Geomar na base de tapas e socos” e que, durante aquela sessão de tortura, ele próprio “limitou-se a apertar os pés de Geomar”, com a ajuda do sargento Guedes. “A bem da verdade”, disse “haver colocado antes seus próprios pés na prensa e nela feito uma marca, a fim de que ao apertar os pés de Geomar não excedesse, provocando até uma fratura”.
Chamado algumas vezes ao “arquivo” para fazer curativos em soldados presos, o cabo Tomaz contou que em 8 de janeiro encontrou o soldado Geomar “sentado no chão vestindo somente calção”, perto do sargento Rubens, que tomava nota do depoimento, “enquanto o sargento Etel, cabo Cruz e cabo Freitas espancavam” o soldado. Segundo Tomaz, o interrogatório foi então interrompido pelo tenente Miranda, que disse: “Enquanto nós descansamos, tomando um cafezinho e bebendo uma água mineral geladinha, pois estamos muito cansados, suando muito e aqui está muito calor, o ‘Piter’ [apelido do cabo Tomaz] vai fazendo os curativos nos meninos.”
No dia 13, ao ingressar no “arquivo”, o cabo Tomaz viu os soldados Geomar e Vicente, “bastante machucados”, sendo atendidos pelo primeiro-tenente médico Érico Augusto Lopes, que lhe pediu para preparar a ambulância e, na enfermaria, separou duas ampolas de “coraton” para serem misturadas em soro e aplicadas em Geomar. Sem conseguir “achar uma veia que permitisse tal aplicação”, o cabo foi incumbido pelo médico de aplicar “uma injeção de coraton e uma de espamofex no músculo de Geomar”. Cerca de cinco minutos depois, o soldado estava morto.
No desenrolar do IPM conduzido pelo coronel Sampaio, diligências foram realizadas com o objetivo de localizar os corpos dos soldados Vanderlei e Monção. Constatou-se então que, em 15 de janeiro, moradores de Bananal tinham visto um cadáver parcialmente carbonizado na estrada entre esse município paulista e Barra Mansa, no estado do Rio. O fato foi comunicado à delegacia de polícia de Bananal. Cinco dias depois, moradores de uma localidade chamada Curral da Boca do Túnel encontraram na região os despojos de um corpo humano decapitado. No dia 28, trabalhadores envolvidos na construção de uma estrada entre Rio Claro e Mangaratiba, municípios do estado do Rio, localizaram um crânio humano. Os achados foram transmitidos à delegacia de Rio Claro.
O capitão Niebus e o tenente Miranda foram detidos em 27 de janeiro. Em 7 de fevereiro, ocorreu a prisão dos sargentos Etel e Rubens, e os cabos Cruz e Freitas Filho. Todos foram acusados de assassinato dos soldados Monção, Vanderlei, Geomar e Vicente.
Ao término de seus trabalhos no inquérito, o coronel Sampaio, que vinha sendo assessorado por José Manes Leitão, procurador da Justiça Militar, identificou a ocorrência de seis delitos previstos no Código Penal Militar: homicídio qualificado, lesão grave, dano, inutilização e sonegação de material probante, ofensa aviltante a inferior e abandono de pessoa. Em suas conclusões, registrou que o processo utilizado pelo capitão Niebus e sua equipe “para obter a confissão dos soldados presos” no quartel do 1° BIB causou a morte de quatro deles e lesões corporais em outros onze e detalhou a participação de cada um dos integrantes da equipe nos distintos delitos. Ao final, escreveu:
Acha-se bem provada a autoria dos crimes praticados pelos indiciados capitão Niebus, tenente Miranda, sargento Etel, sargento Rubens, sargento Guedes, cabo Cruz e cabo Freitas, sendo evidente também a periculosidade dos mesmos. Por outro lado, sua liberdade poderá constituir coação para as testemunhas, o que prejudicará a instrução criminal. Finalmente, essa mesma liberdade violenta as normas, os princípios de hierarquia e disciplina militares.
Por tudo isso sugeriu a decretação da prisão dos sete indiciados “nos termos do art. 254, letras a e b e art. 255, incisos b, c e e do Código de Processo Penal Militar”. Em 8 de março, o coronel Sampaio determinou que os autos fossem remetidos ao general Walter Pires, “a quem incumbe solucionar o mesmo e remetê-lo à autoridade competente”.
Representante do Ministério Público Militar, o procurador Leitão se manifestou favorável à prisão preventiva dos sete militares em ofício encaminhado ao auditor do caso. Em 22 de março, o juiz auditor Helmo de Azevedo Süssekind decretou a medida contra os sete indiciados.
No dia 5 de abril, às 14 horas, iniciou-se, na 2ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM), a instrução criminal do processo n° 17/72, envolvendo o tenente-coronel Gladstone e outros. Na presidência do Conselho Especial de Justiça (CEJ) estava o coronel Nilson Nogueira da Silva. Como registra a ata da sessão, Süssekind propôs que “‘excepcionalmente” a instrução criminal transcorresse em segredo de Justiça “porque assim o exige o interesse da ordem e da disciplina militares, que cumpre também a nós, membros da Justiça castrense, preservar”. Em sua avaliação, a repetição de todos os principais atos do inquérito, somada à necessidade do CEJ de garantir a ampla defesa dos acusados e a irrestrita atuação do Ministério Público Militar acarretariam, “forçosamente, pela publicidade exagerada ou deturpada dos fatos, graves prejuízos à ordem e à disciplina militares”.
Colocada em votação, a proposta do juiz auditor foi aprovada por unanimidade. A sala dos conselhos foi então esvaziada, nela permanecendo apenas os integrantes do CEJ, o procurador, o escrivão e o oficial de Justiça, além dos acusados e seus advogados.
Nos meses que se seguiram, as várias sessões do CEJ ocorreram sempre a portas fechadas. Nelas, os acusados eram qualificados e interrogados. Em uma dessas ocasiões, os civis Nelson Ribeiro de Moura e Iranides Ferreira contaram detalhes acerca da ocultação do corpo do soldado Monção. Moura reconheceu como verdadeira a acusação contra si e declarou que se lembrava de ter ouvido o tenente Miranda dizer que “o ‘cara’ não poderia aparecer de jeito nenhum, pois implicaria o Exército Brasileiro”. Ferreira repetiu, também sem negar a acusação, algo similar.
Tanto Moura quanto Ferreira alegaram terem sido coagidos a participar do crime. “O tenente tinha em seu poder uma metralhadora ina [da Indústria Nacional de Armas] que não dispensou a um momento sequer”, disse Ferreira durante o interrogatório. Segundo ele, “a voz geral” em Barra Mansa e Volta Redonda era de que lá “quem manda é o BIB”. Moura apontou na mesma direção. Informou “que foi coagido moralmente devido à interferência constante de militares do 1° BIB, junto à polícia de Barra Mansa”. Essa interferência estendia-se inclusive à participação política, de acordo com Ferreira, que disse haver candidaturas em pleitos eleitorais que dependiam do consentimento do batalhão. “Mesmo depois de eleitos, já tiveram alguns que renunciar perante as armas de calibres grossos daquela unidade”, afirmou, diante do CEJ.
Na condição de testemunha arrolada pela defesa do capitão Niebus, o coronel Arioswaldo foi ouvido pelo CEJ no dia 13 de junho e disse ter tomado conhecimento “da existência de averiguações com relação ao problema da maconha, no quartel, durante suas férias”. Conforme declarou, nos últimos dias de dezembro, ao encontrar-se com o juiz José Maria Valadares, foi por ele indagado se poderia receber na organização militar sob seu comando um preso acusado de “tráfico e vício de entorpecentes” que vinha sendo vítima de violência, segundo sua defesa. Tratava-se de Expedito Botelho Luiz, irmão do soldado Botelho. “O motivo foi a proteção do referido civil contra quaisquer maus-tratos”, informou Arioswaldo.
Entre as provas consideradas no andamento do processo, o procurador Leitão indicou o depoimento de Geralselia Ribeiro da Silva. Na condição de testemunha, a comerciária de 21 anos foi ouvida quarenta dias depois da morte do soldado Geomar, seu irmão. Ela começou contando que Geomar deixou o emprego na Companhia Siderúrgica Nacional para se apresentar ao 1° BIB. Havia excesso de contingente no batalhão, mas, como ele insistiu e “tinha verdadeira ‘loucura’” em servir, foi aceito no 1° BIB. “A vontade de servir e o orgulho que sentia em ser soldado eram tantos que Geomar exibia sua farda aos seus familiares”, contou a irmã.
Dois dias depois da prisão, preocupada com a falta de notícias, Geralselia conseguiu que o primeiro-tenente médico Érico a levasse até a casa do capitão Niebus. Foi então autorizada a visitar o preso, mas desde que dissesse que ela e os demais parentes “não mais queriam saber dele porque ele havia manchado o nome de sua família”. Decidida a encontrar o irmão, Geralselia concordou. No mesmo dia, no quartel, nada disse “de forma áspera” ao irmão e ouviu Geomar repetir ao tenente Calichio que não havia feito nada de errado.
Algum tempo depois, acompanhada da mãe, foi à casa do coronel Arioswaldo para pedir que ele interviesse no caso. Foram “tranquilizadas” pelo coronel, que disse que “no BIB não se batia em ninguém”, pois isso era contra as leis militares. Às 22 horas de 13 de janeiro, após dois dias de tentativas para reencontrar o soldado Geomar no quartel, Geralselia foi chamada, no portão de sua casa, por um mensageiro do batalhão. Pressentiu o pior. “Mataram meu irmão?”, perguntou ela ao tenente Calichio. O militar negou: “Apenas ele teve um colapso cardíaco.”
Na sala de necrópsia da Santa Casa de Misericórdia de Barra Mansa, ela e o pai, Arlindo Ribeiro da Silva, puderam ver o corpo de Geomar bastante machucado, com “diversos ferimentos pelo tórax, pulsos, palmas das mãos e com as unhas aparentando terem sido perfuradas”. Geralselia se revoltou ao ver que Geomar estava usando farda e disse “que era uma hipocrisia terem vestido o irmão inclusive calçando coturnos após sua morte”. Perguntou ao médico responsável pela necrópsia: “O senhor também aderiu à hipocrisia? O senhor foi comprado? O senhor não vê que meu irmão foi visivelmente espancado e afirma que sua morte foi causada por insuficiência hepatorrenal?” O médico respondeu que Geomar apresentava os rins, o fígado e o coração muito inchados e “que o seu constante aborrecimento poderia ter sido a causa de uma paixão”. Ainda na Santa Casa, Geralselia recebeu do coronel Arioswaldo a oferta de uma picape para levar a família ao enterro, o que foi recusado. De acordo com ela, o coronel estava cabisbaixo e chorando. Geralselia levantou a cabeça dele, perguntando por que Arioswaldo não a encarava. Mas ele nada disse, e continuou a chorar.
Geomar foi sepultado em trajes civis, sem a presença de representante do comando do 1° BIB, no cemitério de Volta Redonda. No dia 15 de janeiro, o bispo dom Waldyr Calheiros procurou os familiares, pois tinha sido informado por “fiéis de sua igreja” da morte do soldado e queria saber quais providências pretendiam tomar. A partir do relato de Geralselia, o bispo elaborou um documento e o enviou a várias autoridades públicas e eclesiásticas. Em 19 de janeiro, fez questão de oficiar a missa de sétimo dia de Geomar.
Entre os fatos narrados ao procurador durante as investigações, Geralselia contou que certa vez seu irmão chegou “muito nervoso” em casa, revelando que havia sido “dispensado do serviço após ter sido obrigado por um capitão e um tenente a transportar envolvido num lençol o corpo de um civil, civil esse que teria sido preso quando pregava papéis de propaganda de uma firma comercial”. Segundo ela, o episódio ocorreu “em fins de dezembro de 1971” e, além dos envolvidos – cujos nomes desconhecia –, apenas o soldado Geomar sabia do ocorrido. Geralselia atribuiu o violento tratamento recebido pelo irmão ao conhecimento do fato mencionado e eventualmente de outros episódios similares.
As sessões do CEJ continuaram. Em 3 de julho, o advogado Augusto Süssekind de Moraes Rêgo requereu que o capitão Niebus fosse submetido a um exame de sanidade mental. O Ministério Público não se opôs, e a solicitação foi deferida pelo conselho, por maioria de votos.
Depois de ouvida a última testemunha de defesa, o conselho decidiu programar uma visita informal ao 1° BIB, acompanhado do Ministério Público e de todos os defensores dos acusados. Ciceroneado pelo então comandante da unidade, tenente-coronel João Cassio Martins de Souza Santos, no dia 10 de julho o grupo percorreu as dependências da unidade, inclusive o “arquivo”, o local em que os presos foram interrogados sob tortura.
Em 24 de agosto, o procurador Leitão precisou de quase cem páginas para detalhar o caso à 2ª Auditoria do Exército da 1ª CJM. Em determinado momento, registrou: “Já se acha bem visível que os acusados procuraram coagir as vítimas e testemunhas a calar a verdade. Sua ação contra a Justiça não parou aí. Procuraram destruir os vestígios delituais, fazendo desaparecer os instrumentos usados em seus crimes.” Sobre a veracidade dos fatos, antes de transcrever as confissões dos envolvidos nas torturas e mortes, observou: “Ainda no elenco das provas, temos a confissão dos acusados, à exceção do que declarou o tenente-coronel Gladstone. Esse acusado leva suas implicações até o conhecimento da sindicância, negando saber de tudo o mais.”
Não convenceu o representante do Ministério Público, que anotou: “A verdade é que o tenente-coronel Gladstone tomou conhecimento da morte de Monção e Vanderlei e da existência de outros soldados feridos, autorizando o capitão Niebus a ‘remediar’ a situação.” Para demonstrar sua convicção, lembrou que o tenente-coronel Gladstone fez “um simulacro” de IPM e providenciou a defesa dos demais acusados, inclusive a do capitão Niebus e do tenente Miranda. Na avaliação de Leitão, “ficou bem esclarecido que os depoimentos assinados pelo tenente-coronel Gladstone, como encarregado, eram elaborados pelo capitão Niebus”.
A resistência de Niebus, “que impedia a todo transe a entrada do médico do batalhão” no “arquivo”, não passou despercebida do procurador, ao recordar a resposta dada por ele a uma solicitação do cabo Cesar Luiz, enfermeiro, para que fosse chamado o médico: “Está doido? Você quer me ver fodido? Faça o possível.” De acordo com Leitão, o capitão inclusive ameaçou o cabo.
Já a participação de Nelson Ribeiro de Moura e Iranides Ferreira foi, “antes de tudo, produto da ignorância de ambos”, classificou Leitão. Na avaliação do procurador, Moura não reunia condições para o cargo que ocupava, de auxiliar de perito da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. “Conforme declarou, não tem conhecimentos profissionais para proceder a uma necrópsia. Todavia, compartilha, ao lado de um médico, as assinaturas de tais laudos.” E definiu Iranides Ferreira, que “prestava serviços à secção de roubos e furtos da delegacia de Barra Mansa”, como “semianalfabeto”. “Por injunções políticas, logrou obter uma carteira graciosa de ‘auxiliar de fiscal de censura’, sem qualquer remuneração por parte do Estado.” Ao se referir aos dois civis, sintetizou: “É óbvio que atenderam ao chamado do tenente Miranda” com o objetivo de agradá-lo “e gozarem de sua simpatia, caso dela viessem a precisar futuramente.”
Considerando provada a denúncia contra os acusados, Leitão pediu a condenação do tenente-coronel Gladstone, do capitão Niebus, do segundo-tenente Miranda, dos terceiros-sargentos Etel, Rubens e Guedes, dos cabos Cruz e Freitas e dos civis Nelson Ribeiro de Moura e Iranides Ferreira.
Na tentativa de livrar seus clientes da condenação, os advogados dos réus apresentaram todo tipo de documento, como, no caso de Gladstone, cópias de condecorações e medalhas, uma delas concedida pelo secretário do Exército dos Estados Unidos por serviços prestados em 1965 ao comando unificado da Força Interamericana de Paz em “operações de estabilização” na República Dominicana. A defesa do capitão Niebus, por sua vez, pretendeu justificar os fatos recorrendo ao contexto histórico.
Esse processo representa um estado de espírito, representa uma necessidade, representa uma verdade e representa o que se passa, realmente, encobertamente, dentro deste país. As Forças Armadas enfrentam uma guerra revolucionária, encoberta, ativa, vigilante e ainda não vencida. Quem o diz é a Lei de Segurança Nacional; quem o comprova é a jurisprudência dos nossos tribunais, apelou Moraes Rêgo.
Outro argumento mobilizado pelo advogado foi o de que o capitão Niebus apenas obedecia. “Ele era um militar que cumpria a ordem para defender o bom nome do Exército e salvaguardar as instituições que poderiam sofrer, como sofreram, os ataques dos inimigos das instituições.” Para Moraes Rêgo, a admitir-se a responsabilidade do capitão, “então ela estaria dividida com toda a unidade militar”:
Terminada a tragédia, os oficiais inferiores, os soldados que obedeciam às ordens, imbuídos do espírito da guerra revolucionária, alimentados por um idealismo de um fato verdadeiro, mas truncado, é que são os responsáveis. Eles são os facínoras. O resto, todos aqueles que andavam pelo quartel, todos aqueles que viam os fatos, tudo aquilo que se discutia na cidade, não era nada mais do que murmúrios de vozes e os anjos de asas brancas continuavam cantando loas ao Senhor, na doce paz de uma irrealidade.
O advogado escreveu que era necessário ter hombridade, coragem e dignidade “de se dizer a verdade, de se mostrar, de se positivar o real, para que ninguém, como o defendente, possa pagar pelo que não fez ou pelo que agiu debaixo de ordens, na concepção daquilo em que foi criado, de estar em uma guerra revolucionária, lutando na defesa dos interesses pátrios”.
Na sessão de 11 de dezembro, quase um ano depois do “acontecido”, o CEJ tomou conhecimento do laudo relativo ao exame de sanidade mental a que havia sido submetido, em setembro, o capitão Niebus. No tópico dedicado ao exame psíquico, os peritos anotaram: “Inquirido sobre os fatos que o levaram à situação em que se encontra, declarou que na qualidade de s/2, isto é, oficial de informações da unidade, era pessoa de confiança do comandante e que por sua função deveria colher e reter as informações de interesse para a unidade e o Exército.”
Sobre as acusações,
diz que se limitou a cumprir ordens, cooperando no desaparecimento dos corpos das vítimas, por ser bom motorista e desejar tirar aquela impressão que pudesse manchar o nome e o conceito que a unidade desfruta no local. Sentiu-se repugnado com os fatos e pela sorte que algumas das vítimas tiveram. Perguntado por que assim procedera e se não pensava como chefe de família que é, em face de sua função, declarou que se tivesse que pensar em sua família jamais poderia ser oficial de informações.
De acordo com o registro dos peritos, “tudo nos foi dito em estado de clareza de consciência, com vocabulário adequado, sem interrupções e de maneira mais fria em face da gravidade dos acontecimentos e das acusações”. Conforme a perícia, o capitão Niebus “considera-se culpado de alguma coisa por deixar de ter tomado alguma atitude, mas, ao mesmo tempo, considera-se inocente por saber que estava cumprindo as ordens alegadas superiores”. Na enfermaria, o capitão “permanece isolado, mas sem apresentar distúrbios de conduta, não se preocupando, aparentemente e ao contrário dos demais doentes, sobre a solução do seu caso”.
Ficou estabelecido que às 9 horas de 10 de janeiro teria início o julgamento dos acusados. Mas, por solicitação da defesa do cabo Freitas, a primeira audiência foi postergada em uma semana.
às 11 horas do dia 17 de janeiro de 1973, o Conselho Especial de Justiça se reuniu na sede da 2ª Auditoria do Exército da 1ª CJM, no Rio de Janeiro, para o julgamento. Além dos integrantes do conselho, presidido pelo coronel Vicente Galatro, estavam lá os dez acusados, seus advogados, o juiz auditor Helmo de Azevedo Süssekind, o procurador José Manes Leitão e o assistente de acusação João Velloso Filho.
O primeiro item da pauta foi a solicitação de Moraes Rêgo, advogado de Niebus, para que não apenas o julgamento fosse realizado em segredo de Justiça, mas que a própria análise desse pedido ocorresse longe do público. Novamente o Ministério Público concordou. Após deliberação, o CEJ acolheu o pedido da defesa e determinou que a apreciação do requerimento do advogado se desse com a presença, na sala de julgamento, apenas das pessoas que, “de direito, devessem permanecer”, ou seja, os diretamente envolvidos no processo. Na sala esvaziada, o auditor foi voto vencido. Ele defendia que o requerimento deveria ser decidido em audiência pública.
Em seguida, por unanimidade, todos os defensores dos réus endossaram a solicitação de Moraes Rêgo de que o julgamento também fosse feito em segredo de Justiça. O auditor voltou a discordar. Para ele,
tal fato, inusitado na Justiça castrense, não corresponde aos interesses do Exército, que apresentou, através de um rigoroso IPM, quinze indiciados ao crivo da Justiça Militar, dos quais somente dez foram denunciados, o que demonstra o rigor com que agiram as autoridades militares; e não atende também aos interesses da Justiça Militar, porquanto os denunciados estão sujeitos, de acordo com o pedido formulado na denúncia e seu aditamento, a elevadas penas de reclusão, havendo, portanto, necessidade de que, pelos debates públicos, se dê conhecimento à sociedade civil e militar das razões da aplicação da lei.
O conselho ignorou, mais uma vez, o voto contrário do auditor.
Após a leitura da denúncia e demais peças, conforme estipulado na lei processual militar, o representante do Ministério Público pediu a condenação de todos os acusados. Os advogados dos réus apresentaram, então, suas teses de defesa. Alguns, como os advogados do tenente-coronel Gladstone, ou o advogado de ofício do terceiro-sargento Guedes, pediram “a absolvição” de seus clientes. Outros defensores clamaram por “justiça”.
A defesa do capitão Niebus observou que “estes homens foram treinados para a guerra, não são homens comuns, são especializados para enfrentar a guerra revolucionária existente” e concluiu que a responsabilidade era do coronel Arioswaldo, àquela altura ex-comandante do 1° BIB, e do comandante substituto tenente-coronel Gladstone, “que estavam cientes do que ocorria na unidade”. “Ou são todos responsáveis ou ninguém é responsável”, declarou Moraes Rêgo, antes de apelar pela absolvição dos acusados ou a “condenação a justas penas”.
Em seu testemunho, no entanto, o soldado Aparecido havia informado “que mesmo não tendo oficial presente os presos eram espancados”, o que demonstraria, conforme anotado na sentença, “a ausência de qualquer coação hierárquica sobre os graduados, que também agiam espontaneamente, dando vazão aos seus instintos criminosos em igualdade com seus superiores, capitão Niebus e tenente Miranda, e a deliberada passividade dos demais”.
Ao ocuparem a tribuna para a tréplica, os advogados defenderam a “necessidade da desclassificação do delito de homicídio, de doloso para culposo, já que este jamais foi querido ou pretendido por qualquer dos acusados em razão das agressões”.
Em 22 de janeiro, depois de ter se reunido em sessão por seis dias, o conselho constituído para julgar os acusados considerou “que tais fatos delituosos, únicos na longa crônica da Justiça Militar, receberam a repulsa unânime dos escalões superiores do Exército, que de público se manifestaram sobre os lamentáveis fatos através da imprensa, o que demonstra a repercussão negativa para as instituições de tais crimes, numa sociedade democrática”. Também avaliou “que foi elevada a intensidade do dolo com que agiram os acusados, graves os resultados dos crimes praticados, grande o prejuízo moral à instituição a quem pertencem vítimas e acusados, além dos métodos bárbaros que empregaram”.
Por unanimidade de votos, os réus foram condenados às seguintes penas de reclusão: o tenente-coronel Gladstone, 7 anos; o capitão Niebus, 84 anos; o segundo-tenente Miranda, 77 anos; os terceiros-sargentos Etel e Rubens e o cabo Cruz, 62 anos; o terceiro-sargento Guedes e o cabo Freitas, 58 anos; Nelson Ribeiro de Moura, 2 anos; e Iranides Ferreira, 1 ano. A sentença foi assinada pelo coronel Vicente Galatro, presidente do CEJ, pelos demais coronéis juízes que compunham a comissão, e pelo auditor Helmo de Azevedo Süssekind, a quem coube, no dia seguinte, informar a decisão, via ofício, a distintas unidades militares.
Em meados de junho, em comunicação dirigida ao general Adalberto Pereira dos Santos, ministro presidente do STM, Süssekind informou que o escrivão Milton Gomes Guimarães “deslocou-se, por via aérea”, até Brasília, “com a missão de transportar os autos do processo n° 17/72”. Registrou sua “certeza de que, assim procedendo, estou colaborando com os elevados propósitos das autoridades encarregadas pela segurança nacional”.
Fez quatro considerações:
1) Trata-se do chamado “processo das torturas”, pois, desta forma, foram mortos quatro soldados do Exército Brasileiro, também, impropriamente, conhecido por “processo de Barra Mansa”, em razão do local em que ocorreram os fatos delituosos;
2) Embora não tivessem os delitos qualquer motivação política, este Juízo foi, em tempo, devidamente alertado pelas autoridades de segurança do 1º Exército que elementos comuno-subversivos, no Brasil e no exterior, iriam ignominiosamente, através da instrução criminal e do julgamento do processo, comprovar a existência de torturas no país, como instituição oficial, e, assim, indiretamente, confirmar a infame campanha de difamação movida no exterior contra a nossa Pátria;
3) Por proposta deste Juízo, a instrução criminal correu em segredo de Justiça e o julgamento, a requerimento da defesa dos acusados – contra o meu voto – também foi realizado em segredo de Justiça;
4) A leitura da sentença foi feita, como determina a lei, em sessão pública, porém dada a discrição com que foi realizada, muitos dias após a sessão de julgamento, sua repercussão foi nenhuma, e a ela só estavam presentes alguns dos procuradores dos acusados, embora todos estivessem devidamente notificados.
No ofício classificado como “reservado”, o auditor também informou que somente foram dadas cópias das sentenças aos ministros da Justiça e do Exército, que a requereram, e a alguns dos procuradores dos acusados, “apesar dos inúmeros pedidos da imprensa nacional e estrangeira”, sistematicamente negados.
A procuradoria militar da 2ª Auditoria do Exército da 1ª CJM e os dez condenados não demoraram a recorrer da sentença proferida pelo CEJ.
Em 21 de junho de 1974, o STM, presidido pelo general Jurandir de Bizarria Mamede, apresentou sua decisão. Em 26 páginas, o também general Rodrigo Octávio Jordão Ramos detalhou, em separado, seu voto sobre a “sequência verdadeiramente macabra que pode bem caracterizar sem dúvida o ‘crime do século’ em unidades militares”. Logo no início, anotou:
Incompreensível assim é a sequência que nos dão notícias, muitos processos aqui estudados e julgados, das alegações continuadas da existência de torturas, como meio de violência exercida pelos representantes do poder político em sua forma subalterna – certamente a mais odiosa – porque coloca seres humanos à mercê de outros, sem capacidade de esboçar o menor gesto de defesa, quer de sua integridade física, quer de sua personalidade espiritual.
Discorreu ainda sobre a prática de tortura:
Não obstante a Declaração Universal dos Direitos do Homem, consagrada pelas Nações Unidas, e da qual também somos signatários, como quase todas as nações do mundo ocidental, haveria essa forma sutil de indignificar o homem, ao surgir generalizadamente com violência inaudita na guerra revolucionária, seja nas ações terroristas ou de guerrilha, seja nas ações de repressão, através de instrumentos policiais ou órgãos especiais de segurança.
Depois de tratar das quatro mortes, prosseguiu:
Onze soldados foram ainda severamente seviciados no decorrer dos interrogatórios inquisitoriais, tudo isso em um quartel, onde a hierarquia impõe responsabilidade definida em todos os escalões de comando, além de assistência médica permanente, com encargos funcionais inarredáveis perfeitamente definidos em regulamentos militares.
Sublinhou o fato de o capitão Niebus ignorar “qualquer resquício das virtudes militares que presidiram a sua formação profissional” ao “profanar os cadáveres de seus companheiros tão vilmente massacrados, para fazer desaparecer a prova material de seus nefandos crimes” e de negar “às famílias o último consolo de velar e sepultar de maneira cristã os seus entes queridos entregues ao serviço da Pátria”. Em seguida, o general Rodrigo Octávio Ramos destacou:
Em tudo isso é de notar, como se verificou no IPM, pelas declarações das testemunhas, a ausência continuada e covarde do médico da unidade, em atender aos seus camaradas feridos, além da omissão do comandante efetivo que procura se inocentar, com a alegação inaceitável de encontrar-se em férias, quando diariamente ia ao quartel, conversava com o capitão chefe da equipe e certamente não poderia deixar de estar a par da evolução dos acontecimentos.
Para o general, a “ação criminal” poderia ter sido evitada se o comandante “tivesse agido, consoante a sua responsabilidade funcional permanente, em face da denúncia que lhe foi levada pela irmã de um dos soldados”, seis dias antes de sua morte.
O general afirmou que os crimes, “pela infâmia de que se revestiram, atentam até contra a Lei Magna e os mais sagrados deveres militares e humanos, evidenciando um estado paranoico de verdadeiro delírio, orientando uma filosofia malsã, capaz de abalar os alicerces de qualquer país democrático”. E completou, dizendo
que cabe à Justiça Militar a salvaguarda do comportamento ético e da dignidade das Forças Armadas, ao lado da prevenção e penalização das ações subversivas, terroristas e corruptoras que busquem infirmar os propósitos revolucionários, de maneira a transformar o Brasil em uma Grande Nação onde possa ser realidade o respeito devido à liberdade e às garantias dos direitos individuais.
Por maioria dos votos, os ministros do STM acordaram “dar provimento, em parte” aos apelos do capitão Niebus e do tenente Miranda, reduzindo as sentenças de 84 anos e 77 anos, respectivamente, para 67 anos e 8 meses, para ambos. Seguindo a mesma lógica, as penas dos terceiros-sargentos Rubens, Etel e Guedes e dos cabos Cruz e Freitas passaram a ser de 50 anos e 9 meses de reclusão (antes eram de 62 anos, para os três primeiros, e de 58 anos, para os dois últimos). Também foi estabelecida a pena acessória de perda do posto e patente ao capitão Niebus e ao tenente Miranda. Aos três sargentos e dois cabos a pena acessória foi de exclusão do serviço do Exército. O tenente-coronel Gladstone foi condenado “por desclassificação” a uma pena de dez meses de detenção (a pena anterior era de sete anos). Nelson Ribeiro de Moura e Iranides Ferreira também tiveram suas sentenças reformadas: elas passaram de dois anos (no primeiro caso) e um ano (no segundo) para quatro meses de prisão.
[1] Gerador elétrico com manivela, parecida com as dos telefones antigos, que ao ser girada produz uma descarga de energia.
[2] Envolvido no golpe de 1964, desde o deslocamento de tropas rebeldes para o Rio de Janeiro, o general paranaense foi ministro do Exército no governo João Batista Figueiredo, de 1979 a 1985. Morreu em 1990, aos 75 anos.
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