Oliveira (no centro), com seus artistas, em 2016: além de Marília, ele contratou Maiara e Maraisa, recusadas por outro empresário por serem mulheres. “Dou graças a Deus pela burrice dele” CRÉDITO: REPRODUÇÃO
O dono da voz
Como um matuto de Goiás virou o maior empresário da música sertaneja do Brasil
João Batista Jr. | Edição 185, Fevereiro 2022
Wander Oliveira enfrentava dificuldades. Às vésperas de completar 36 anos, estava endividado por todos os lados, não estudara para ter uma profissão e não sabia o que fazer da vida. Naquele domingo de 2004, embora fosse católico, ele estacionou diante do maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus, em Goiânia, e entrou. No púlpito, o pastor Darlan Ávila, um dos líderes da igreja no Brasil, fez um pedido à plateia de 5 mil fiéis: “Fechem os olhos e deixem o manto de Cristo cobrir vocês.” Oliveira acatou a orientação e concentrou-se nas suas dificuldades. Ele vinha tentando ganhar a vida como empresário de shows de música sertaneja, mas nada dava certo. Tinha recebido um convite para trabalhar com uma dupla ainda em início de carreira, João Neto e Frederico, que cantava para plateias minúsculas. Oliveira estava na dúvida se aceitava o trabalho ou procurava outro ofício. Aproveitou o convite do bispo, e mandou um apelo aos céus: “Se for para eu trabalhar com os meninos, o Senhor precisa me dar uma prova.”
Encerrado o culto, Oliveira voltou para o carro e conferiu seu celular, um velho StarTAC da Motorola. Havia três ligações perdidas – duas de João Neto e uma de Frederico. Como é próprio de quem está em busca de uma inspiração mágica, Oliveira interpretou aquilo não como uma coincidência, mas como a resposta divina. Topou a empreitada. (Para quem não está familiarizado com o mundo da música sertaneja: João Neto e Frederico cobram hoje 250 mil reais por um único show e seus vídeos no YouTube somam 1 bilhão de visualizações.) Ali, recomeçava uma carreira que, depois de muito trabalho, uma falência acachapante e métodos controversos, faria dele o mais lucrativo empresário de cantores do Brasil.
No dia 4 de novembro de 2021, dezessete anos depois do culto na Igreja Universal, Wander Oliveira estava na sua empresa, a WorkShow, instalada em um edifício de 22 andares. Sua sala, na cobertura do prédio, tem vista panorâmica de Goiânia, piso de mármore e, no hall de entrada, sobre uma bancada, há uma imagem de Nossa Senhora de 1 metro de altura. Naquele dia, Oliveira tinha uma reunião com a cantora e compositora Marília Mendonça. A certa altura, a artista abriu a porta da sala principal e, do seu jeito despojado de sempre, entrou fazendo um anúncio: “Wandão, tá decidido: pode procurar um jato para nós! Não quero mais ficar viajando aí em avião bimotor.”
Marília, a voz mais ouvida do Brasil, estava cansada de cumprir sua lotadíssima agenda de shows voando em aviões pequenos. Os dois combinaram então procurar um modelo Phenom 300, fabricado pela Embraer, ou um Citation cj4, da Cessna, ambos com autonomia de voo de até 3,6 mil km. Dois meses antes, Marília se recusara a embarcar no bimotor King Air, de propriedade do próprio Oliveira, para atender a um compromisso profissional no Rio de Janeiro. Preferiu alugar o jato de uma empresa de táxi-aéreo. Agora, tomara a decisão de evitar os bimotores. Achava-os desconfortáveis e queria ter a segurança de viajar num avião próprio, com boa manutenção. No dia seguinte, teria que embarcar num bimotor, um King Air c90. Faria um show em Caratinga, no interior de Minas Gerais, onde a pista de pouso tinha apenas 1,08 mil metros e só podia receber bimotores. O aeroporto mais próximo com capacidade para jatos ficava em Governador Valadares, a mais de 100 km do local do show. Seria muito demorado.
Na tarde de 6 de novembro, dois dias depois da decisão de comprar um jato, um carro do Corpo de Bombeiros deixou o ginásio Goiânia Arena, na capital de Goiás, carregando o corpo de Marília Mendonça, vítima da queda do bimotor que a levava para Caratinga. Depois do velório que reuniu uma multidão de mais de 100 mil pessoas, o cortejo fúnebre da cantora foi acompanhado apenas pelos mais íntimos. Numa fotografia amplamente divulgada pela imprensa e pelas redes sociais, ao lado do caixão aparecem duas duplas sertanejas – Maiara e Maraisa, e Henrique e Juliano – e, entre elas, um cidadão que ninguém conhecia. As legendas dessa foto identificavam apenas os artistas. No portal UOL, por exemplo, o cidadão do centro foi identificado como “um amigo”. Era Wander Oliveira.
Oliveira era o empresário por trás do sucesso estrondoso de Marília Mendonça – ela, que chegava a receber 800 mil reais por um único show. Mas ele é mais do que isso. Em um ano bom, o faturamento de sua empresa – com shows, execuções de músicas em plataformas de streaming e cachês de publicidade – chega perto de 1 bilhão de reais. Seus quase trinta clientes, a maioria sertanejos, são os artistas mais executados no YouTube e no Spotify no Brasil, as plataformas que indicam a popularidade dos artistas. Ele é empresário de Henrique e Juliano (10,8 bilhões de execuções no YouTube), Maiara e Maraisa (5,2 bilhões), e Diego e Victor Hugo (cuja canção Facas foi a segunda mais tocada no Spotify do Brasil no ano passado).
Na música sertaneja, um mundo dominado por homens, Oliveira tornou-se o primeiro empresário a apostar em mulheres cantoras e compositoras. Marília Mendonça, a joia de seu portfólio, soma 15,1 bilhões de execuções no YouTube, desempenho que a coloca entre as artistas mais assistidas do mundo, à frente de fenômenos planetários como a norte-americana Beyoncé. (Fora do universo da música sertaneja, no Brasil, esses são números inatingíveis. Anitta, a estrela mais reluzente do funk, tem 5,8 bilhões de execuções no YouTube. Ivete Sangalo, a popularíssima musa do axé, tem 900 mil.) Oliveira ergueu seu império sem ter curso superior, sem saber cantar, sem conexões com o mercado de São Paulo e do Rio de Janeiro, e com aversão aos holofotes e à fama.
Nascido na zona rural de Americano do Brasil, município de 6 mil habitantes a 100 km de Goiânia, Wander Divino de Oliveira vem de uma família modesta. Seus pais tiveram seis filhos e os nomes de todos os homens começam com W – Wagner, Wanderlan, Wander e Wilton. Aos 5 anos, Oliveira já ajudava a ensacar milho e feijão produzidos na roça da família. “Meus pais tinham a terrinha deles, mas não eram ricos. Eu nunca passei fome, mas a vida era dura”, recorda. Aos 8, ele passou a acordar às quatro da manhã porque, antes de ir para a escola, precisava fazer a ordenha das vacas. A escola ficava a 8 km de sua casa. No começo, ia no lombo de um cavalo. Depois, passou a fazer o trajeto de bicicleta.
Desde o início, Oliveira detestava a vida rural. Aos 15 anos, ao lado de irmãos mais velhos, mudou-se para Goiânia, onde começou a cursar eletrotécnica. Enquanto estudava, chegou a trabalhar na antiga Centrais Elétricas de Goiás. Numa ocasião, a escola promoveu uma viagem para os alunos conhecerem fábricas de lâmpadas e disjuntores em São Paulo, mas apenas o percurso de ônibus seria gratuito. A hospedagem e a comida correriam por conta dos alunos. Sem dinheiro, ele e um colega organizaram dois shows para arrecadar recursos. Contrataram dois cantores sertanejos e fizeram uma festa no ginásio do colégio e outra numa casa de eventos. O lucro pagou hotel e alimentação de diversos alunos – e ainda sobrou dinheiro. Tem coisa aí, ele pensou.
Oliveira conhecia música sertaneja. Na roça de seus pais, os peões compravam revistas com partituras de músicas de duplas famosas, como Pena Branca e Xavantinho, Milionário e José Rico e Chrystian e Ralf. Oliveira sabia cantar todos os hits. Na adolescência, já em Goiânia, chegou a fazer um curso de canto para se enturmar e, quem sabe, descobrir um ganha-pão. Não rolou uma coisa nem outra. “A professora falou que não nasci para aquilo”, diz. Errada ela não estava. Oliveira é tímido, sua voz é levemente rouca e, quando fala, em ritmo acelerado, come as sílabas.
Com seu gosto pela música, Oliveira começou a organizar festas sertanejas em bares e casas de evento. Era o começo dos anos 1990 e ele tinha 20 e poucos anos. Em sociedade com um colega, Paulino Rezende, o mesmo que se candidataria a vereador pelo PDT alguns anos depois, abriu uma modesta casa de shows. Chamava-se Circos Cowboy porque, por falta de dinheiro para erguer um telhado, ficava debaixo de uma tenda. A aposta, porém, não era faturar com a música: era bebida alcoólica. Deu certo. Pouco tempo depois, abriram outra casa, a Pirâmide Cowboy, agora com três tendas. Não cobravam ingressos, ou cobravam ingressos irrisórios, e viviam da venda de cerveja. A Pirâmide Cowboy cresceu e chegou a ter uma unidade em Brasília.
Em meados da década de 1990, Oliveira percebeu uma mudança. Os artistas de axé da Bahia, como Netinho e É o Tchan, estavam passando a cobrar uma porcentagem da bilheteria por seus shows, e não mais um cachê fixo desvinculado da lotação do espetáculo. A dupla sertaneja Bruno e Marrone, que estava começando a carreira, por exemplo, ainda operava no esquema antigo. Cobrava o equivalente a apenas 200 reais por show, quer o espetáculo atraísse dez pessoas ou mil. No começo, os baianos começaram pedindo 20% da bilheteria. Oliveira deu-se conta de que, com essa fórmula, era possível ganhar como dono de casa de shows, mas também havia oportunidade para faturar alto como empresário de artistas. Ele vinha conseguindo se manter com a Pirâmide Cowboy, mas de novo pensou: tem coisa aí.
Vislumbrando um bom negócio, ele e seu sócio Paulino Rezende se ofereceram para representar Bruno e Marrone. Levaram um “não, muito obrigado”, pois a dupla já tinha um agente. Então, resolveram fazer a mesma proposta para Marcos e Fernando, uma outra dupla sertaneja de Goiânia que dava então seus primeiros passos e vinha atraindo bom público na Pirâmide Cowboy. Marcos e Fernando toparam e, no começo de 1999, o contrato estava assinado. Oliveira ficou com a missão de escolher o repertório, vender os shows e pagar as rádios para que tocassem as músicas – o controvertido jabá, no jargão do mercado. Como dono de balada, Oliveira conhecia os ritmos e batidas que empolgavam a pista de dança. “A música tinha de render coreografia, ter uma virada, um pá-pá-pá para bater as mãos na hora do refrão”, diz.
O primeiro disco da dupla foi gravado dentro da Pirâmide Cowboy, com público ao vivo. Com o material em mãos, Oliveira começou a percorrer as rádios da região para vender seu peixe e pagar os jabás. O primeiro sucesso veio já no ano seguinte, com Socorro, uma música com todos os ingredientes do pá-pá-pá de que Oliveira gostava. Os versos e foi chegando sob o clarão da Lua/eu notei que ela estava completamente nua introduzem o refrão Socorro veio em minha direção! Socorro já chegou passando a mão. Em seguida, estourou a balada É Armação, que desmascarava uma mulher que se dizia grávida de um, quando era de outro.
O sucesso chamou a atenção da EMI, a gravadora inglesa que estava então entre as principais do Brasil. Oliveira foi procurado pela empresa, gostou da proposta e assinou contrato. Começaram a pipocar convites para que Marcos e Fernando se apresentassem em programas como Domingão do Faustão, da Globo, e Domingo Legal, do SBT. Em pouco tempo, o cachê dos shows passou a subir. Foi de 2 mil para 5 mil, depois 10 mil e em seguida atingiu 20 mil. Com tanta notícia boa, Oliveira e a dupla alugaram uma casa num condomínio em Itu, nos arredores de São Paulo, para ficarem mais perto do mercado. O negócio, enfim, começava a desabrochar. Até que tudo desandou.
Oliveira passou a selecionar os convites. Quando recebia ligações de programas de menor audiência do SBT e da RedeTV! pedindo uma apresentação da dupla, Oliveira recusava. Queria que seus agenciados aparecessem apenas na Globo. Cheios de si, Marco e Fernando deixaram de receber os fãs nos camarins de seus shows. Na mesma época, Oliveira percebeu que sua dupla não era uma prioridade da EMI, que preferia promover a dupla Cleiton e Camargo – sendo Werley Camargo o irmão de Zezé Di Camargo e Luciano.
Nesse contexto, Oliveira fez uma visita à família, que ainda morava na roça. A certa altura, seu irmão Wanderlan cansou de ouvi-lo arrotar seus sucessos e desabafou: “Cara, você está muito enjoado. Não sei como as pessoas aguentam ficar perto de você.” Oliveira conta que nunca esqueceu aquilo e, naquele momento, percebeu o erro que vinha cometendo: a arrogância. Ele e a dupla, embevecidos com o sucesso, deixaram de pensar nas próximas músicas, de cultivar os fãs e começaram a se desentender. Para piorar, a Pirâmide Cowboy teve que fechar as portas depois que uma cliente foi executada a tiros na frente do estabelecimento.
Em 2001, estava tudo acabado. Oliveira tinha fechado a casa que alugara em Itu e voltado para Goiânia. Nos anos seguintes, sustentou-se oferecendo projetos culturais de artistas desconhecidos para a Prefeitura de Goiânia e o governo do estado. Mas o negócio se arrastava. Afundado em dívidas e sem rumo, fazia planos de largar o mercado de música e abrir uma empresa para restaurar estofados. E então, em 2004, foi procurado pela dupla João Neto e Frederico. “Que mané vender sofá! Vamos trabalhar com música porque é disso que gostamos”, conta Frederico, ao rememorar como fez o convite para Oliveira, de quem já era amigo. Assinaram contrato. Oliveira decidiu que tentaria mais uma vez.
Nessa altura, recorreu a uma pesquisa informal que fizera anos antes. Ele pedira a mais de cem camelôs e feirantes de Goiânia e região que vendiam CDs para que anotassem as trinta músicas que seus clientes mais compravam. No resultado, apareceram no topo Boate Azul, de Benedito Seviero, Telefone Mudo, de Franco e Peão Carreiro, e Sublime Renúncia, de Pery e Prado Júnior, canções cantadas até hoje em qualquer karaoke do país. Oliveira então tentou convencer a dupla Marcos e Fernando a retomar a carreira gravando um CD só com as mais pedidas. Eles não toparam, mas João Neto e Frederico gostaram da ideia.
Oliveira fez então um CD com um compilado de 25 canções de “modão”, como são chamadas as músicas clássicas sertanejas. De cambulhada, incluiu cinco canções da dupla João Neto e Frederico, como Pega Fogo Cabaré, Meu Anjo e Pura Magia. “Assim, o cara escutava Chitãozinho e Xororó, Zezé Di Camargo e Luciano e, opa!, também os meus meninos”, conta Oliveira. “Sem saber, o público começava a gostar dos meus artistas. Sem falar que eu concentrava em apenas um CD tudo o que o cara queria escutar, sem precisar gastar com mais.” Para fazer seu produto, Oliveira não esconde que montou uma central de pirataria, pois não pagava direito autoral para nenhum artista. “Varávamos a madrugada copiando CD para depois ir distribuir aos feirantes na manhã seguinte”, confirma Frederico. Os CDs eram deixados com os camelôs em esquema de consignação.
Em seu Volkswagen Logus, Oliveira rodou por todos os estados do Brasil distribuindo CDs piratas para feirantes e camelôs, e pagando jabás para as rádios tocarem as músicas de sua dupla. Para economizar com hospedagem, dormia dentro do carro. Às vezes, entregava os CDs diretamente na central de distribuição, que ficava no Paraguai, na fronteira com o Paraná.
Do outro lado da Ponte da Amizade, as próprias lojas de mercadorias piratas abasteciam os feirantes em várias partes do Brasil. Oliveira estacionava o carro no lado brasileiro, enchia uma mochila com seus CDs piratas para driblar a fiscalização e entregava tudo aos lojistas paraguaios. Fazia o trajeto várias vezes ao longo do dia. “Uma vez, voltando do Paraguai, ele me ligou de Londrina. Pediu para eu depositar 500 reais porque tinha acabado o dinheiro da gasolina”, recorda Wagner, o irmão que então trabalhava como funcionário público da Eletrobras. Quando voltava do Paraguai para Goiânia, Oliveira trazia seu porta-malas cheio de CDs virgens para uma nova rodada de pirataria.
O negócio deu certo. Seu telefone começou a tocar, com casas de shows espalhadas pelo Brasil fazendo contato para contratar a dupla. Como ainda não tinham apelo comercial, João Neto e Frederico cobravam cachê – e não percentual da bilheteria. O cachê chegou a 5 mil reais, mas o esquema todo continuava no vermelho. A venda de CDs piratas era usada para piratear mais CDs e pagar mais jabás, mas o lucro não vinha. A mudança que colocaria seu negócio no azul veio da iminência de um calote. Oliveira pediu ao diretor da Rádio Paranaíba, em Uberlândia, que não descontasse seu cheque de 3 mil reais porque não tinha fundos. O então diretor, Luiz Antônio Pedreira, perguntou qual era o custo para fazer um CD pirata. “Eu respondi que era 1,50 real. Era menos, mas eu queria já abater da minha dívida”, relembra ele. Pedreira tinha contrato para vender shows de Victor e Leo, uma dupla que estava estourando nas paradas em Goiás e no Triângulo Mineiro, e então encomendou 2 mil CDs de seus cantores e pediu que Oliveira os distribuísse nas feiras.
Oliveira topou na hora. Além da pirataria terceirizada, percebeu que poderia pegar carona no sucesso de Victor e Leo. Sem avisar o dono da rádio, gravou os 2 mil CDs com quinze músicas da dupla e incluiu cinco de João Neto e Frederico. Ainda colocou uma foto de Victor e Leo na capa, sob o título Explosão Universitária. No canto superior direito do CD, imprimiu o número do seu celular. As vendas dos CDs piratas de Victor e Leo explodiram. “Vendi mais de 100 mil cópias”, diz ele. Fez mais do que isso. “As pessoas me ligavam para falar do Victor e Leo, daí eu explicava que as músicas tal e tal eram de João Neto e Frederico.” Como todo mundo ganhou dinheiro, nem Victor e Leo, nem o diretor da rádio Paranaíba, reclamaram da pirataria.
Nesse período, Oliveira achou que tinha encontrado seu caminho. “Esse negócio de trabalhar com música vai dar certo”, dizia. Ao final de um show de sua dupla, cujo cachê já estava em 20 mil reais, ouviu de um contratante que, se fosse o caso, pagaria “muito mais”. Oliveira aproveitou e, inspirado na turma do axé, mudou o contrato de cachê para percentual da bilheteria. Em uma festa de rodeio de Votuporanga, no interior de São Paulo, tomou um susto. O contratante reservou um bom hotel, com quarto individual para cada um deles. Coisa rara. Depois do show, entregou a parte de Oliveira em dinheiro vivo: 70 mil reais. Oliveira chamou João Neto e Frederico no seu quarto, espalhou o dinheiro sobre a cama e disse: “Temos como opções pagar parte das nossas dívidas com banco, iluminadores e empresa de ônibus. Ou podemos investir em mais cópias de CDs piratas e fazer um álbum novo. Pensar que estamos ricos não é uma alternativa.” A dupla gravou um DVD e, meses depois, fechou contrato com a Som Livre, gravadora então ligada ao grupo Globo e que, por isso mesmo, tinha boas chances de divulgação em programas de entretenimento da emissora.
Com o caixa engordando, Oliveira começou a diversificar seus negócios. Abriu uma construtora, a Múltipla, cujo foco principal era construir prédios em Palmas, na capital do Tocantins. Contratou uma consultoria para melhorar a WorkShow e começou a ler livros de autoajuda financeira, como Pai Rico, Pai Pobre, best-seller norte-americano sobre finanças, e Mentes Milionárias, outro do ramo, com incursões na neurociência. Mas não perdeu o foco principal. Numa visita a Palmas, conheceu uma dupla que fazia sucesso local, os irmãos Henrique e Juliano, hoje um fenômeno da música sertaneja. Depois de algumas conversas e reuniões, fecharam contrato.
Só faltou combinar com os goianos. João Neto e Frederico detestaram a ideia da contratação de outra dupla e sentiram-se preteridos. “Foi ciúme, não tem o que falar”, diz Oliveira. Eles deixaram a WorkShow e, em 2015, moveram uma ação indenizatória contra a empresa alegando que parte dos lucros que geravam era investida em outros artistas. (Em 2019, o processo foi extinto. “Erramos, pedimos perdão e está tudo certo conosco”, diz Frederico. Ele e João Neto voltaram a ser agenciados pela Work-Show em 2020.)
Em 2008, a WorkShow estava em ascensão. Ocupava um sobrado, tinha contrato com três artistas e, no final de uma tarde qualquer, já perto das 17 horas, seu interfone tocou. Era uma garotinha de 13 anos, que trazia umas canções escritas em um caderno escolar e um violão debaixo do braço. A dupla João Neto e Frederico estava na empresa e pediu para a menina cantar. Gostaram. “Ela era uma garota sem experiência de vida, mas falava de amor, dor e traição como se tivesse passado por cinco divórcios”, diz Frederico. Eles resolveram chamar Oliveira para escutar. “As letras eram boas e ruins ao mesmo tempo: tudo muito bem escrito, mas longas e sem um refrão-chiclete”, lembra Oliveira. Mas, ao ouvir uma garota pequena com um vozeirão, ele logo pensou: tem coisa aí. A menina era Marília Mendonça.
Em um primeiro momento, Oliveira escalou a menina para trabalhar apenas como autora de músicas para os artistas da WorkShow. Uma semana depois, Ruth Moreira, mãe da adolescente, apareceu na empresa para assinar o contrato de trabalho da filha menor de idade. O salário era de 3 mil reais. Um dinheiro graúdo para uma família pobre. Com esse contrato, Marília passou a sustentar sua família – ela, a mãe e um irmão mais novo.
Marília tinha perdido seu pai biológico havia pouco, vítima de um câncer. Seus pais se separaram quando ela ainda estava na infância. Sua mãe se casou de novo e teve João Gustavo, mas o relacionamento com o marido não durou e, mais uma vez, deu-se a ausência paterna. Ruth Moreira sustentou os filhos com meios modestíssimos. Chegou a ter um pequeno bar, e morava nos fundos. A necessidade de trabalhar tendo filhos pequenos levou os vizinhos a denunciá-la no Conselho Tutelar por abandono de incapazes. Aos poucos, Oliveira foi assumindo o papel da figura paterna para Marília. “Muitas vezes a mãe dela me chamava aqui no escritório pedindo para eu dar bronca porque ela estava bebendo muito, essas coisas de adolescente”, lembra Oliveira.
Aos 13 anos, Marília compôs Minha Herança, que seria, anos mais tarde, feitas algumas adaptações, a primeira canção a ser gravada profissionalmente por João Neto e Frederico. Na época, a música estourou. Marília também fez Cuida Bem Dela para a dupla Henrique e Juliano. Outro estouro. Mas foi só depois de quase seis anos na WorkShow, período em que compôs dezenas de hits para os artistas da empresa, que Marília Mendonça foi lançada como cantora. “Esperei ela fazer 18 anos para protegê-la dela mesma. Ela não tinha estrutura emocional para lidar com o mercado, que poderia sugar essa criatividade”, diz Oliveira.
A estreia de Marília como intérprete aconteceu com o lançamento de um EP, em que constavam duas músicas que viraram grandes hits: Alô Porteiro (Pegue suas coisas que estão aqui/Nesse apartamento você não entra mais/Olha o que você me fez, você foi me trair/Agora arrependido quer voltar atrás) e Sentimento Louco (Só queria mais um pouco desse sentimento louco/De acordar de madrugada pra fazer de novo/E se isso for pecado, quem vai nos julgar?). As letras que entoavam as amarguras de amor lhe renderiam a alcunha de Rainha da Sofrência. Infiel, música que tornou seu rosto famoso, seria lançada em 2016 quando gravou um DVD ao vivo. Quem esteve no show constatou que o público ali já sabia cantar as músicas, insistentemente tocadas na internet e nas rádios.
Às vésperas de sua morte, Marília Mendonça estava faturando entre 10 e 12 milhões de reais por mês, entre o que recebia do Spotify, Deezer e YouTube, além dos shows e contratos de publicidade.
Um dos orgulhos de Oliveira é ter sido o primeiro a abrir portas para mulheres no mercado sertanejo, no qual hoje fazem sucesso artistas como Simone e Simaria e Naiara Azevedo – nenhuma delas é da WorkShow. “Além da Marília, eu assinei contrato com a Maiara e Maraisa ainda em 2015”, diz ele. “As duas tinham sido recusadas por um outro empresário só porque são mulheres. Dou graças a Deus, na verdade, pela burrice dele”, diz Oliveira, comemorando seu alto faturamento com o sucesso das irmãs mato-grossenses. A presença de mulheres no segmento deu origem ao “feminejo”, cuja diva era a própria Marília. Mesmo assim, o mercado sertanejo ainda é um terreno de homens. Na própria WorkShow, as mulheres representam apenas 20% do elenco da empresa.
Na certidão de nascimento da música caipira no Brasil consta o ano de 1929, quando o escritor e músico Cornélio Pires (1884-1958) gravou seu primeiro disco de 78 rotações com canções sobre a vida na roça. Natural de Tietê, no interior de São Paulo, Pires vivia na capital e era conhecido como “bandeirante caipira”. Desde então, cantar a vida rural faz parte da cultura nacional. “Mesmo que hoje o Brasil seja um país majoritariamente urbano, quase todos nós temos pais ou avós criados no interior ou na roça”, diz o jornalista André Piunti, especializado em música sertaneja. “De alguma forma, esse estilo de música conecta todas essas pessoas. Festas de aniversário de cidades e as feiras agropecuárias são parte da diversão da população rural ou de cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Paraná, os mais importantes dentro do mercado de shows sertanejos.”
Hoje, o sertanejo está no auge. É, de longe, o ritmo mais escutado em rádios e streaming no Brasil. Dos cinco artistas mais escutados pelo Spotify no ano passado, quatro são desse segmento: Gusttavo Lima, Marília Mendonça, Jorge e Mateus, e Henrique e Juliano. Oliveira diz que o Spotify é como uma espécie de Lojas Americanas da era das redes sociais: “Antes eram as Americanas que mais vendiam CD”, diz Oliveira. “Agora, é pelo Spotify que as pessoas escutam música e, a cada apertada no play, centavos entram na nossa conta.”
Oliveira explorou o potencial da internet logo cedo. Ainda em 2007, contratou João Alves da Silva Junior, que então dava aulas de informática e webdesign no Senac, em Goiânia. Silva Junior, dono de uma longa barba grisalha, não entendia nada de música sertaneja – sua paixão é o rock –, mas topou o emprego. De saída, criou 25 comunidades diferentes para João Neto e Frederico na rede social da época, o Orkut. “Eu fazia perguntas sobre as músicas favoritas para gerar engajamento”, lembra, referindo-se a uma estratégia hoje banal. Na mesma época, surgiu o YouTube, a gigante plataforma de vídeos, e o negócio tomou outra proporção. A dupla Henrique e Juliano foi o primeiro caso de sucesso da WorkShow no YouTube.
A tecnologia sempre foi uma aliada da WorkShow, que monitora seus artistas com precisão. Em uma sala da empresa, há duas telas imensas, onde aparecem em tempo real as execuções de músicas de seus artistas em todas as mais de 10 mil rádios do país. O programa usado é o Connectmix, semelhante ao Google Analytics, com a diferença de que o acesso é pago. Ao longo de 15 de dezembro do ano passado, por exemplo, dia em que a piauí visitou a sala para conhecer o programa, a música Todo Mundo Menos Você, uma parceria entre Marília Mendonça e a dupla Maiara e Maraisa, tocou em 2 202 rádios do país.
Quem analisa esses dados é Luciano Sassinhora, radialista há três décadas que ocupa o posto de diretor do Departamento de Rádio da WorkShow. Pelo Connectmix, Sassinhora pode levantar o histórico de uma determinada canção – em que horários mais toca, em que regiões do país, por exemplo. No dia 5 de novembro, dia em que o avião de Marília Mendonça caiu, suas músicas haviam sido executadas 6 209 vezes. No dia seguinte ao acidente, foram 36 197 execuções. Em todo o mês de novembro, a música Troca de Calçada, seu sucesso que faz uma homenagem às prostitutas, tocou 45 045 vezes nas rádios de todo o país.
“Monitoro se as rádios estão tocando os artistas em cujas músicas estamos investindo”, diz Sassinhora, dono de um vozeirão grave e um jeito despachado. Na semana de lançamento de uma canção, cada rádio deve tocar a música pelo menos quatro vezes no dia, sempre logo antes ou logo depois do intervalo comercial. “Em geral, os caras do funk estão preocupados em bombar na internet, então investem em clipes lindos. E só. Veja se eles lotam shows e duram muito tempo? Um exemplo é o MC Livinho. Em 2016 estourou com alguns hits e hoje ninguém mais sabe quem é”, diz Sassinhora. “Graças a Deus, temos a humildade de pagar e colher os frutos do jabá. O cara que cuida da agenda de shows dos nossos artistas fica maluco de tanto atender telefone.” Marília Mendonça chamava a sala desse funcionário de “Casa da Moeda”.
O jabá continua no centro do negócio, seja para artistas consagrados ou novatos. “De tanto tocar nas rádios, o público passa a gostar e a pedir de forma orgânica as nossas músicas”, diz a nova aposta da WorkShow, a cantora Allana Macedo, uma morena de voz grave e cabelo de Pocahontas. Quando vai lançar uma música, a WorkShow gasta cerca de 400 mil reais em jabá, contratando uma média de cinquenta rádios, todas com alcance de pelo menos um raio de 80 km. “Os sertanejos têm vozes poderosas e são aplicados, investem, trabalham duro, fazem a roda girar”, elogia Paula Lavigne, produtora cultural e empresária de seu marido, Caetano Veloso. “Os caras hoje cumprem o papel antes exercido pelas gravadoras: eles têm estúdios, vão em busca de parcerias com outros cantores, fazem coreografia para bombar no TikTok.” Mas ela é radicalmente contra a prática do jabá para as rádios. “Porque só toca quem tem grana, deixa os menos ricos de lado. O jabá matou o samba no Brasil.”
Wander Oliveira, 53 anos, casado com a namorada de adolescência, Tatiane de Moraes Soares, com quem tem uma menina de 7 anos, enriqueceu com a música sertaneja. Em sua fazenda às margens do Rio Araguaia, em Goiás, tem 6 mil cabeças de gado, um patrimônio estimado em 35 milhões de reais. Cada um dos catorze galpões climatizados da propriedade reúne 16 mil frangos, e o abate ocorre a cada dois meses – um negócio que lhe rende cerca de 2 milhões de reais ao ano. Cria oitocentos porcos, tem gado Nelore para venda de sêmen. A gigante do setor alimentício JBS é seu principal cliente para a venda de carne. Oliveira também tem produção de leite, que é comprada por uma cooperativa goiana. Tudo isso pertence à WorkShow Agropecuária, mas seus negócios se expandem para outras áreas. Ainda mantém a construtora Múltipla, que deixou de erguer prédios em Palmas para produzir asfalto. É sócio da Potiguar, uma fábrica de chope, e de uma empresa de placas fotovoltaicas, a WorkSolar. Para ajudar sua ex-dupla sertaneja Marcos e Fernando, cuja carreira artística naufragou depois de um sucesso inicial, tornou-se sócio deles numa fábrica de tinta.
A música, claro, continua sendo seu negócio principal. Ele aparece como sócio em uma miríade de pequenas empresas formadas por seus artistas (para emitir as notas fiscais dos shows), cujos nomes soam como títulos de música sertaneja – é a Show Completo, a Mistura Louca, a Tô Bem Produções, a Nave Balada ou a Sentimento Louco – esta última, uma sociedade de Oliveira com Marília. Há seis meses, em nome da WorkShow, ele fechou contrato com a Universal, uma das maiores gravadoras do país, que passará a trabalhar com boa parte de seus artistas. Como representa hoje metade de todos os sucessos do sertanejo no país, Oliveira sentou-se para conversar com a Universal em condições privilegiadas. Ficará com 80% dos royalties, cabendo os outros 20% para a gravadora. Oliveira, no entanto, fica responsável por todo o investimento de marketing (leia-se, entre outras coisas, pagar jabá para as rádios). “O Wander é um gênio”, disse o diretor da Universal, Paulo Lima, em conversa por videoconferência com a piauí de sua casa em Los Angeles: “Ele tem faro e ouvido para escolher artistas que, sem risco algum, vão criar sucesso atrás de sucesso.”
Agora que está consolidado, Oliveira não quer nem ouvir falar em pirataria. Em 2012, por exemplo, sua dupla Henrique e Juliano gravou o primeiro DVD durante um show ao vivo, quando emplacou o sucesso da música Não Tô Valendo Nada (Vou esperar minha mulher querer ir no banheiro/Aí eu ganho cinco minutinhos de solteiro/É rapidinho, ela nem vai desconfiar). O DVD foi feito para ser exibido no YouTube, uma medida preventiva contra a pirataria que já tinha tomado conta do mercado de vendas físicas. Grande parte do negócio de Oliveira hoje é justamente recolher royalties das músicas cujos direitos detém. O sucesso Batom de Cereja, por exemplo, a canção mais executada no Spotify do Brasil no ano passado, não é de um artista da Work-Show, mas seus direitos pertencem a Oliveira. Hoje, ele lucra alto com o que antes ele não pagava. Sua WorkShow Editora e Produções Musicais reúne canções de mais de quinhentos compositores.
E Marília Mendonça continua sendo um tesouro comercial. A artista deixou dezenas de músicas inéditas. Depois de recusar contrato com a Amazon e o Globoplay, ela aceitou fechar negócio com a Netflix pouco antes de sua morte. A empresa de Los Gatos, na Califórnia, fará uma série documental sobre sua vida e obra. “Ela adorava ver Netflix com as amigas”, diz Oliveira. O projeto está mantido e talvez tenha dez episódios. “Também vou lançar um prêmio de música chamado Prêmio Marília Mendonça.” Por fim, entre seus principais lançamentos para este ano, está o irmão de Marília Mendonça, João Gustavo. Sucesso garantido? “O sucesso de uma música não é matemática exata”, diz Oliveira. “Se não casa a energia da canção com o público, podemos investir em rádio, em rede social, em tudo, mas não tem dinheiro que faça o artista vingar.”
A morte de Marília reforçou um terror de Oliveira. Ele morre de medo de avião. Antes da pandemia, tinha dois jatos – um Phenom e um Cessna. Hoje, tem apenas o bimotor King Air, mas só embarca numa aeronave se não tiver nenhuma opção. Quando precisa viajar de Goiânia para São Paulo ou Rio de Janeiro, vai de carro. Ele também dirige até sua fazenda. A viagem dura em torno de três horas. No caminho, ouve o Spotify. Gosta de escutar Cyndi Lauper, Bryan Adams, Elton John e Jimmy Cliff. Oliveira não fala inglês e diz que não é preciso entender as palavras para saber se uma música é boa. “Os cabelinhos do braço se arrepiam.” É quando tem coisa aí.
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