Marie Cavelan, em foto tirada pelo namorado, Marcelo Constantino, durante o trágico voo para o litoral da Bahia; ao fundo, vê-se Tuka Rocha conversando com o garoto Eduardo CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL
O dia em que eles caíram do céu
E a batalha para responsabilizar o bilionário mais desconhecido do Brasil
João Batista Jr. | Edição 173, Fevereiro 2021
Os oito passageiros já vislumbravam o mar em tons esmeralda e turquesa da paradisíaca Península de Maraú, no litoral da Bahia, no momento em que o bimotor Cessna 550 iniciou o processo de aterrissagem. Lentamente, o jato desceu de um céu limpo e claro e, quando parecia prestes a tocar a pista de 1 km de extensão, ouviu-se um estrondo – os vidros da cabine de comando estouraram, a aeronave começou a chacoalhar intensamente, o trem de pouso espatifou-se, os passageiros começaram a gritar. O jato executivo havia pousado antes da cabeceira da pista. O avião arrastou-se por cerca de 200 metros sobre uma área de terra e grama. “Fazia um barulho infernal”, lembra um dos sobreviventes, o empresário Marcelo Constantino, de 29 anos, neto do fundador da empresa aérea Gol. De repente, o avião parou. Eram duas da tarde da quinta-feira, 14 de novembro de 2019. Tripulantes e passageiros estavam ilesos. Ninguém desmaiou, ninguém se machucou.
O grupo de amigos – todos jovens, endinheirados, animados com o programa de passar o feriado prolongado da Proclamação da República à beira das águas esplêndidas do litoral baiano – sentiu-se aliviado depois do enorme susto. “Na minha cabeça, assim que o avião parou, todos iríamos sair andando e o caso seria parecido com um acidente de carro sem gravidade”, relembra Marie Cavelan, de 28 anos, namorada de Constantino. “Pensei até em pegar minha bolsa antes de sair do jatinho.”
Só que a tragédia estava por vir.
Sentado na poltrona ao lado da porta, Constantino logo percebeu, assim que o jato parou de arrastar-se pelo terreno, que uma língua de fogo, provavelmente saindo da parte inferior da aeronave, projetava-se entre a porta e a asa do aparelho. Imediatamente, ele destravou seu cinto de segurança, abriu a porta do jato e deparou-se com o que agora já era uma bola de fogo. Houve mais gritos de pânico. Em uma atitude impulsiva, Constantino saltou do avião e saiu, tentando esquivar-se das chamas que formavam uma espécie de corredor à sua frente. “Saí correndo e nem olhei para trás”, rememorou ele, numa tarde de dezembro passado, com sua fala acelerada e precisa.
Em seguida, Eduardo Mussi, então com 33 anos, autor da ideia de reunir os amigos na Península de Maraú naquele feriadão, saltou da aeronave. Atrás dele, às pressas, saltou Marie Cavelan, que a exemplo do namorado, também correu tentando desviar das labaredas. Depois dela, saiu Maysa Mussi, 32 anos, mulher de Eduardo. Quase ao mesmo tempo, saltaram Tuka Rocha, piloto de Stock Car, 36 anos, e o empresário Eduardo Elias, então com 38 anos, que correu segurando o filho pequeno no colo. O piloto Aires Napoleão Guerra, 66 anos, e o copiloto, Fernando Oliveira Silva, 26 anos, saíram pelo para-brisa da cabine, cujos vidros tinham se estilhaçado. Todos se queimaram.
Havia um clima de terror. Choro, desespero, gritos de dor física, um cheiro forte de combustível, o pavor de ver as chamas tomando conta do jato – e Marcela, de 37 anos, mulher de Eduardo Elias, ainda lá dentro, sem conseguir escapar. Até que o avião, parcialmente engolfado pelo fogo, explodiu. Marcela foi a primeira vítima fatal daquele dia trágico. Constantino, com as duas mãos em carne viva, tentava amparar a namorada, que berrava de dor com bolhas enormes pelo corpo. Tuka Rocha, com cerca de 80% do corpo queimado, rolava na grama tentando apagar as chamas. Estava apenas de cueca, suas roupas – a camiseta e a calça jeans – haviam sido carbonizadas. Seu corpo, inchado, ganhou uma coloração acinzentada.
Cinco operários, que trabalhavam nas obras de reforma do resort, acudiram as vítimas e chamaram socorro. Em poucos minutos, chegaram uma Saveiro e um bugue de praia. Todos os nove sobreviventes foram levados para o posto de saúde de Maraú, cidadezinha de 20 mil habitantes. No trajeto de 4 km, Eduardo Elias ficou repetindo “a Marcela ficou, a Marcela ficou”. Seu filho, também atônito, passou o tempo todo calado. (O corpo de Marcela foi resgatado dos destroços e, no dia seguinte, levado ao Instituto Médico Legal, em Salvador. Depois do reconhecimento pela arcada dentária, os restos mortais foram trasladados para São Paulo.)
No posto de saúde, a precariedade era total. As enfermeiras jogavam soro fisiológico nas bolhas e feridas. A população local, informada do acidente, acorreu ao posto para prestar ajuda. Mas não havia nem anestésicos no posto de saúde. Passou-se uma hora até chegarem apenas quatro ampolas de morfina, cada uma com 10 mg, para atender nove feridos. Como estavam em pior estado, só Tuka Rocha e Maysa Mussi receberam a medicação. Ele não conseguia parar em pé e precisava ser intubado. Ela tivera a pele fundida com a calça jeans com elastano, uma fibra sintética altamente inflamável.
Constantino tinha queimaduras de terceiro grau, o estágio mais severo, em que o fogo passa da epiderme e atinge as terminações nervosas. Por isso mesmo, apesar da pele necrosada e com aspecto acinzentado, ele não sentia dor. Além das mãos, as chamas atingiram seus braços e pernas. Cavelan, sua namorada, teve 36% da superfície do corpo tomada por queimaduras em sua maioria de segundo grau, e sentia dor, muita dor. Como saltou do avião descalça, queimou 100% das solas dos pés. Quando chegou ao posto de saúde, tinha bolhas pelos braços, ombros, pernas e pés – algumas do tamanho de jabuticabas, outras grandes como uma maçã. Seu rosto, porém, saiu intacto. “Ao pular do avião, por instinto, coloquei as minhas mãos no rosto”, lembra ela, uma mulher bonita e de fala dócil.
Em caso de queimaduras, um dos efeitos colaterais mais imediatos é a perda de líquido, que pode provocar queda brusca da pressão arterial, paralisação dos rins e outros órgãos vitais, deixando a vítima em estado de choque. Esse quadro pode levar à morte. Por isso, a reposição de líquido é fundamental. Uma pessoa de 70 kg com 70% do corpo queimado requer cerca de 10 litros de água já nas primeiras horas. Diante da gravidade dos ferimentos, os sobreviventes precisavam ser transferidos com urgência para Salvador, a 250 km de distância.
Às 17 horas, três aeronaves pousaram na pista onde, três horas antes, o jatinho explodira. Eram dois helicópteros Esquilo AS350 e um avião Cessna Grand Caravan, equipado com uma UTI. A mobilização para o resgate começou logo depois do acidente, quando tocou o celular do deputado federal Guilherme Mussi (PP-SP), irmão de Eduardo. Ele almoçava com amigos num restaurante japonês na badalada Rua Amauri, em São Paulo. Ao ver na tela o número da mãe, que estava em viagem com o marido pela Toscana, o deputado estranhou. Quando atendeu, a mãe, aos prantos, disse que Eduardo sofrera um acidente aéreo na Bahia. Ninguém sabia com precisão a gravidade do caso. De imediato, Guilherme Mussi, que é o mais velho de três filhos, ligou para o então prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA). Magalhães Neto estava fora da cidade, mas entrou em ação para ajudar no resgate em Maraú.
Em seu escritório na capital baiana, o deputado federal João Carlos Bacelar (PL-BA) recebeu um telefonema de seu piloto particular. Achou que seria algo sobre o voo que fariam naquela tarde para a sua fazenda, em Mato Grosso, mas como a secretária anunciou a ligação em um estado incomum de agitação, ele preparou-se para uma surpresa. “Doutor João”, começou o piloto. “Um grupo de WhatsApp de pilotos tá aqui pipocando; tão dizendo que o avião de seu amigo Mussi caiu e está pegando fogo lá em Maraú.” O deputado ligou para Guilherme Mussi, em São Paulo, supondo ser ele a vítima. Deu sinal de ocupado. Acionou então Marcelo Mussi, o irmão do meio. “Ele já me atendeu chorando e me explicou que, na verdade, quem estava dentro do jato era o caçula, o Eduardo, com um grupo de amigos”, lembra Bacelar.
A partir daquele momento, Bacelar virou o articulador do resgate. “Maraú é um pedaço do paraíso, mas não tem estrutura. Tínhamos que trazer todo mundo aqui para Salvador.” O deputado ligou para o então secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, e para o secretário de Saúde, Fábio Vilas-Boas. Informou sobre o acidente e discutiu um plano emergencial. Às 15h30, as três aeronaves estavam designadas para a operação. Assim que pousaram na pista em Maraú, as vítimas foram divididas segundo a gravidade.
Tuka Rocha, Maysa Mussi, Eduardo Elias e seu filho, todos sem condições de andar e com dificuldades para respirar, foram no avião com UTI. Antes de embarcar, foram intubados na própria pista. Em um dos helicópteros, embarcaram Marie Cavelan, Eduardo Mussi e o copiloto Fernando Silva, que sofrera queimaduras nos braços e nas mãos. Em outro, que saiu mais tarde, por volta das 18 horas, estavam Constantino e o piloto Aires Guerra, o menos ferido de todos. Constantino sentiu náuseas durante todo o voo. Chegou a vomitar sobre as próprias feridas quando já não havia mais sacos plásticos disponíveis. Assim que pousaram em Salvador, ele também foi intubado. “Tenho quase 50 anos de idade e posso afirmar com toda certeza: nunca vi cenas tão tristes e desesperadoras”, conta Bacelar, que recebeu as vítimas que foram internadas no Hospital Geral do Estado, um dos principais do Nordeste, com uma ala dedicada a queimados. “Lembro do forte odor de carne queimada, da pele derretida e das bolhas do tamanho de maçãs no corpo dos sobreviventes.”
De imediato, Marie Cavelan tomou uma anestesia geral e passou por sua primeira cirurgia de desbridamento, como é chamada a remoção, com bisturi e tesoura, dos tecidos mortos ou considerados inviáveis. É um processo vital para a recuperação, pois a pele sem capacidade de regeneração é facilmente contaminada por bactérias. “Minha pele ardia, doía. Eu olhava para o lado e não conhecia ninguém”, lembra ela, descrevendo sua chegada ao hospital, quando foi encaminhada para a anestesia. “Não sabia se sairia viva da sala, e nem mesmo o que seria feito comigo. Onde estavam meus amigos e meu namorado? Estavam vivos?”
A remoção da pele necrosada levou seis horas e transcorreu com sucesso. Com braços, mãos, pernas e pés enfaixados, Cavelan acordou na madrugada de sexta-feira, 15 de novembro, e quis notícias dos amigos. Soube que, enquanto era operada, todos os demais, inclusive seu namorado, haviam sido intubados e também submetidos à cirurgia de desbridamento. Teve uma crise de choro.
Entre a noite do dia 14 e a manhã seguinte, os familiares começaram a chegar a Salvador. Claudia Pernambuco, mãe de Cavelan, e o padrasto, Rodrigo Canto, a encontraram em estado de sobressalto. Ela não compreendia direito o que estava acontecendo. Sergio e Lívia, pais do piloto Tuka Rocha, pegaram uma carona no jato fretado por Guilherme Mussi em São Paulo. “Para nos poupar, não nos deixaram ver o nosso filho nesse primeiro momento”, lembra Lívia, com os olhos marejados, em sua casa em São Paulo, sentada numa sala decorada com capacetes e retratos de Tuka. “Médicos e enfermeiros repetiam que ele estava muito queimado, nada além disso. Quando eu perguntava o quão queimado, todos ficavam em silêncio.”
No dia seguinte, quando seu filho foi transferido do centro cirúrgico para a UTI, Lívia teve então autorização para vê-lo e ficar com ele. Percebeu de imediato a gravidade da situação, chorou e rezou, mas não perdeu a esperança de que se recuperasse. “Não saí um minuto do lado dele. O tratamento do hospital do SUS ali foi impecável, fizeram tudo o que puderam. Mas o corpo dele tinha sido tomado pelo fogo.” De fato, quando precisou se submeter à hemodiálise em função do mau funcionamento dos rins, sua pele estava tão queimada que os enfermeiros não conseguiam encontrar uma veia saudável para introduzir o cateter.
O casal Orlando e Jurema Marques chegou a Salvador em voo comercial. Fora uma viagem dramática. Uma filha (Marcela) morrera na explosão do jato e outra (Maysa) estava internada em estado grave, assim como Eduardinho, o único neto. No sábado, 16 de novembro, dois dias depois do acidente, Maysa morreu. Era a segunda filha que perdiam na tragédia. No domingo, com hemorragia interna, Tuka Rocha morreu. Na madrugada do dia 24, o copiloto Fernando Silva, que tinha apenas um rim, morreu. Em 12 de dezembro, dois dias antes de completar um mês do acidente, Eduardinho, que havia três semanas fora transferido para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, também morreu. Tinha 6 anos de idade.
O impacto da morte do garoto foi devastador. Dos quartos de Mussi, Cavelan e Constantino, que também tinham sido transferidos para o Einstein, era possível ouvir o choro de médicos e enfermeiros. Orlando e Jurema acompanharam a internação do neto o tempo todo. Quando foi anunciada a morte do menino, Orlando, desolado, abraçava familiares de outros sobreviventes que ainda se recuperavam no hospital e dizia: “Agora, acabou a minha família.” Eduardo Elias, o único que fora internado no Hospital Oswaldo Cruz, também em São Paulo, ainda se recuperava das queimaduras e não pôde sequer ir ao enterro da mulher nem da cunhada e, depois, também não pôde comparecer ao enterro do próprio filho.
As cirurgias de desbridamento ocorriam cerca de três vezes por semana, sempre sob anestesia geral. Marie Cavelan fez 27 operações. Marcelo Constantino, 28. Eduardo Mussi, 30. Para evitar rejeição, receberam enxertos da sua própria pele saudável, geralmente retirada das coxas ou das costas. É um processo lento e dolorido. Constantino passou por sessões de hemodiálise para proteger os rins sobrecarregados com a falta de líquido e o excesso de remédios. Todos tiveram infecções, que respondem por 70% das mortes em vítimas de queimadura, apesar do protocolo a que se submeteram, com restrição de visitas e esterilização rigorosa.
Cavelan, Constantino, Mussi e Elias passaram o Natal e o Réveillon hospitalizados. Diante das circunstâncias, Cavelan fez um pedido à equipe médica. No dia 22 de dezembro, sua maca foi levada até a sala de UTI onde estava seu namorado, Constantino. Os dois acenaram, com as mãos já sem as faixas, mas com movimentos ainda restritos. Eles não se viam havia um mês. Trocaram presentes de Natal. Cavelan deu um escapulário de Nossa Senhora Aparecida e uma carta escrita à mão, ainda com a letra imprecisa de quem estava reaprendendo a segurar uma caneta nas sessões diárias de fisioterapia. Constantino, por sua vez, deu uma carta ditada por ele e escrita por sua mãe, Auristela.
Ao final de um período de setenta a oitenta dias de internação, todos os cinco sobreviventes tiveram alta para prosseguir o tratamento em casa, e alguns deles começaram uma outra batalha – a de responsabilizar os culpados.
O dono do Cessna que explodiu é José João Abdalla Filho. Chamado de “Juca” pelos íntimos, ele é o mais célebre anônimo bilionário do Brasil. Não tem vida social pública, não frequenta jantares ou casamentos dos bem-nascidos. Nunca se casou, não tem filhos. Em buscas na internet, encontra-se uma única foto dele, na qual aparece com uma calvície discreta (ele tem 75 anos) e cabelos inteiramente brancos. Com uma herança polpuda e negócios que se expandem para áreas que vão da mineração ao agronegócio, do petróleo ao mercado imobiliário, Abdalla amealhou uma fortuna estimada em 12,5 bilhões de reais, segundo a edição de outubro passado da revista Forbes, figurando então como a vigésima pessoa mais rica do Brasil. É dono do Banco Clássico, que não tem agência nem correntista, porque tem um único cliente: seu próprio dono. O Clássico existe apenas para administrar e expandir os negócios de Abdalla.
Ele só precisou declarar publicamente seu patrimônio pessoal em 2006, quando concorreu a suplente de Teresa Surita, ex-mulher de Romero Jucá, que tentou – sem sucesso – uma cadeira no Senado por Roraima. Na ocasião, Abdalla disse que seu patrimônio era de menos de 400 mil reais – precisamente, 379.210,04 reais. O número não incluía o patrimônio das empresas da qual ele é o dono. Mesmo a Forbes, com sua estimativa de 12,5 bilhões, também subfaturou a fortuna de Abdalla, cujo tamanho apareceu numa audiência na Justiça.
No dia 18 de dezembro passado, o bilionário prestou depoimento em um processo em que é acusado de pagar pelo menos 250 mil reais de propina a um juiz para obter vantagens no recebimento de precatórios de um terreno desapropriado para fins de reforma agrária. (O juiz está preso desde meados do ano passado.) A certa altura da audiência, a desembargadora Therezinha Cazerta, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, quis saber o tamanho do patrimônio de Abdalla. Era uma audiência virtual, com a desembargadora em São Paulo e Abdalla no Rio de Janeiro. A piauí teve acesso à gravação, que registra o seguinte diálogo:
– O senhor possui bens imóveis em seu nome próprio? – pergunta a desembargadora.
– Não, muito pouco – responde Abdalla. – Alguns imóveis aí em São Paulo, que recebi da União na ocasião do confisco…
– Esses imóveis a que o senhor se refere…
– São rurais, excelência – interrompe Abdalla, logo dando a localização. – No município vizinho de São Paulo, Cajamar.
– O senhor tem bens então em nome de empresas?
– Eu tenho empresas, que têm vários bens… mineração, fazendas…
– O senhor saberia dizer de quantas empresas o senhor é sócio ou acionista?
– Vou falar as maiores, tá, excelência? Socal S.A. de Mineração, Jupem S.A. Empreendimentos… Estou dizendo das que eu sou presidente, tá bem? Essas duas são as principais.
– E de quais o senhor é acionista majoritário?
– De várias. Central de Imóveis e Agroimobiliária Avanhandava, sou acionista principal, e estão em liquidação.
– O senhor é acionista de outras empresas?
– Diretamente, não. O banco [refere-se ao Banco Clássico] que é acionista de várias empresas de capital aberto.
– Quantos acionistas tem esse banco?
– Só dois, excelência. Eu e uma funcionária para quem eu empresto umas ações porque é obrigado a ter dois, poucas ações, mas é irrelevante. Na realidade, sou só eu. Apenas para cumprir normas do Banco Central tem de ter ao menos dois [acionistas].
– O banco então é acionista de outras empresas?
– Não, o banco tem um fundo. E esse fundo exclusivo é cotista de empresas grandes […].
– O banco tem participação relevante nessas empresas?
– Sim, excelência: 10% da Engie, 10% da Cemig, 1% da Petrobras, que parece pouco, mas é muita coisa, 5% da Eletrobras…
– E qual é o patrimônio desse banco?
– Hoje, entre 16 e 17 bilhões.
– Milhões?
– Não, bilhões, excelência. Tem três zeros a mais.
– E qual é o seu patrimônio pessoal?
– Muito pequeno. Rico são os bancos e as outras empresas.
– Tudo somado, das empresas de que o senhor é presidente ou acionista, qual é o seu patrimônio? – insistiu a desembargadora.
– Não tenho ideia, nunca fiz essa conta.
Com um patrimônio que nunca se deu ao trabalho de contar, Abdalla está sendo processado por alguns familiares das vítimas da tragédia de Maraú. Sergio e Lívia, pais de Tuka Rocha, contrataram o advogado Nelson Wilians, de 49 anos, que tem escritórios em todos os estados do Brasil e 12 mil clientes, entre bancos, construtoras e hotéis. A sede fica num prédio comercial de alto padrão em São Paulo. Na sua sala, os lambris são decorados com uma tela de Portinari. Na estante principal, ele exibe miniaturas de alguns dos seus meios de transporte: um jato Legacy 650, um helicóptero Agusta 109 Power, duas lanchas vintage da italiana Riva, anos 1973 e 1996, e um iate Azimut 76 batizado de Anne, nome de sua mulher.
“Digamos que eu entenda muito bem de aviação”, diz Wilians, que comprou seu primeiro avião aos 29 anos. “O Abdalla alugou o avião com seus pilotos. Há fortes indícios de que a queda tenha sido resultado de erro humano cometido por um funcionário dele e ninguém é responsabilizado por cinco mortes e tamanha dor?” Antes de iniciar a batalha judicial, os pais de Tuka tentaram negociar uma compensação com o dono do avião. O advogado diz que, ao todo, enviou seis notificações para Abdalla. Nunca recebeu retorno.
Em setembro passado, orientados por Wilians, Sergio e Lívia entraram na Justiça com pedido de indenização por danos morais e materiais contra Abdalla. Cada um pede 300 mil reais, mais juros e correção, pelas perdas emergentes e lucros cessantes, calculados pelos ganhos que o filho deveria auferir se não tivesse morrido. Ainda que Tuka fosse um dos responsáveis pelos compromissos financeiros da família, o pedido é baixo. Por tradição, as indenizações em acidentes aéreos no Brasil são pífias, calculadas em algumas poucas centenas de salários mínimos. Nos Estados Unidos, chegam à casa dos bilhões de dólares. “Com isso, o Brasil causa ainda mais dor em quem já perdeu um parente. No caso de Tuka, então com 36 anos, sócio de uma empresa de tratores e com diversos eventos ligados à sua carreira como piloto de Stock Car, 300 mil reais parecem piada”, diz o advogado Felipe Pacheco Borges, do escritório de Wilians.
Os advogados de Abdalla contestaram a ação em novembro. Refutaram o valor de 300 mil reais, alegando que os pais não juntaram documentos capazes de provar os ganhos nem a dependência financeira do filho morto. Também pediram que, caso Abdalla seja condenado a pagar alguma indenização, a Justiça desconte os 75.885,94 reais já desembolsados pela seguradora em favor dos pais de Tuka. Na contestação, negam que o piloto Aires Guerra fosse funcionário de Abdalla e chegam a imputar a Tuka Rocha a responsabilidade por sua própria morte. Com base no noticiário da época, afirmam que Tuka teria retornado à aeronave para resgatar o garoto Eduardinho – e acabou adquirindo os ferimentos que o levaram à morte. (A informação é improcedente. A piauí checou com três sobreviventes: Eduardinho saiu no colo do próprio pai.)
O ponto central da defesa de Abdalla, no entanto, é outro: diz que não houve nenhum aluguel de avião. Os advogados do bilionário afirmam que o jato estava à venda no aeródromo de Jundiaí, no interior de São Paulo, de onde levantou voo rumo à Península de Maraú. Por estar à venda, a aeronave foi cedida aos interessados na compra para um voo de demonstração – como um test-drive oferecido pelas concessionárias de automóveis. Não teria sido, portanto, um aluguel. Nesse caso, os interessados em adquirir o avião é que contratam piloto e copiloto e, portanto, são responsáveis pelo voo. Com isso, os advogados de Abdalla querem provar que o caso não se enquadra nem no Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual o dono do avião, ao alugá-lo, se compromete a prestar o serviço. Ou seja: entregar os passageiros no destino final. Com a tragédia, teria lesado o cliente e poderia estar sujeito a pagar indenização.
Eduardo Mussi, o anfitrião e organizador da viagem, refuta essa versão. Diz que jamais teve interesse em comprar o jato, não estava fazendo nenhum voo de demonstração, não contratou o piloto, nem o copiloto, tampouco sabe dizer qual o vínculo dos dois funcionários com Abdalla. Em apoio à sua versão de que contratou um serviço de táxi-aéreo, Mussi apresenta o comprovante de pagamento – no valor de 55 mil reais – feito por seu pai, Carlos Henrique da Silva Ferreira, no mesmo dia 14 de novembro, pouco depois das onze da manhã. Mas o depósito foi feito em favor de uma terceira pessoa, Diogo de Araújo Monteiro, que trabalha intermediando locação de aeronaves. Contatado pela piauí, Monteiro não quis dar entrevista.
O advogado Nelson Wilians decidiu excluir o piloto da ação judicial. “O avião não era do piloto. Se o piloto cometeu um erro ao pousar antes do início da pista, pouco importa. Sabemos que o profissional estava ali prestando serviço ao Juca Abdalla”, afirma ele. A piauí teve acesso a um áudio de WhatsApp que não comprova, mas ajuda a reforçar a versão de Wilians. No áudio, de apenas 35 segundos de duração, gravado em algum momento depois do acidente, o piloto Aires Guerra manda um recado por meio do seu interlocutor: “Fala pro Juca aí que eu assumi o risco de vir… Eu assumi toda a responsabilidade do voo aí, tá?” Nem o piloto nem o interlocutor identificam quem é “Juca”, mas Juca é o apelido de José João Abdalla Junior.
O inquérito do acidente aéreo foi instaurado na Delegacia Territorial de Maraú. “Eu mandei ainda no fim de 2019 uma carta precatória ao Rio de Janeiro, onde mora o Juca Abdalla, para ele prestar depoimento na cidade onde reside”, diz Andréa Oliveira, delegada responsável pelo caso. “Também enviei pedidos para serem escutados piloto e sobreviventes, em São Paulo.” Até o momento, um ano e três meses após o acidente, apenas um advogado de Abdalla foi ouvido e limitou-se a informar que o avião estava em ordem e que, de fato, pertencia ao seu cliente. O prazo prescricional para indenização por danos decorrentes de acidentes aéreos é de cinco anos, de acordo com o artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor.
Cavelan e Constantino também planejam processar Abdalla. Já contrataram o mesmo Nelson Wilians e, neste momento, estão levantando todos os gastos e perdas com a tragédia. Só no tratamento hospitalar no Einstein, gastaram 2 milhões de reais nos mais de setenta dias em que estiveram internados. O casal vai pedir o ressarcimento integral dos gastos médicos, além de danos morais. Abalado com a morte dos amigos, Eduardo Mussi não pensa em mover qualquer ação judicial. Eduardo Elias, que perdeu a mulher e o filho, esmagado pelo trauma da tragédia, não decidiu se entrará na Justiça porque tem dificuldades de abordar o assunto, que o remete a um momento tão doloroso. Seus sogros, os pais de Marcela e Maysa, simplesmente não querem entrar com ação. “Estou juntando os cacos; perdi minhas duas filhas e único neto”, diz Orlando Marques.
Até hoje, os sobreviventes reclamam que José João Abdalla Junior não foi capaz de lhes dirigir uma única palavra. Em um trecho da petição que apresentaram à Justiça, Sergio e Lívia, pais do piloto Tuka Rocha, afirmam o seguinte: “Desde a data dos fatos até a presente data os autores sequer receberam uma ligação, uma mensagem, um pedido de desculpas ou de solidariedade do proprietário do avião, o qual preferiu se manter inerte ao falecimento de quatro pessoas [a conta exclui a morte do copiloto, a quinta vítima do acidente], além das queimaduras e traumas psicológicos causados em todos os demais passageiros e tripulantes.” Em conversa com a piauí, Sergio reforçou sua mágoa: “Na verdade, em mais de um ano de tragédia, ele nunca me ligou para saber se estou bem. Não se deu ao trabalho de telefonar para falar ‘meus pêsames’.”
O casal Lili Mussi e Carlos Henrique da Silva Ferreira costumava receber os amigos em sua fazenda à beira-mar, na Península de Maraú, considerada uma das regiões mais exclusivas e mais desiguais da Bahia, com casas de luxo, natureza deslumbrante e uma população local miserável. (O IDH da cidadezinha de Maraú equivale ao de países em guerra, como a Síria.) “Essa região da Bahia é frequentada por quem tem alto poder aquisitivo, até porque todo mundo chega de jato particular”, diz o deputado João Carlos Bacelar. Entre os frequentadores estão o atacante Neymar, a apresentadora Ana Maria Braga e a cantora Ivete Sangalo. “Se por acaso você viesse de voo comercial, teria de descer no aeroporto de Ilhéus, e então pegar um carro até a cidade. Seria o equivalente a fazer um rali porque a estrada é bem ruim”, completa Bacelar. Por isso, Lili e o marido tinham o hábito de levar os amigos até Maraú a bordo do jato particular da família, usando a pista das redondezas. Em novembro de 2019, no entanto, a aeronave estava em manutenção num hangar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Quando Eduardo Mussi teve a ideia de reunir os amigos na fazenda em Maraú, a solução foi alugar um avião – no caso, o Cessna de Abdalla, que estava no aeródromo de Jundiaí, a 60 km de São Paulo. A ideia era fazer uma comemoração. Eduardo e Maysa se casaram em 31 de agosto de 2019, depois de dois anos de namoro, no Txai Resort, em Itacaré, também no litoral da Bahia. Depois da festa para trezentos convidados, com decoração tropical, enfeitada por corais e folhas de bananeira, eles saíram em lua de mel e ficaram um mês entre Dubai, Índia e as Ilhas Maldivas, no Oceano Índico. Seria a primeira vez que o casal passaria alguns dias com os amigos depois da lua de mel. Além de falar da viagem, tinham outro assunto para compartilhar: a reta final da reforma do apartamento onde iriam morar, em São Paulo. Estavam curtindo uma fase bonita da vida.
Em Jundiaí, Marie Cavelan lembra ter sentido uma sensação estranha antes de entrar no avião. “Algo me dizia para não ir, talvez fosse o tamanho do avião. Não gosto de jato pequeno porque a turbulência acaba sendo mais severa e também porque tenho claustrofobia. Prefiro voar de comercial”, diz. O avião decolou com tanque de combustível cheio e lotação máxima: oito passageiros e dois tripulantes. O começo da viagem teve turbulência. Os primeiros quinze minutos de voo se deram em silêncio, até passarem os sobressaltos. Incomodada com a turbulência, Maysa pediu um copo de água. Quando o avião estabilizou, a turma se descontraiu. O restante da viagem foi tranquilo. “O piloto, que não usava uniforme, chegou a nos oferecer uísque, cuja garrafa estava embaixo de seu assento. Ninguém aceitou”, lembra Constantino.
E ninguém conhecia o piloto. Depois do acidente, soube-se que Aires Guerra fora condenado a pagar uma multa de 304 mil reais para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), num processo em que é acusado de cometer 254 infrações administrativas por falta de registro de informações no diário de bordo entre 2012 e 2014. Procurada pela piauí, a Anac explicou que Guerra deixava de fornecer “dados de apresentação da tripulação, total de combustível, passageiros, entre outras informações exigidas no diário de bordo”. Na segunda instância, a Justiça reduziu a multa para 33,5 mil reais e, na época do acidente, Guerra estava devidamente habilitado a voar. Depois do acidente, num procedimento-padrão, sua licença foi suspensa.
No áudio de 35 segundos em que manda satisfações a “Juca”, o piloto descreve as condições do acidente. “A aeronave veio normal”, começa ele. “Cento e seis nós na final, 12,5 mil libras. Eu fui arredondar, ela não correspondeu e tocou antes da cabeceira.” Em seguida, ele resume: “Eu acredito que um erro de velocímetro, alguma coisa, que a gente detectou.” As causas do acidente até hoje não foram apontadas. Logo depois da tragédia, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) recolheu material e fez imagens do local para dar início à investigação. O caso ainda está sendo analisado e não tem prazo para ser concluído. Consultado pela piauí, o Cenipa não quis comentar o caso. O piloto Guerra não respondeu aos e-mails nem às mensagens de WhatsApp.
Embora não corram mais risco, os sobreviventes ainda sofrem sequelas. Eduardo Mussi faz sessões diárias de fisioterapia para readquirir os movimentos dos braços e das mãos, ainda limitados. Ele voltou a morar com os pais e usa meias compressoras para a aderência dos enxertos de pele. Precisa fazer novas cirurgias. “Meu irmão havia acabado de se casar, vivia o auge da paixão e de um momento feliz. Ele agora está reaprendendo a viver”, diz Guilherme Mussi. Eduardo Elias, que perdeu a mulher e o filho, ficou com cicatrizes severas no rosto, nos braços, nas mãos e pernas. Neste ano, deve realizar novas operações para melhorar o aspecto de sua pele. Com 47% do corpo queimado, Marcelo Constantino terá de se submeter a novas cirurgias de raspagem. Ele toma remédios antidepressivos, tem pesadelos com o acidente, seus dois pés ainda estão enrijecidos pelos enxertos e jamais poderá tomar um simples banho de sol. “Sempre me pego pensando em uma questão. No posto de saúde de Maraú, onde me deram dipirona porque não havia morfina, houve uma grande solidariedade da população local. Vizinhos do posto levaram lençóis e toalhas, pois todos já estavam sujos de sangue. Um taxista da cidade, que tinha curso de enfermagem, salvou a minha vida. Ele conseguiu fazer o que as enfermeiras não conseguiram ali na hora da loucura: achou a minha veia femoral na virilha e aplicou soro. Se não fosse ele, eu não estaria aqui.”
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