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O dono da inflação
Passado, presente, dificuldades e crises do Banco Central
Consuelo Dieguez | Edição 54, Março 2011
A sede do Banco Central é o prédio mais alto de Brasília. A pesada caixa de vidro negro, cortada por quatro imensas colunas de concreto, começou a ser construída no regime militar, em pleno milagre econômico. Sua arquitetura afirmava a força da centralização, o poder do Estado como guardião da moeda. Não havia independência, o Banco Central fazia o que o ministro da Fazenda mandava. Quando o prédio ficou pronto, em 1981, a ditadura estava no ocaso e a moeda, o cruzeiro, corroída pela inflação, perdia valor semanalmente. Com o milagre virando ruína econômica, a imponência do Banco Central limitava-se à fachada.
Na volta ao poder, os civis mantiveram o banco num papel subalterno. Sua situação só começou a mudar com o Plano Real, em meados dos anos 90, quando a política de valorização cambial de Fernando Henrique Cardoso, que determinava que o valor do real fosse igual a um dólar, dependia da sintonia fina feita pelo banco. A sua transformação em peça-chave da engrenagem econômica ocorreu no fim do século, quando lhe coube a responsabilidade de manter a inflação dentro de uma meta fixada previamente pelo Conselho Monetário Nacional. Se a inflação sobe além da meta, a responsabilidade é do presidente do Banco Central, que o gere por meio de sete diretores.
Desde o primeiro dia de 2011, o encarregado do índice é um economista gaúcho de 47 anos, Alexandre Tombini, funcionário de carreira do banco com passagem pelo Fundo Monetário Internacional. Com o rosto afável de um menino crescido, bochechas rosadas e cabelos grisalhos cortados rente, ele ficaria bem num uniforme de fuzileiro naval americano. Numa manhã clara de fevereiro, era de terno preto, camisa branca e gravata vermelha que, do seu gabinete no 20º andar, ele deu uma olhada no lago Paranoá, suspirou de maneira quase imperceptível e se preparou para a entrevista.
Não era um bom dia para falar a repórteres. Os jornais anunciavam naquela manhã que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, que acompanha a evolução do valor de alimentos, transportes, habitação e vestuário, entre outros itens de primeira necessidade, era o maior desde 2005. A inflação acumulada em um ano passara para 5,99%, e os analistas já previam, com base no resultado, que o índice superaria o limite máximo da meta de 6,5%. Nesse ritmo, dificilmente o Banco Central conseguiria trazer a inflação de volta para o centro da meta, estipulada em 4,5% para 2011.
Tombini sentou-se numa poltrona de couro preto, pediu água e café, e rebateu as previsões pessimistas. “Trabalhamos com instrumentos conhecidos, não há por que duvidar do cumprimento de nosso objetivo”, disse. O principal instrumento de que Tombini dispõe é a taxa de juros. Foi a ele que recorreu, em 19 de janeiro, na primeira reunião do Comitê de Política Monetária, o Copom, no governo de Dilma Rousseff: a taxa básica de juros passou de 10,75% para 11,25% ao ano, o maior nível desde março de 2009. “O banco precisa operar dentro de um regime de metas e para isso usa sua capacidade operacional, que é principalmente a taxa de juros a curto prazo”, afirmou.
Exceto pelos banqueiros, que ganham com a medida por receberem mais pelos papéis que compram do governo, a alta dos juros costuma ser acompanhada de uma ampla chiadeira contra o Banco Central. Tombini não gosta do papel de vilão. “O Banco Central tem que ser bem-visto pela sociedade porque é um órgão de controle que tem a missão constitucional de assegurar o poder de compra da moeda”, disse.
A obrigação primordial de um Banco Central é impedir que a moeda do país perca valor. Para tanto, a inflação precisa estar sob controle. Quando a inflação sobe, é necessário mais dinheiro para comprar os mesmos produtos que se compravam antes. Nos piores anos de inflação, o trabalhador brasileiro recebia o seu salário no final do mês e já não conseguia mais comprar o que comprava no começo porque os preços tinham aumentado exponencialmente.
Essa é a missão mais percebida do Banco Central. Mas ele desempenha outras igualmente vitais, como a de determinar o volume de dinheiro que deve ser fabricado pela Casa da Moeda. Ao final de cada dia, ele verifica quanto de dinheiro os bancos têm em caixa e determina que parte desses recursos será retida pela instituição. Essa operação impede que os bancos fiquem com muito dinheiro disponível para emprestar. Para os bancos, o empréstimo é o melhor negócio, já que chegam a cobrar juros de 160% ao ano por determinadas operações, dez vezes mais do que a taxa de juros paga pelo BC. No caso de uma instituição precisar de dinheiro para cobrir alguma deficiência temporária, é ao Banco Central que ela precisa recorrer, através das operações de redesconto.
O BC é também o regulador do sistema bancário. É ele que determina o quanto de dinheiro acima do seu patrimônio as instituições financeiras podem emprestar, e quais tipos de operação cada uma está autorizada a fazer. “As regras de operação do sistema financeiro são o produto da disputa permanente entre os técnicos do Banco Central e os grandes bancos”, repete sempre João Sayad, professor titular de economia da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e presidente da TV Cultura. “Os primeiros querem que a economia funcione de maneira ordenada e previsível e os grandes bancos querem lucros maiores.”
Cabe ainda ao banco fiscalizar as 2 281 instituições financeiras existentes no Brasil, incluindo aí bancos, corretoras, seguradoras e cooperativas de crédito. É por meio da fiscalização que o banco acompanha a saúde financeira do sistema. Por fim, o Banco Central controla as relações do real com outras moedas. Toda entrada ou saída de moeda estrangeira do Brasil, seja através de investimentos, exportação e importação, tem de ser registrada no Banco Central.
Nos oito anos da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, coube ao engenheiro Henrique Meirelles manter a inflação em 4,5%, com tolerância de dois pontos percentuais para cima ou para baixo. Era uma meta ambiciosa para um país que, até o início da década de 90, convivia com inimagináveis taxas de 1 000% ao ano. Meirelles travou vários embates internos com o governo e ficou algumas vezes com a cabeça a prêmio.
Quem implantou o regime de metas de inflação, em março de 1999, foi o presidente do Banco Central que antecedeu Meirelles, Armínio Fraga. Numa conversa em seu escritório no Leblon, em janeiro, ele comparou a sua gestão à de Meirelles. Disse que trabalhou num ambiente externo hostil: enfrentou crises como a da Argentina, em 2000, o setembro negro – causado pela derrubada das torres gêmeas, em Nova York – e a turbulência financeira provocada pela eleição de Lula, que apavorou o mercado. Internamente, porém, o ambiente era ameno.
“Eu tinha o apoio de todo o governo, do presidente FHC ao ministro Pedro Malan, da Fazenda”, disse Armínio Fraga. “Já Henrique Meirelles”, continuou, “viveu situação inversa.” Contava com um cenário externo favorável, mas, com a saída de Antonio Palocci do Ministério da Fazenda, que lhe servia de suporte, passou a sofrer ataques de outras alas do governo petista.
Dois dos que mais criticavam a política de juros altos de Henrique Meirelles eram o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Ambos se identificavam com o desenvolvimentismo, corrente que prioriza o crescimento da economia em detrimento da manutenção de taxas baixas de inflação.
No segundo mandato de Lula, Meirelles participava de reuniões no Palácio do Planalto em situação de desvantagem. Seus interlocutores eram a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, Mantega, Coutinho e os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Delfim Netto, que serviam de conselheiros ad hoc do presidente Lula. Meirelles cansou de ouvir piadas de Delfim Netto e contestações aos juros altos feitas por Belluzzo.
Na crise de 2008, quando o Banco Central elevou os juros em setembro, provocando um encolhimento na economia, Lula chegou a pensar em substituí-lo por Belluzzo. Depois recuou por temer que sua saída pudesse complicar ainda mais o cenário econômico. Mas os juros baixaram. E a economia se recuperou mais rapidamente do que o previsto.
Dilma cogitou levar Luciano Coutinho, que foi seu professor na Universidade de Campinas, para o comando do Banco Central. Ela continua a consultá-lo em questões que vão de política industrial à macroeconomia. Mas ele permaneceu no BNDES. Foi Meirelles quem sugeriu o nome de Tombini para sucedê-lo, no final do ano passado, ao presidente Lula. Diretor de Normas e Organização do Sistema Financeiro do BC, Tombini atuava como mediador do banco com a Fazenda. Participou de uma das reuniões no Planalto e ganhou a simpatia da ministra Dilma. Suas principais qualidades são ser desconhecido, conciliador e vir da máquina do banco. “Ele interage melhor com a equipe econômica que seu antecessor; sua relação com Mantega e Coutinho é pacífica”, disse Luiz Gonzaga Belluzzo em seu apartamento, em São Paulo, no final de fevereiro.
Na ditadura, Ernane Galvêas foi duas vezes presidente do Banco Central e ministro da Fazenda. Agora ele dá consultoria à Confederação Nacional do Comércio, no Rio. Para ele, a projeção internacional de Meirelles, que foi presidente mundial do Bank Boston, dava credibilidade ao Banco Central. Mas era essa mesma projeção que incomodava parte da equipe econômica de Lula. “O Meirelles era um ás de ouros, e o Tombini é um valete de paus”, disse Galvêas, que pensou mais um pouco e continuou: “Mas não ser tão estrela é até melhor para um trabalho em grupo. O Tombini é respeitado, só que ainda precisa provar suas qualidades.”
Ou seja: cumprir metas de inflação não diz respeito só a números, depende também de crenças e expectativas, imagem, alianças políticas, marketing. É preciso que os grandes banqueiros e industriais, os economistas ouvidos pela imprensa e uns poucos políticos de renome tenham confiança no presidente do Banco Central e acreditem que a meta de inflação anunciada com um ano de antecedência pelo governo tenha boa chance de ser cumprida. Se o industrial, o comerciante e o profissional liberal entenderem que a inflação não subirá acima do fixado, tenderão a reajustar seus preços em torno daquele índice.
Como essa é a lógica da fixação de metas, o Banco Central precisa ter mecanismos precisos de acompanhamento de todas as variáveis que possam influir no índice de inflação. Entram aí não só as coletas de preços de alimentos, produtos industrializados, roupas, mensalidade escolar, energia, mas também expansão do crédito, gastos públicos, taxa de câmbio, preços no mercado internacional e, por fim, mas não por último, o comportamento da economia mundial. Uma aceleração do crescimento na China, como ocorre agora, pode aumentar a cotação de matérias-primas como ferro ou soja e afetar os preços aqui dentro.
O economista Altamir Lopes, um goiano sorridente de cabelos brancos, chefia o Departamento Econômico do Banco Central. Tem sob o seu comando 160 analistas, que se espalham pelos mais de mil metros quadrados do 10º andar do prédio de vidro preto. Lopes caminhou entre as mesas, apontando para os terminais de computador. Ali se acumula uma quantidade absurda de informações. São 16 mil séries de acompanhamento periódico que incluem preços, oferta de produtos, consumo, exportação, importação, crédito, mercado internacional, resultados fiscais, dívida pública, superávit primário, juros.
As regionais do Banco Central, instaladas em seis capitais, também fazem um levantamento completo de preços, oferta de bens e consumo, situação do mercado imobiliário e aluguéis. “Nosso banco de dados está entre os melhores do mundo”, gabou-se Lopes. Todos esses dados são cotejados diariamente. “Nós acordamos e vamos dormir com números. Precisamos saber a tempo para onde a economia está caminhando.”
Ao lado dos domínios de Altamir Lopes fica o Departamento de Pesquisas Econômicas, que Tombini chegou a chefiar durante a gestão de Armínio Fraga. Ali, outra centena de analistas está encarregada de fazer projeções a respeito do efeito de todos esses dados sobre a inflação. Eles simulam a taxa de juros mais adequada para manter a inflação dentro da meta. Os técnicos também estimam o impacto de outras medidas sobre o mercado, como câmbio e contenção ou expansão de crédito. “Essa transparência nos dados é que dá credibilidade à política de metas”, disse Altamir Lopes. “É preciso que os agentes econômicos confiem que não estamos maquiando a inflação como tantas vezes ocorreu no passado.”
Além das estimativas feitas por seus técnicos, todas as semanas o Banco Central consulta 100 instituições – entre bancos, administradoras de recursos, corretoras e consultorias – para saber quais as projeções que elas estão fazendo para a economia. Esses dados são publicados no boletim Focus, que fica disponível no site do banco. Essa consulta ao mercado é considerada imprópria por economistas de diferentes credos. Eles avaliam que os analistas financeiros privados tendem a reagir de forma interessada, ou irracional, a muitos eventos econômicos e acabam distorcendo as expectativas de inflação, câmbio e juros. Em janeiro, boa parte das instituições ouvidas pelo Banco Central errou nas suas previsões.
A cada 45 dias, todas essas informações, projeções e cenários são sistematizados e levados aos diretores e ao presidente do Banco Central, no quadro de uma reunião do Comitê de Política Monetária. Aí o Copom aumenta, abaixa ou mantém as taxas de juros. Outros mecanismos também são eventualmente utilizados para calibrar a inflação. Em dezembro, por exemplo, o Comitê adotou medidas chamadas de “macroprudenciais”, no jargão financeiro. Elas vieram na forma de arrocho no crédito dos bancos, fazendo maiores exigências para que eles pudessem conceder empréstimos. O objetivo era encarecer o crédito e, dessa forma, reduzir o consumo. Quando o consumo diminui, os preços tendem a se acomodar. Todas as medidas tomadas pelo Copom são explicadas numa ata divulgada dias depois da reunião. Escrita num linguajar abstruso, a ata é interpretada e reinterpretada pelos grandes bancos, que tentam ver nas entrelinhas tendências de médio e longo prazo.
O médio e o longo prazos são a matéria-prima do Banco Central. Os dados que ele compila servem de base para se adiantar aos fatos econômicos propriamente ditos e, assim, detectar as fugidias e quase metafísicas “expectativas inflacionárias”. Foi devido a esse mecanismo que o Banco Central elevou as taxas de juros em janeiro. Desde o segundo semestre do ano passado, as projeções apontavam para uma alta da inflação, que se confirmou no início do ano.
Parte da projeção tinha a ver com o aumento dos preços de matérias-primas. A outra, com os gastos públicos que, o mercado avaliava, tenderiam a crescer no governo Dilma. Os analistas acertaram na questão das commodities, mas erraram ao não acreditar que o governo adotaria medidas para conter o déficit. Como mais gastos tendem a pressionar a inflação, estimou-se que o índice sairia da meta. “Foi um erro de avaliação do mercado”, disse um ex-diretor do banco. “No relatório de setembro, o Banco Central já indicava que haveria uma redução nas despesas públicas. Isso se comprovou com o anúncio do corte de 50 bilhões de reais nas despesas do governo, anunciado em fevereiro.” Não havia inflação, e a mera “expectativa de inflação” bastou para que os juros fossem elevados, para assim fazer baixar a ansiedade.
Os gastos públicos costumam ser vistos como os vilões das políticas de estabilização. Todos os planos econômicos anteriores baixados no Brasil desde 1986, dizem os liberais, falharam principalmente por causa do descontrole nas contas do governo. De nada adianta elevar os juros indefinidamente, se na outra ponta o governo não para de gastar. Por isso, economistas ortodoxos olham com desconfiança quando o controle da inflação fica concentrado no Banco Central.
A crítica aos gastos públicos voltou à tona com a crise de 2008, quando o Tesouro fez pesadas transferências de dinheiro ao BNDES e à Caixa Econômica para, através dos empréstimos e fomento das duas instituições, estimular o crescimento da economia. Como os recursos não foram obtidos por meio do aumento de receita ou da redução de gastos, o Tesouro teve que emitir títulos para financiar essas operações. “Não adianta o Banco Central querer controlar a inflação aumentando os juros se, do outro lado, tem 38 ministérios querendo gastar”, avaliou o diretor de um banco de investimentos. “Essa é uma política de risco. Em algum momento a economia estoura.”
José Serra é o crítico mais antigo e consistente da política de juros. Numa conversa no escritório de sua casa, no Alto de Pinheiros, uma sala com as estantes cobertas por livros, sobretudo de literatura (mas também um estudo sobre Leon Trotsky anotado até a última página), ele desmontou a tese de que os juros “siderais”, como os classificou, são instrumento eficaz de controle da inflação. “Isso é uma falácia que pode ser demonstrada empiricamente: os juros brasileiros são, há muitos anos, os mais altos do mundo, e nesse longo período a inflação já recrudesceu mais de uma vez”, disse.
E continuou: “A alta de juros estimula a entrada de dólares, que valorizam o câmbio. Com isso, as importações ficam mais baratas, as exportações mais caras em dólar, os preços caem e o consumo aumenta. Não são os juros que estão segurando a inflação via queda da demanda, e sim o câmbio valorizado. Os juros descomunais são, sim, eficazes para aumentar a dívida pública e o desequilíbrio fiscal.”
Para o candidato do PSDB na eleição presidencial, a política de metas de inflação precisaria ser acompanhada de rigor fiscal, com cortes nos gastos correntes e nos subsídios, além de parcerias de verdade com o setor privado nos investimentos, o que não está sendo feito pelo governo de Dilma Rousseff.
Luiz Gonzaga Belluzzo segue a mesma linha de raciocínio: com juros de 12% não há como segurar o câmbio. Parte do dinheiro que está entrando no Brasil, diz ele, é para especulação na Bolsa e no mercado financeiro. O dólar baixo estimula a importação, o que acabará afetando a indústria nacional. “Está se criando uma distorção que vai resultar, no futuro, em perda de emprego industrial”, disse Belluzzo. “As exportações que crescem são as de commodities, de produtos básicos, e não de produtos industrializados.”
Henrique Meirelles sentou-se em uma das mesas de uma barulhenta confeitaria nos Jardins, em São Paulo. Pediu uma empada, que não tocou, e, em seguida, um sorvete de coco, que devorou. Ele prefere não falar de economia por ter deixado o BC há sessenta dias. Teme que ainda possa influenciar as expectativas do mercado. Mas se sentiu à vontade para falar de inflação e déficit público. “O maior risco é a inflação estar acima da meta”, disse. E é isso que obriga o Banco Central a elevar os juros. “Quando a inflação volta para a meta, os juros caem e o déficit diminui.”
Quanto ao Banco Central trabalhar com as maiores taxas de juros do mundo, Meirelles foi sintético: “O caminho para termos uma taxa de juros no Brasil que se aproxime dos padrões internacionais no decorrer do tempo é exatamente continuar mantendo a inflação na meta. Na medida em que isso ocorra, os prêmios de risco cairão e as taxas de juros serão cada vez mais baixas.”
Resta, no entanto, a questão: dezessete anos depois da estabilização da economia, os juros brasileiros são exorbitantes. Com a crise de 2008, os juros despencaram para quase zero em dezenas de países. E no Brasil, a pretexto de conter os preços, continuam exorbitantemente altos.
Antonio Gustavo do Vale ocupa a Diretoria de Liquidações e Controle de Operações do Crédito Rural. Em sua sala, no 21º andar do Banco Central, tentou dar uma explicação enquanto desenhava arabescos numa folha de papel. “Temos um passado inflacionário enorme”, disse. “Há muita coisa indexada na economia: poupança, dívidas dos estados e municípios, impostos. Isso acaba alimentando a inflação.”
De bermuda, tênis e óculos escuros, aproveitando seu último dia de férias, o economista João Sicsú, diretor de macroeconomia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, deu uma explicação psicológica, durante uma conversa num café, no Rio: o brasileiro é viciado em juros altos. “Há interesse de que a taxa seja alta porque muita gente se beneficia”, disse. “Como é possível se imaginar uma taxa de juros de 1 ou 2% ao ano como ocorre na maioria dos países, se os juros da caderneta de poupança, aqui, por lei, têm que ser de 6% ao ano? Isso fixa um piso para a queda das taxas.”
Ninguém contesta que o capital financeiro é o primeiro e principal beneficiário da política de juros altos. Como, desde a volta dos civis ao poder, a grande maioria dos presidentes e diretores do Banco Central ocupou postos de destaque em bancos e fundos de investimento antes e depois de trabalharem para o governo, há quem defenda que o interesse imediato deles explicaria a opção pelos juros altos. “Eles chegam ao Banco Central contaminados pelo pensamento do mercado financeiro”, disse um consultor. Comentário mais cáustico fez o administrador de um grande fundo de investimento, na forma de pergunta: “Com juros baixos, como diretores do BC encontrariam emprego nos bancos privados?”
No governo José Sarney, todos os sete presidentes do Banco Central vieram do mercado financeiro e a ele voltaram. O mesmo aconteceu com os dois comandantes do BC na curta administração de Fernando Collor, Ibrahim Eris e Francisco Gros. No governo Itamar Franco, três dos quatro presidentes vieram da academia ou do serviço público, e um veio do mercado. Ao deixarem o BC, foram para a iniciativa privada. Nos oito anos de Fernando Henrique, três dos quatro presidentes do banco vieram do mercado, mas depois todos foram para instituições financeiras. No governo Lula, Henrique Meirelles deixara de ser presidente do Bank Boston e, ao término de sua quarentena, deverá voltar a ocupar um cargo público, o de Autoridade Olímpica.
“Hoje em dia quase não tem mais economista pesquisando por conta própria”, disse-me o consultor. “Os melhores alunos vão para instituições financeiras que pagam os melhores salários.”
Nesse quadro, a atual diretoria do Banco Central é uma exceção em décadas: não só o presidente como a maior parte dos diretores são funcionários de carreira da instituição. Essa mudança foi possível porque, segundo Antonio Gustavo do Vale, desde o Plano Real o banco promove concursos e seleciona mestres e doutores para os seus quadros. “Antes não havia tanta gente especializada”, disse. “Agora, para acompanhar a política de metas de inflação, é preciso ter economistas muito bem preparados.”
O Banco Central tem 4 700 funcionários, grande parte com mestrado e doutorado. Para manter seus funcionários atualizados, a instituição montou a Universidade do Banco Central do Brasil, a UniBacen, que funciona no próprio prédio, em parceria com outras universidades. Ela oferece pós-graduação em contabilidade e direito econômico da regulação financeira.
O Brasil foi o último país do Ocidente a ter um Banco Central. Sua criação só foi autorizada no regime militar, através de lei aprovada em 31 de dezembro de 1964. O banco passou a funcionar formalmente no ano seguinte, apesar da resistência de políticos, empresários e banqueiros, que por mais de um século conseguiram impedir a existência de uma instituição que controlasse a moeda e o sistema financeiro. A relação ao mesmo tempo promíscua e anárquica do Estado com o setor bancário explicava essa reação.
No livro Política Monetária: Ideias, Experiências e Evolução, o economista carioca José Júlio Senna traça um quadro minucioso da política monetária no Brasil nos últimos dois séculos. Ele relata que, com a chegada da família real portuguesa em 1808, acompanhada de um séquito de 15 mil pessoas, houve a necessidade de se fazerem gastos para desenvolver a infraestrutura do Rio de Janeiro. Para financiar essas despesas, fundou-se um banco público com capacidade de emitir moeda, o Banco do Brasil, que entrou em operação no final de 1809.
O novo banco surgiu com muitos privilégios, como o de ser o intermediário único do Tesouro, fazer transferências de alguns impostos para os acionistas e cobrar empréstimos do banco como se fossem créditos do Estado. As cédulas do Banco do Brasil teriam aceitação geral e não foi estipulado qualquer limite de emissão. A garantia para as emissões de notas de papel era dada pelas reservas em moedas de ouro depositadas no banco. Ocorre que elas foram feitas em volume muito superior às reservas, o que desvalorizou o dinheiro. A crise se agravou com a volta da família real e da corte para Portugal, em 1820. Antes de embarcar, dom João VI recolheu toda a reserva metálica e a levou consigo.
No começo do século XX, boa parte dos países europeus, seguindo o exemplo da Suécia e Inglaterra, começou a criar seus bancos centrais, encarregando-os de controlar os bancos e manter o poder de compra da moeda. No Brasil, a desorganização do sistema era comparável à dos Estados Unidos, que até o começo do século passado também não teve banco central: o controle contrariava os princípios liberais. Sem instituição reguladora, bancos abriam do dia para a noite – e quebravam com a mesma facilidade. A farra acabou comprometendo o funcionamento do sistema. E terminou em 1913, quando o presidente Woodrow Wilson determinou a criação de um banco central: o Federal Reserve.
Aqui, o Banco do Brasil foi remodelado em 1907 e, com o tempo, a instituição foi ganhando poderes: atuava simultaneamente como banco central, banco comercial, banco de fomento e agente do Tesouro. Toda vez que se pensava em criar um banco central, deixando o Banco do Brasil apenas com as funções de banco comercial, havia grita em várias esferas da elite. O setor rural e a indústria eram contra porque tinham medo de perder o crédito farto. O Banco do Brasil não queria perder o direito de emissão, que lhe fortalecia artificialmente o caixa. Os banqueiros receavam o controle. E os próprios governos resistiam: temiam que o controle na emissão de moeda expusesse suas deficiências fiscais.
Em 1945, no final do governo Vargas, a inflação levou Octavio Gouvêa de Bulhões a propor a adoção de mecanismos para conter a emissão da moeda e o déficit público. Para o economista, era fundamental existir uma organização acima do Banco do Brasil, para que as atividades de banco central e de banco comercial exercidas pelo BB não ficassem tão embaralhadas. Sabendo das resistências, Bulhões tratou de torná-la mais palatável: levou ao então ministro da Fazenda, Souza Costa, a ideia de criação da Superintendência da Moeda e do Crédito, a Sumoc, que seria o embrião do Banco Central.
A Sumoc nasceu frágil. O Banco do Brasil continuou desempenhando funções típicas de banco central. À nova entidade, cabia normatizar o sistema financeiro. Em 1954, a Sumoc ganhou mais poder. Era o governo de Café Filho, no qual Eugênio Gudin ocupava o Ministério da Fazenda, Octavio Bulhões, a direção da Sumoc, e Clemente Mariani, a presidência do Banco do Brasil. O trio tinha formação ortodoxa e trabalhava afinado. Assim, foi possível transferir para a Sumoc os depósitos compulsórios dos bancos, que eram recolhidos pelo Banco do Brasil e usados na expansão do crédito.
Com Juscelino Kubitschek, o Banco do Brasil reinou e os gastos saíram de controle. Como queria investir em infraestrutura e na construção de Brasília, o presidente ignorou o programa de estabilização monetária de seu ministro da Fazenda, que fixava metas de expansão das operações do Banco do Brasil. A conta veio logo: em 1959, a inflação pulou de 15% para 40% ao ano. Quando Jânio Quadros assumiu o governo, esboçou medidas para tentar conter os preços, que não foram adiante por causa de sua renúncia. As turbulências do governo João Goulart inviabilizaram qualquer política de estabilização. Quando os militares deram o golpe, a inflação caminhava para 165% ao ano.
O marechal Castello Branco, ao assumir a Presidência da República, indicou Roberto Campos para o Planejamento e Octavio Bulhões para a Fazenda. Ambos tinham como objetivo combater a inflação, o que significava impedir que o Banco do Brasil emitisse moeda. Foi então que o Banco Central, idealizado vinte anos antes, foi finalmente instituído. Nasceu de um ato ditatorial visando fortalecer o Estado, mas, ao regular as querelas entre a elite burguesa, racionalizou e modernizou a economia. Pela legislação que o criou, seu presidente e diretores teriam mandato fixo. Seria um Banco Central independente, nos moldes dos europeus.
Seu primeiro presidente foi Denio Nogueira. Mas a independência teve vida curta, como conta Senna em seu livro. Com a sucessão de Castello por Costa e Silva, Roberto Campos foi ao novo ditador, a pedido do que saía, para sugerir que o futuro presidente colocasse fim aos boatos de que substituiria o presidente do Banco Central. Na conversa, Campos lembrou-lhe que a lei estipulava mandato fixo para os dirigentes do banco e acrescentou que o Banco Central era o guardião da moeda. A resposta de Costa e Silva resumiu o que seria a instituição dali para frente: “O guardião da moeda sou eu.” Em 31 de março de 1967, Ruy Leme assumiu o comando do banco no lugar de Denio Nogueira.
Os governos militares eram, eles também, desenvolvimentistas. Queriam gastar, e o Banco Central não tinha nenhum poder para controlar a moeda. O Brasil endividou-se em dólares para financiar os investimentos. Em 1979, houve o segundo choque do petróleo e o preço do barril saltou de 12 para 32 dólares. A alta do combustível provocou uma inflação mundial. Nos Estados Unidos, o índice pulou de 9% no começo do ano para 13% em agosto. Em dezembro de 1980, Paul Volcker, o presidente do Federal Reserve, elevou a taxa de juros americana de 13 para 22%. Com a maior parte de sua dívida externa atrelada ao dólar, o Brasil quebrou em câmara lenta. No final da década, a dívida externa brasileira estava em 100 bilhões de dólares, e não havia reservas para pagá-la.
Emílio Garofalo Filho é secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Nos anos 80, ele assumiu o Departamento de Operações Internacionais do Banco Central. Instalado em sua sala, no 7º andar do Ministério, ele lembrou o desespero que foi aquele período para o Banco Central. “Decidiu-se que era o BC quem cuidaria da dívida externa”, disse. “Era uma confusão. Nem nós, nem os credores, sabíamos ao certo o tamanho da dívida.” Além disso, havia as dívidas dos estados e municípios contraídas sem controle, que também passaram a ser negociadas pelo Banco Central. Como não havia computador, as contas eram feitas em máquinas de calcular mecânicas, movidas a manivela. As planilhas eram feitas a mão.
Quando se descobriu ouro em Serra Pelada, o governo achou, equivocadamente, que seria a solução final para a dívida externa. O governo montou um aparato, comandado pelo Serviço Nacional de Informações, o SNI, o Banco Central, a Casa da Moeda, a Polícia Federal e a Caixa Econômica Federal, para retirar o ouro da mina. “Como a Caixa tinha um departamento de penhora, alguns de seus especialistas foram incumbidos de checar se o ouro era verdadeiro”, contou Garofalo.
O ouro vinha de avião comercial de Belém, uma vez por semana, para o Banco Central. Certa vez, os agentes da Polícia Federal descobriram que havia três caixões no avião. O SNI levantou a possibilidade de serem ladrões, escondidos para roubar o metal. Retiraram-se os caixões do avião e, quando foram abertos, constatou-se que eram defuntos mesmo. A desconfiança em relação ao Brasil era tanta que os exportadores só liberavam o petróleo dos navios atracados no porto de Santos depois de receberem um comunicado do J.P. Morgan avisando que o ouro de Serra Pelada já estava depositado na conta para pagamento da importação.
Numa manhã de 1990, já no governo Collor, o novo diretor da Área Externa do BC, Antônio Cláudio Sochaczewski, entrou na sala de Garofalo com uma dúvida simples. Queria saber qual era a parcela de juros a ser paga aos credores naquele mês. “Ele me disse que o Tesouro tinha uma informação e que o Banco Central tinha outra, e queria saber qual das duas era a correta”, contou Garofalo. “Eu disse, para seu espanto, que provavelmente as duas estavam erradas.”
Foi somente em 1994, no governo Itamar Franco, que o Banco Central começou a se estruturar. Com Fernando Henrique na Fazenda e Pedro Malan no Banco Central, a dívida externa foi renegociada com os credores e transferida para o Tesouro, que passou a acompanhar os pagamentos.
O grupo de economistas da PUC, entre eles Gustavo Franco, Edmar Bacha e Winston Fritsch, que tinha desenhado o Plano Real e estava compondo o governo, tinha um diagnóstico pronto: para que o plano desse certo, era preciso acabar com o Conselho Monetário Nacional, considerado o coração do descontrole financeiro. Tinham assento no CMN todos os ministros, além de representantes dos bancos e das indústrias. E todos reivindicavam gastos que, em regra, eram aprovados nas reuniões. Como o Tesouro não tinha recursos, o Banco Central emitia dinheiro sem a contrapartida da receita para pagar as despesas.
Num almoço no começo de janeiro, Gustavo Franco contou que a equipe econômica que preparava o Real pediu a Henrique Hargreaves, o ministro da Casa Civil, que convencesse Itamar Franco a mudar a composição do Conselho Monetário Nacional. Sugeriram que seus integrantes fossem limitados ao ministro da Fazenda e ao presidente do Banco Central. Hargreaves voltou com a resposta de Itamar: para o presidente, não existia conselho de dois. Decidiram incluir o ministro do Planejamento. “Foi a primeira vez que o país administrou o Conselho tendo em vista a estabilidade da moeda”, disse Franco. “É impressionante que o Brasil só tenha começado a ter um Banco Central operando formalmente quase no final do século XX.”
Outro problema eram os bancos estaduais que faziam o que os governadores bem entendessem. Governadores foram chamados e avisados de que as instituições em dificuldades teriam que ser vendidas ou liquidadas. A reação foi péssima. O governador do Rio, Marcelo Alencar, foi um dos poucos a aceitar a privatização do “seu” banco, o Banerj. Mario Covas, de São Paulo, adiou o quanto pôde o fim do Banespa, embora o banco tivesse um rombo monumental. O governador do Espírito Santo chegou a oferecer uma casa de campo ao Banco Central para pagar dívidas do banco estadual.
Gustavo Franco lembrou que um dos momentos mais tensos da sua passagem pelo governo foi quando se decidiu fazer uma fiscalização no Banco do Brasil. “Mandamos 150 técnicos para a sede do Banco do Brasil”, disse. “Não queriam deixá-los entrar. Disseram que ali o Banco Central não fiscalizava nada. Quase saiu bordoada. O pessoal do Banco Central entrou à força.”
Em junho de 1995, Gustavo Loyola foi alçado à presidência do Banco Central. Especializado em normas bancárias, ele identificara que uma queda drástica da inflação iria expor a fragilidade do sistema bancário nacional. Era preciso sanear o sistema antes que houvesse uma quebradeira. Foi montado um programa de saneamento dos bancos privados, o Proer. Somente ficariam no sistema as instituições com “saúde, liquidez e solidez”, como dizia o comunicado do Banco Central. Na época existiam 3 400 instituições financeiras operando através de 23 500 agências. O número de bancos chegava a 300. Com o Proer, mais da metade foi vendida ou liquidada.
Após sanear e capitalizar os bancos, o Banco Central fixou uma série de normas para o funcionamento das instituições financeiras de acordo com as recomendações do Banco de Compensações Internacionais, o BIS, o banco central dos bancos centrais. Em muitos casos, as medidas de segurança adotadas pelo banco brasileiro foram além do que exigia o BIS. “Nós adotamos medidas que fortaleceram as nossas instituições financeiras”, disse Gustavo Loyola, na sede da sua consultoria, a Tendências.
O Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos fica no 15º andar do Banco Central. Ali funciona o monitoramento de reservas. Todas as operações feitas pelos 158 bancos brasileiros são projetadas on-line em telões e terminais de computadores. Só em transferências entre contas correntes – os TEDs – são cerca de 100 mil operações por dia. Também aparecem nas telas tanto um pagamento milionário, feito por uma empresa a um banco, como um simples saque de 10 reais num caixa eletrônico.
O mais importante para os técnicos, no entanto, é avaliar o comportamento geral de cada instituição. Pela tela, é possível perceber se ela está com problemas de caixa. Se isso ocorre, o saldo negativo aparece registrado em vermelho. “Monitoramos segundo a segundo o que acontece no sistema”, disse o chefe do departamento, Ricardo Pereira de Araújo. “Somos uma espécie de torre de comando do banco.”
Outra função do sistema, implantada no final da gestão de Armínio Fraga, é avaliar o nível de crédito das instituições. Na prática, se estão emprestando demais ou de menos. Essas informações são fundamentais para prever o comportamento do consumo e seu impacto na inflação. Todos os movimentos bancários que possam vir a impactar a inflação, e, portanto, o regime de metas, são levados para análise do Comitê de Política Monetária.
No dia 15 de setembro de 2008, após a quebra do Lehman Brothers nos Estados Unidos, os analistas na sala de monitoramento das reservas do BC começaram a perceber, através do sistema, que estavam acontecendo saques exagerados em muitas instituições. “Havia muito resgate antecipado de CDB e de outras aplicações”, contou Antonio Gustavo do Vale. Na sexta-feira, o quadro se agravou. “Era um problema de falta de dinheiro no sistema, e não um problema de patrimônio. As instituições eram saudáveis, mas estavam sofrendo com o pânico do mercado.”
O diagnóstico era de crise. “Ficou claro que, se não agíssemos rapidamente, poderia haver uma quebradeira”, disse Vale. No domingo, Henrique Meirelles voltou de Nova York e convocou uma reunião para o mesmo dia, em São Paulo, em sua casa. Ali, os diretores decidiram as medidas que seriam anunciadas na segunda-feira. O Banco Central liberou os compulsórios dos bancos para injetar mais recursos no sistema, e também garantiu a compra de carteiras de créditos das instituições em dificuldades por instituições maiores.
Mas foi a regulação que, no fim das contas, impediu a quebra das instituições. Algumas regras adotadas no Brasil há quinze anos estão sendo sugeridas agora pelo BIS para serem adotadas em escala mundial. No Brasil, por exemplo, existe um limite para as instituições emprestarem acima de seu patrimônio, o que não existia na Europa e Estados Unidos. “Por isso, muitos bancos quebraram: eles operavam muito acima do seu patrimônio”, disse Loyola. Nos Estados Unidos, a quebra do Lehman Brothers arrastou junto 273 instituições financeiras.
Outra medida adotada pelo BC brasileiro é se apossar do patrimônio dos administradores de instituições quebradas para pagamento das dívidas, o que aumenta a responsabilidade dos gestores. “Se a medida estivesse em vigor na Europa e Estados Unidos, talvez os administradores de instituições financeiras não tivessem feito tantas operações de risco para aumentar seus rendimentos”, disse Gustavo Loyola.
Parte da responsabilidade da quebradeira do sistema em 2008 é creditada ao ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan. Ele teria deixado o mercado correr frouxo, sem regulamentação rigorosa. Greenspan achava que engessá-lo lhe tiraria a “criatividade”. Sua crença era de que o mercado se autorregularia, e que o instinto de sobrevivência evitaria que o sistema fosse mal usado. Estava errado. “É uma questão cultural dos americanos não intervir no mercado. Só que o ser humano tem suas fraquezas”, disse Loyola.
A crise reafirmou algumas obviedades. A primeira é que, todas as vezes que há um período de bonança, o mercado se torna imprudente, pois fica autoconfiante. Por isso, é preciso haver regulação e fiscalização. Mas a maioria dos bancos centrais do mundo não se ocupa da fiscalização. Eles tratam, basicamente, de política monetária. “Os bancos centrais assumiram a ideia de que era só a estabilidade de preços que interessava”, disse Belluzzo. “Isso é imperdoável.” O BC brasileiro é um dos poucos no mundo a exercer as duas funções. Depois da crise, outros bancos centrais, como o da Inglaterra, estão assumindo também o papel de fiscalizadores.
A fiscalização no Brasil, porém, está longe de ser eficaz. Tanto que o Banco Central não percebeu o extraordinário rombo de 4,3 bilhões no Banco Panamericano, do empresário Silvio Santos. Para não quebrar, o Panamericano teve uma parte vendida para a Caixa e outra, depois, para o Banco BTG Pactual. O sistema é eficiente para perceber falta de liquidez imediata. Rombos patrimoniais, que são escondidos no balanço, são descobertos com a fiscalização no local. Às vezes, quando ela chega, já é tarde demais.