Paulo Souza disse que antes do debate dos candidatos à Presidência, em outubro de 2010, José Serra foi avisado de que, caso mencionasse a demissão de Erenice Guerra, a candidata do PT Dilma Rousseff, rebateria com o caso Paulo Preto. "E o Serra foi lá e falou. Eu quis morrer" FOTO: EGBERTO NOGUEIRA_2012
O engenheiro e a irmandade
Por que as empreiteiras prezam e políticos temem Paulo Vieira de Souza
Daniela Pinheiro | Edição 73, Outubro 2012
Era Dia dos Namorados e o Iguatemi, o centro comercial mais antigo de São Paulo, estava lotado. Por volta das três horas daquela tarde de junho de 2010, o engenheiro Paulo Vieira de Souza conseguiu finalmente uma vaga no estacionamento para sua BMW Z4 preta, de pintura fosca, e rumou para a loja da Gucci, no piso superior. Solícita, uma vendedora logo o convidou a acomodar-se diante de uma mesa de vidro.
Depois de perguntar o valor de algumas peças, Souza tirou do bolso uma caixinha vermelha de veludo. Abriu-a e mostrou à atendente um bracelete largo, de ouro branco 18 quilates, cravejado de diamantes pequenos do tipo pavê, com a marca Gucci gravada no lado direito do fecho. Sem tirar os olhos da joia, ele contou que pretendia comprá-la de um amigo. Antes de fechar o negócio, gostaria de saber se era mesmo autêntica. A moça pediu a Souza que aguardasse um momento e se retirou.
O engenheiro se levantou, passeou pela loja e olhou detidamente as vitrines internas. Interessou-se por um par de sapatos e o comprou. Contemplou mais mercadorias, matando tempo, até que conferiu o marcador de seu relógio Bulgari de pulseira de prata. Passara-se quase meia hora e ele perdeu a paciência: “Que falta de respeito! Me fazer esperar esse tempo todo numa loja Gucci! Que absurdo!”
Foi nesse momento que dois policiais militares tocaram em seu ombro. Queriam saber a origem da pulseira, se era dele, de quem havia comprado, onde estava o documento de venda. O gerente da grife, que estava de folga, fora chamado às pressas e os acompanhava. Cercado pelo pequeno grupo, Souza foi informado do que se tratava. Nervoso, pediu para dar um telefonema. “Ô Pedro, que porra é essa? Eu tô aqui na Gucci e tão falando que a porra da joia do teu irmão é roubada, caralho.”
Paulo Vieira de Souza é conhecido nos meios empresariais e políticos de São Paulo por uma alcunha que abomina: Paulo Preto. “É um apelido racista inventado para denegrir minha imagem”, me disse.
Dois meses antes daquele Dia dos Namorados, ele havia sido exonerado do cargo de diretor de engenharia da empresa Desenvolvimento Rodoviário Sociedade Anônima, a Dersa. Companhia de economia mista cujo maior acionista é o governo paulista, ela é responsável pela construção e administração do imenso complexo viário do estado.
Nomeado na gestão anterior de Geraldo Alckmin, Souza se manteve no mesmo cargo durante todo o governo de José Serra. Foi o encarregado da construção das principais obras viárias dos governos tucanos: o Rodoanel, que circunda a região metropolitana paulistana, a duplicação das marginais Pinheiros e Tietê e a ampliação da avenida Jacu Pêssego. Era ele quem assinava convênios, autorizava pagamentos, negociava com empreiteiras, mandava desapropriar áreas e bancava alterações nos projetos originais. Juntas, as obras custaram cerca de 11 bilhões de reais.
Na inauguração do trecho sul do Rodoanel, de quase 60 quilômetros de extensão e custo estimado em mais de 5 bilhões de reais, o engenheiro posou para uma foto comemorativa, na qual aparece em primeiro plano, agachado à frente de José Serra. Oito dias depois, sem maiores explicações, ele foi demitido por Alberto Goldman. O vice acabara de assumir o governo porque Serra iria disputar a Presidência da República.
Num debate organizado pela TV Band durante o segundo turno da campanha, Serra fez uma pergunta a Dilma Rousseff a respeito de sua sucessora na chefia da Casa Civil do governo Lula, Erenice Guerra, demitida havia pouco tempo sob suspeita de nepotismo, tráfico de influência e corrupção. A candidata do PT disse estar “indignada” com o caso Erenice, mas falou que era o tucano quem deveria se explicar sobre “seu assessor Paulo Vieira de Souza”, que fugira com “4 milhões de reais da sua campanha”. Serra não comentou a observação.
Procurado pela imprensa no dia seguinte, o tucano negou conhecer o engenheiro. Foi quando Paulo Souza disse em entrevista à Folha de S.Paulo: “Não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada. Não cometam esse erro.” No mesmo dia, Serra reformulou sua frase: admitiu que conhecia Souza, mas não pelo apelido de “Paulo Preto”, e disse se tratar de um gestor competente. Os repórteres, de fato, haviam lhe perguntado sobre Paulo Preto, mas Dilma, durante o debate na televisão, havia mencionado o nome completo do ex-diretor da Dersa.
Na atual campanha à prefeitura paulistana o nome do engenheiro foi novamente evocado. Num debate na Rede TV!, no mês passado, Serra acusou Gabriel Chalita de faltar com a verdade. “Eu não posso ser chamado de mentiroso, não tenho histórico”, rebateu o candidato do PMDB. “Quem disse que não conhecia o Paulo Preto não fui eu.” Mais uma vez, o tucano se calou.
Especula-se com frequência sobre o poder de fogo de Paulo Souza – um ex-funcionário público sem vínculo formal com o PSDB e trânsito livre junto às empreiteiras. Jornais e revistas já o classificaram como “homem-bomba” e “arquivo vivo”. Ele diz não ser nada disso. “Na verdade, eu sou indesejável, eu sou o mal necessário”, afirmou, em uma tarde de setembro, em seu escritório no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo.
Na loja da Gucci, Paulo Souza contou aos policiais que a pulseira lhe havia sido entregue por um colega da Dersa, Pedro Silva. Este último a teria recebido do irmão, que por sua vez a comprara de um joalheiro de Jundiaí chamado Musab Asmi Fatayer. Disse-lhes não saber que a joia era roubada. Prova disso era ter ido pessoalmente à loja para conferir a autenticidade do bracelete. Dirigindo o próprio carro, ele foi ao 15º Distrito Policial, no Itaim Bibi, para depor como testemunha do caso.
O engenheiro já conhecia a delegacia. Seis meses antes, ainda no comando da Dersa, estivera ali com Daniel Bialski, seu advogado, para registrar uma queixa peculiar. Havia recebido um telefonema anônimo de um homem que dizia querer encontrá-lo para “acertar as coisas para o seu bem”. Caso contrário, seria publicada uma reportagem “contando muitas coisas a seu respeito”, segundo relatou Souza no boletim de ocorrência. À polícia, ele disse temer por sua vida e estar constrangido com a chantagem. Chegou a pedir proteção policial no caso de um novo telefonema, mas não houve mais contatos.
Souza disse ter ficado “estarrecido” com as péssimas condições de trabalho dos policiais do 15º DP e, por isso, passou a mão no telefone: “Ô Aloysio, puta que o pariu, essa delegacia aqui é uma merda, está cheia de computador fechado no chão, os caras aqui escrevendo à máquina. Que merda é essa, Aloysio?”
Seu interlocutor era Aloysio Nunes Ferreira, então candidato ao Senado pelo PSDB, ex-chefe da Casa Civil do governador José Serra. Amigos há mais de duas décadas, Paulo Souza é considerado um afilhado político de Nunes Ferreira. Em 2007, a mulher e uma das filhas do engenheiro emprestaram 300 mil reais para que o senador quitasse a compra de um apartamento.
Poucos dias depois do telefonema, os computadores funcionavam e a delegacia parecia nova. Quem não estava satisfeita era Nilze Scapulatiello. Delegada titular, ela fora repreendida formalmente depois das reclamações de Souza.
“Aí, quando chego na delegacia vindo da Gucci, dou de cara com a delegada. Ah, ela vibrou”, lembrou-se Paulo Souza. De acordo com seu relato, Nilze Scapulatiello suspeitou de que ele integrasse uma quadrilha de ladrões de Rolex. Foi detido. Tomaram-lhe o celular, os documentos, desmontaram os bancos da BMW em busca de provas e lhe confiscaram as roupas. Ficou nu na cela por quase duas horas. Às dez da noite, foi autuado em flagrante por receptação de joia roubada.
A família de Souza acionou Nunes Ferreira. A notícia se espalhou rapidamente pela cúpula do PSDB. “Quando o assunto chegou a mim, só liguei para nosso advogado, que é o mesmo, e disse o que havia ocorrido”, contou Andrea Matarazzo, na época secretário estadual de Cultura. Eduardo Jorge, ex-secretário-geral da Presidência na gestão de Fernando Henrique Cardoso, estava no Rio e também ficou sabendo da prisão.
Para piorar a “coincidência cósmica terrestre”, como Souza classifica a sucessão de eventos daquele Dia dos Namorados, o deputado Celso Russomanno estava na delegacia do Itaim para registrar uma ocorrência e assistiu a tudo. Hoje ele disputa a Prefeitura paulistana pelo Partido Republicano Brasileiro, o PRB.
Paulo Souza descarta alguma armação contra ele no episódio do bracelete e da detenção. Mas nem por isso isenta a nata dos tucanos paulistas. “Bastava um telefonema de alguém do governo para eu não ter que passar por tudo aquilo. Mas um telefonema direito. Não é ligar e falar: ‘Vê o que dá para fazer.’ Eles sabiam que a delegada estava agindo com abuso, bastava avocar o caso para outra delegacia”, disse. Segundo ele, foi “uma coincidência de merda eu levar uma joia para ser avaliada, e ela ser roubada, mas serviu para eu ver que tinha gente querendo me queimar”.
Com 1,82 metro de altura, loquaz e ruidoso, Paulo Souza se faz notar a distância. Aos 63 anos, tem o cabelo espesso e grisalho, com reflexos azulados na contraluz (“Não vem dizer que eu pinto; só passo um xampu da L’Oréal”). Usa óculos retangulares de lente fotocromática com a marca Cartier em destaque. Porta uma corrente com um grosso pingente prateado. Prega na lapela do paletó um broche em formato de ferradura, seu amuleto da sorte. No dedo mindinho da mão esquerda costuma usar um anel de prata com a palavra RODOANEL gravada em letras maiúsculas.
O engenheiro é tido como uma pessoa autorreferente, impulsiva e exagerada. Não se cansa de repetir a história de como se tornou um ironman – o praticante da modalidade esportiva que conjuga natação, ciclismo e corrida – depois de uma aposta com o antigo motorista. Se o patrão corresse 42 quilômetros, nadasse outros 4 e pedalasse mais 180, o empregado disse que “virava veado”. O genro do engenheiro gostou do que ouviu e apostou 10 mil dólares.
No dia seguinte, aos 53 anos, Souza, que “não sabia nem boiar”, se matriculou numa escola de natação. Cinco meses depois, em Florianópolis, concluiu sua primeira prova de triatlo. Era um ironman. Desde então, participou de outras oito. (E o motorista? “Fizemos uma reunião de família, o público feminino da minha casa ficou com dó, então ele só precisou pôr salto alto, batom, peruca e desfilar em Campos do Jordão”, disse o engenheiro.)
Além do triatlo e do Corinthians (é conselheiro do clube e amigo do ex-presidente Andrés Sanchez), ele cultiva uma terceira obsessão: o filme Gladiador, com Russell Crowe. Diz que já o assistiu uma dezena de vezes. A imagem do ator é o descanso de tela de seu celular, que armazena 1 869 contatos telefônicos. Com frequência, Paulo Souza traça paralelos de sua vida com trechos do filme, como no caso de suas relações com o PSDB. “Querem sangue? Então vamos lá. Porque para mim é igual a Gladiador: só termina quando acaba, quando está todo mundo morto.”
Paulo Souza nunca ri do manancial de comentários cáusticos e repletos de alusões que profere sem censura. Trata os subordinados como iguais e escarnece dos superiores – o que provoca a empatia imediata dos interlocutores.
Roberto Amaral, que dirigiu a Andrade Gutierrez em São Paulo durante as gestões de Paulo Maluf e Orestes Quércia, fazendo com que a empreiteira se tornasse uma das maiores da América Latina, costuma dizer que Souza é um sujeito “colorido”. Instado a falar sobre o amigo, Amaral enviou um e-mail ao próprio engenheiro, autorizando-o a repassar a mensagem. Ele escreveu: “É uma das criaturas mais fascinantes que já convivi. Nele, há apaixonantes contrastes de coragem e fragilidade, agressividade e doçura, audácia e timidez, malícia e boa-fé, tudo perpassado pela maior pureza e inigualável solidariedade. Em par com sua inteligência, o traço mais marcante do seu caráter.”
Paulo Souza era temido e respeitado na Dersa, onde sua fama de autoritário e competente permanece inabalada. Sob seu comando, obras abandonadas havia décadas – como o complexo Jacu Pêssego, iniciado por Maluf – tomaram forma. Ninguém nega ter sido ele quem insistiu dentro do governo que era possível construir o Rodoanel em menos de três anos.
Tinha interlocução direta com as empreiteiras, o que facilitava negociações e encurtava burocracias. Não escondia a incompatibilidade com o superior hierárquico, o secretário dos Transportes, Mauro Arce, e despachava com o da Economia e Planejamento, Francisco Vidal Luna. (Souza tem uma tartaruga de estimação que batizou de “Maurinho”.) Nos momentos de impasse, costumava contar com o aval do chefe da Casa Civil, o amigo Aloysio Nunes Ferreira.
“Quem manda na Dersa é o resultado, e quem manda no resultado sou eu!”, dizia, e diz. Em certo momento, a Associação Brasileira de Cimento Portland insistiu em cobrir o trecho sul do Rodoanel de concreto branco. “No trecho Oeste, que eu não fiz, eles conseguiram. Mas no meu, o projeto dizia que não tinha que pôr”, disse, e completou: “Então, comigo não põe! E foda-se.” Paulo Souza trombeteava e trombeteia o poder que tinha sem constrangimento.
Na sua definição, ele não é amigo, não é próximo, “não é nada de José Serra”, com quem sempre teve uma relação formal de trabalho: “Eu contei. Estive com ele treze vezes durante quatro anos, só para falar de trabalho.” (Souza acredita que o número 13 o persegue: “Também foi o dia em que estive preso, o dia em que caiu a viga do Rodoanel e o dia em que vazou o e-mail do Goldman”, disse.)
Segundo ele, conversou sozinho com o então governador uma única ocasião, quando falaram sobre a queda das vigas nas obras do Rodoanel, ocorrida em novembro de 2009, ferindo três pessoas. “Mas ele sempre soube, sempre, quem era eu”, enfatizou. No PSDB, era conhecido aqui e ali como “o cara do Aloysio”. Até o momento em que sua autonomia e a maneira como lidava com empreiteiros começaram a incomodar – ainda que as obras sob sua batuta estivessem a todo vapor.
No auge da construção do Rodoanel, em março de 2009, uma busca da Polícia Federal apreendeu uma série de documentos na casa de Pietro Bianchi, diretor da empreiteira Camargo Corrêa, que participava da construção da rodovia. A operação, batizada de Castelo de Areia, investigava um intrincado esquema de fraudes em obras públicas. Apenas sobre a Camargo Corrêa pesavam acusações de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, doações ilícitas a campanhas e pagamento de propina a agentes públicos.
Um dos papéis mostrava quatro pagamentos mensais de 416 500 reais, com a sigla ARO (decifrada como Rodoanel) e o nome “Paulo Souza” ao lado. “Vi pelos jornais, nunca me falaram nada desse caso, nunca fui citado, nunca fui chamado para dar explicação alguma”, disse Souza, a caminho de um restaurante. “Vamos supor que aquilo fosse um dinheiro que saiu do Rodoanel e o nome era o meu. E aí? O que EU tenho que explicar? Vai perguntar para o cara da Camargo, ué!”
A Polícia Federal também encontrou listas com menção a dezenas de políticos de vários partidos. Depois de uma pausa estendida, Souza retomou o assunto. “Vamos ver quais outros nomes que estavam lá. Michel Temer tem? Tem. Alberto Goldman tem? Tem. Quem mais tem? Delson Amador, ex-presidente da Dersa, que estava na Companhia Energética de São Paulo? Tem. Ah!, Andrea Matarazzo? Tem. Então, se é para interpretar, eu diria: o papel dá o nome da obra, o homem que tocava e o político que levou, é isso?”, indagou, com a voz arrastada. “Ah, tá. Então, vamos apurar.”
Depois de meses de recolhimento de provas pela PF, o ministro Cesar Asfor Rocha, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu uma liminar suspendendo as investigações. Em abril do ano passado, o tribunal enterrou de vez a Castelo de Areia, sob o argumento de que as provas obtidas com a quebra generalizada de sigilos se baseavam em denúncia anônima e não tinham valor legal.
Alberto Goldman me recebeu no seu apartamento, no bairro paulistano de Higienópolis, numa manhã de setembro. Desde que deixou o governo, ele passou a se dedicar a um blog, no qual opina sobre temas variados, frequentemente com críticas ao Partido dos Trabalhadores. Goldman explicou calmamente por que demitiu Paulo Souza assim que assumiu o governo paulista. “Ele não ficou porque eu não quis”, disse ele, enquanto aguardava um telefonema para se juntar a uma passeata em favor da candidatura de José Serra que percorreria o Centro da cidade. “Comigo, ele não ficava.” O “estilo falastrão” de Paulo Souza, continuou, era incompatível com o cargo. “Ele vivia contando vantagem, que era engenheiro do ano, que era capaz, competente, que isso e que aquilo”, afirmou.
Cinco meses antes da demissão, Goldman enviara um e-mail a Serra manifestando sua antipatia pelo diretor da Dersa. Quando da queda das vigas no Rodoanel, ele tinha sido contrário à entrevista na qual Souza explicou o acidente. “É impossível uma entrevista com o Paulo sair bem”, argumentou por escrito. “Ele fala mais do que deve falar, sempre. É vaidoso e arrogante. Parece que ninguém consegue controlá-lo. Julga-se o super-homem e assim é tratado.”
Dias depois da exoneração, o e-mail vazou para a imprensa, como uma evidência de que sua fritura era tramada há tempos. O próprio Souza recebera meses antes uma cópia da mensagem eletrônica num envelope lacrado que foi posto na sua mesa na Dersa. Trazia no rodapé algumas palavras daqueles que a enviaram: “Dos amigos da Secretaria dos Transportes. Para você ficar ligado. O vice não gosta do gestor nota 10.”
Perguntei a Goldman se havia outra razão para a dispensa. “Não. Ele era competente, mas não é o único”, respondeu.
A BMW deslizava macio pela pista de concreto do Rodoanel. Em tom solene, Paulo Souza anunciou: “Agora, vamos entrar no que há de mais bonito no planeta chamado Brasil: o Rodoanel Sul!”. Desde que havia deixado a Dersa, era a primeira vez que ele voltava ao trecho da rodovia: “Quarenta mil funcionários, 620 engenheiros, 88 empresas. A construção com o menor aditivo de uma obra pública no Brasil! Sessenta e dois quilômetros, 130 viadutos, pontes e o cacete, construídos em 34 meses! Puta que pariu! Um novo paradigma! Ninguém contesta! Nem o Tribunal de Contas, nem o Ministério Público, nada!”
Naquela manhã de agosto, vestia camisa polo listrada, calça jeans, mocassim marrom e óculos escuros. Antes de sairmos, ele quis esclarecer os termos da entrevista: só falaria o que “poderia falar” e não admitiria insinuações. Concordamos que todas as conversas seriam gravadas. Sentado no banco da frente, com o motorista ao volante, ele carregava uma pasta de plástico com recortes de jornais. Dela, sacou uma página rabiscada. “Olha aqui, a irmandade tá de saco cheio!”, afirmou, enfatizando a última palavra.
É assim, no coletivo, que ele se refere às empreiteiras. “Tem as cinco irmãs, que são as grandes – OAS, Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão. E tem a irmandade, que é tudo”, explicou. “Olha a míngua aqui! A irmandade está doando direto pro partido, não tá chegando na mão do candidato. Os caras estão loucos”, disse, com olhos fixos numa reportagem. “Olha o ridículo. Taqui ó: o teto de arrecadação é 90 milhões e deram 2,4 para o Haddad. De 98, deram 1,9 para o Serra. De 4,5 milhões, deram 500 paus para a Soninha. Ah, coitada da Soninha”, disse, vidrado na folha de jornal.
Na véspera, o governo federal havia anunciado um pacote de concessões à iniciativa privada na área de infraestrutura com investimentos da ordem de 133 bilhões de reais até 2037, dos quais cerca de 80 bilhões devem ser gastos nos próximos cinco anos. O projeto prevê a duplicação de mais de 5,7 mil quilômetros de rodovias e a construção de 10 mil quilômetros de ferrovias, incluindo o trem-bala ligando Rio a São Paulo. A novidade é que, além de executar as obras, as empresas ficam responsáveis por administrá-las por prazos de até trinta anos. “Nada disso vai dar certo”, comentou Souza. “Eu me suicido se tiver Trem de Alta Velocidade em 2020”, disse.
Segundo ele, a impossibilidade de uma parceria bem-sucedida das empreiteiras com o Estado nesses moldes se deve a questões práticas, sobretudo à burocracia que emperra decisões na esfera pública.
Souza mencionou que, na obra do Rodoanel, numa determinada ocasião era preciso furar o chão no ponto em que passavam tubulações de gás da Petrobras. “Eu fui cinco vezes ao Rio, estava direto com o presidente da Petros, tinha comigo trinta profissionais na sala da Dersa. Resolvemos em tempo recorde, negociando, fazendo a gestão conjunta. Do jeito que fazem hoje, ia demorar cinco anos para resolver.”
Performático, ele passou a simular uma situação em que um empreiteiro da Odebrecht e um funcionário do governo têm que decidir o que fazer diante da primeira dificuldade prática na obra do Trem de Alta Velocidade. “Eu tenho que furar o subsolo e aparece um tubo da Sabesp. Quem vai resolver isso? Só quero saber aonde eu vou. Vou ligar para Dilma e falar: Ô Dilma, o que eu faço com o tubo?”, disse, fazendo uma voz aguda. “Aí, atende um burocrata e diz que vai marcar reunião daqui a quinze dias, que vai montar um grupo de trabalho para resolver isso. Aí, fudeu. Quando fala grupo de trabalho, esquece.”
E prosseguiu: “Enquanto não tiver gestão na sua casa, suas empregadas vão ser uma merda, a casa não vai andar. É simples assim. É igual ao governo. O gestor faz diferença”, disse. “A irmandade morre de saudade de mim. Sabe por quê? Porque empresário só ganha dinheiro se sair a obra. E eu faço sair. Eles faziam a obra, entregavam, recebiam, tudo no prazo, sem sacanagem, sem enrolação. Eu fiz esses caras encherem a burra de dinheiro. Dinheiro do contrato, coisa legal. Sabe quanto eles estão faturando hoje em São Paulo? Zero!”. E retomou a questão das doações eleitorais: “Fatura zero, dá zero, entendeu?”
Souza fez uma pausa e falou então do interesse das empreiteiras em explorar o produto de obras como o trem-bala. “Dá o trem para uma empresa e vê se ela quer explorar. Quer nada! Ela quer executar, ir embora e a Viúva que pague a conta. Mas não é mais assim. Eles têm que pôr a mão no bolso. Eles vão tocar as obras, mas vão tocar do jeito que dá”, disse.
Segundo ele, a ineficiência crônica do governo traz prejuízos para os cofres públicos maiores que a própria corrupção. Argumentou que as construtoras costumam ganhar pelo menos 20% do valor dos contratos na Justiça, alegando desequilíbrio econômico e financeiro: “Eles ganham muito mais por incompetência do gestor que não fez a obra acontecer na hora. É assim desde que o Sebastião Camargo punha terra na carrocinha e saía empurrando por aí.”
A certa altura, Paulo Souza ordenou ao motorista que parasse o carro no acostamento. Carretas, caminhões e automóveis zuniam pela estrada. “Só vou ali fazer uma sacanagem, ver como está o Rodoanel Leste”, disse. Ato contínuo, tomou impulso de corredor e disparou, esquivando-se de maneira temerária de um carro até chegar incólume do outro lado da pista.
O motorista, Rodney, apressou-se em explicar: “Essa é a ligação do Rodoanel Sul, que o doutor Paulo fez, com o Leste, que o governo Alckmin está fazendo agora, depois que ele saiu.” Minutos depois, Souza voltou, ofegante. “Essa peãozada é engraçada”, disse. “Vieram me falar que isso aqui tá tudo parado. Mais de um ano de obra e deve ter 2% pronto. Nesse mesmo período, eu fiz 44% do eixo sul do Rodoanel. Ôôô Brasil! Olha isso: um ano e só tem essa pinguela aqui!”
O carro tomou velocidade e o engenheiro falou sobre a importância de uma rodovia como aquela ser lisa como uma “mesa de bilhar”, sem trepidações ou oscilações. Um pouco adiante, virou-se para mim e disse: “Fecha os olhos.” Cinco segundos depois, veio um solavanco e, em seguida, trancos múltiplos por causa do asfalto remendado. “Sentiu a porrada?”, perguntou. “Aqui já recebeu asfalto por cima. Olha a lógica: concreto é mais caro, dura mais e a manutenção é menor. Então, você gasta mais para não ter que usar asfalto. E o que eles estão fazendo aqui? Botando asfalto em cima do concreto! Êêê Brasil! Êêê gestão!”
Na altura de Osasco, Paulo Souza falou de José Serra. “Toda a campanha do Serra foi em cima do Rodoanel, da Marginal, da Jacu Pêssego, das pistas de ciclismo. E quem fez tudo isso?”, indagou. “Aí ele vem dizer que não sabe quem eu sou.” Depois de alguns segundos em silêncio, disse sem ironia. “Eu tenho que agradecer ao Serra. Não vou falar mal dele nunca como gestor porque ele me permitiu fazer essas obras para a MINHA biografia.” Em seguida, deu uma risada e disse: “Eu e ele somos que nem abraço de gambá: pode separar, mas fica o cheiro.”
Em agosto de 2010, Paulo Souza estava fora do governo havia quatro meses. Outros dois haviam se passado desde o caso do bracelete da Gucci. A cinquenta dias da eleição presidencial, a revista IstoÉ publicou uma reportagem com o título: “Um tucano bom de bico.” Afirmava que o ex-diretor da Dersa arrecadara junto às empreiteiras, por conta própria, dinheiro para a campanha de José Serra e, para espanto da cúpula tucana, teria sumido com 4 milhões de reais.
A revista dizia ter entrevistado oito integrantes do PSDB para compor a história. Entre eles, o tesoureiro-adjunto Evandro Losacco, Eduardo Jorge, vice-presidente do partido, e o deputado José Aníbal. Os dois primeiros afirmavam que Souza agira à revelia do partido. Aníbal era mais vago: “Me falaram da história desse cara. Vi esse cara na inauguração do Rodoanel”, disse.
O tráfego fluía constante, apesar do trânsito carregado. “Estava na cara que queriam me queimar para queimar o resto”, disse Souza sobre a reportagem da IstoÉ. Ele afirmou ser apenas uma peça numa complicada engrenagem de brigas, traições, disputas por candidaturas e por dinheiro para financiamento de campanha de integrantes da cúpula do PSDB.
A história, segundo ele, remontava a 2006, quando José Serra deixou a Prefeitura com a intenção de concorrer à Presidência da República. Tinha a expectativa de ser ungido pelo partido, mas Geraldo Alckmin, então governador e sem direito à reeleição, não abriu mão de disputar a indicação do PSDB. Vendo-se sem o apoio necessário entre os tucanos e intimidado pela popularidade de Lula, que tinha voltado a crescer depois da crise do mensalão, Serra preferiu disputar o governo do estado. Elegeu-se no primeiro turno e assistiu de longe, sem nenhum envolvimento, à derrota do colega para o PT no segundo turno.
Em 2008, Alckmin saiu candidato à Prefeitura. Mas Serra, governador, apoiou a reeleição de Gilberto Kassab, que estava no DEM e assumira o seu cargo dois anos antes.
Souza relembra o episódio da seguinte maneira: “Alckmin tinha 47% das intenções de voto para prefeito, e Kassab, 2%. E o PSDB apoia o cara que não é do partido. E o de 2% vira prefeito, e o de 47% sifu. Você acha que fica por isso mesmo?”. À época, Alckmin disse sobre Serra e seus aliados: “Não têm o menor compromisso com o PSDB. Têm compromisso com o poder.”
“É preciso olhar a mágoa do ser humano para entender a situação”, especulou Souza. “As maiores guerras do mundo ocorreram porque um fudeu a mulher do rei, outro matou a filha de sei lá quem. A vida é Gladiador”, disse. Apontou o Centro de Treinamento do Corinthians à direita, elogiou a gestão de Andrés Sanchez e continuou: “O PSDB apoiou o prefeito Kassab traindo o cara deles, Geraldo Alckmin. Concorda que o Serra e o Aloysio puxaram o tapete do Alckmin?”, perguntou. “Era a revanche, o troco.”
Na sua avaliação, algo semelhante teria acontecido com o deputado José Aníbal. Todas as vezes em que ele quis se candidatar a um cargo majoritário, foi podado pelo grupo serrista. “O maior trauma do José Aníbal é nunca ter conseguido ser candidato a nada”, disse Souza. “Quando ele quis ser prefeito, veio o Serra. Quando quis ser senador, veio o Aloysio. Então ele pensou: ‘Calma aí. Vou dar um tiro nesses caras.’ E deu.”
Na eleição de 2008, uma nota na imprensa dava conta de que Paulo Vieira de Souza estava orientando a irmandade a doar apenas para Kassab. Perguntei-lhe sobre o assunto. “Eu? Você acha que eu tenho força para pedir para uma empreiteira não doar?”, perguntou, com uma gargalhada de deboche. “Agora, pensa: por que não deram dinheiro pro Zé Aníbal ou pro Alckmin na campanha contra o Kassab? Você acha que a ordem era pra dar pra quem? Olha o exemplo: estou apoiando o Rodney, meu motorista, e a ordem é: dá dinheiro para o meu adversário? Vai acreditar em Papai Noel, taqueupariu!”
Procurei José Aníbal para saber se a interpretação de Souza sobre “o tiro nesses caras” e o problema das doações era correta. Ele negou qualquer hipótese de vingança pessoal contra Serra e seu grupo. Disse apenas que “o Paulo Souza costuma delirar em alguns casos, mas em outros ele tem bastante juízo”.
E como o engenheiro explica o envolvimento de seu nome nessa rede de intrigas? “Em cima dos meus resultados, eles pediam dinheiro para a campanha, entendeu?”, disse, quase em tom de confidência. “Ninguém deu mais condições do que eu para os empresários ajudarem em campanhas políticas. Porque tudo o que foi combinado em obra foi feito – liberação de serviço, pagamento em dia, tinha gestão!”, repisou. “Agora, pegar isso e falar que eu arrecadei é sacanagem!”
Paulo Souza evocou o que seria uma regra tácita dos financiamentos de campanha. “Aprende uma coisa”, disse ele: “O cara, para arrecadar dinheiro – por dentro, por fora, pelo lado –, não pode ter cargo no governo. Porque, se ele tiver, ele tem que obedecer – e aí, fudeu”, disse. “O Batalha, o Zé Português, qual era o cargo deles? Qual era o cargo do PC Farias?” Ele se referia a Luiz Eduardo Batalha, José Nunes Lopes e Paulo César Farias, arrecadadores dos ex-governadores Luiz Antonio Fleury Filho e Orestes Quércia e do ex-presidente Fernando Collor de Mello. “E outra: quem é caixa tem que gostar do candidato”, disse. “Eu tinha cargo”, acrescentou.
Paulo Vieira de Souza é filho de uma professora do ensino primário, que dava conselhos sentimentais na vizinhança de casa, e do mais conhecido alfaiate de Taubaté, no interior paulista. Teve uma infância sem dificuldades ao lado dos quatro irmãos. Antes de se formar em engenharia na Universidade de Taubaté, deu aulas de desenho geométrico e matemática. Foi trabalhar na construtora Alfredo Mathias S.A., conhecida pela edificação do Hospital Beneficência Portuguesa. O patrão faliu e lhe deu todos os equipamentos da empreiteira. Souza se associou a um parente de Mathias e levou o negócio adiante. Aos 24 anos, tocava obras grandiosas como o Centro Empresarial de São Paulo. Trabalhou com o grupo Lafonte, do empresário Carlos Jereissatti, com quem construiu dezenas de shopping centers. Sua empresa também fez mais de 3 mil apartamentos em todo o Brasil.
O negócio prosperou e Souza, sempre inquieto, o diversificou: teve empresas de construção, incorporação e gerenciamento de centros comerciais. Quando empreiteiro, disse que nunca trabalhou com governo “que não cumpre a palavra e não paga”. Ficou rico antes de completar 40 anos. Em 1977, construiu uma mansão de onze suítes – hoje transformada no Hotel Giprita, em Ubatuba, ainda de propriedade de sua família. Em Campos do Jordão, foi igualmente superlativo. “Fiz a primeira casa de lá com elevador, ainda nos anos 80”, contou. No jardim, há uma bandeira do Brasil e uma escultura de 700 quilos do símbolo do ironman.
Ele mora em um apartamento de 270 metros quadrados na Vila Nova Conceição, perto do Parque do Ibirapuera, com a mulher Ruth. Estão juntos há quase quarenta anos e tiveram três filhas. Uma delas morreu de leucemia ainda na infância. Não faz muito tempo, divorciou-se de Ruth apenas no papel, por motivos fiscais. Com isso, diz que seu patrimônio foi reduzido a 4 milhões de reais. O da mulher e das filhas é de 10 milhões.
No começo dos anos 90, José Rubens Goulart Pereira, que sucedeu o empresário Roberto Amaral na Construtora Andrade Gutierrez, ouviu falar que o governo precisava de um gestor para tocar as obras da Linha 4 – Amarela do metrô e deu a dica a Souza, seu amigo. Pegou-o no momento certo. “Eu estava de saco cheio das empresas, fui lá, conversei, gostei”, contou o engenheiro.
Gostou porque, conforme disse, “no setor público, você tem poder, você faz acontecer, e na iniciativa privada, não”, afirmou. Ali, conheceu Aloysio Nunes Ferreira, então vice-governador de Luiz Antonio Fleury, que acumulava a Secretaria de Transportes Metropolitanos. Também se aproximou, mais do que nunca, da irmandade. Um mês depois, o chefe que o havia contratado foi afastado e ele foi promovido. “Depois de seis meses, ‘a padaria tava no comando’, pela minha maneira de ser”, disse.
Lembrou-se do dia em que chegou para trabalhar dirigindo um Mercedes e virou assunto de jornal. “Escreveram que o diretor do Metrô havia comprado um carro daqueles, mas, porra, eu já tinha três!”, disse. “O Aloysio falou que eu não podia chegar lá com aquele carro, que eu tinha que ser discreto.” Viajou pela primeira vez para o exterior a trabalho. “Eu sempre trabalhei a vida inteira, não tirava férias, não viajava, não fazia porra nenhuma. Era São Paulo, Ubatuba e Campos do Jordão”, disse.
Nunes Ferreira assumiu a Secretaria-Geral da Presidência no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e convidou o engenheiro para acompanhá-lo em Brasília. No Palácio do Planalto, Souza passou a cuidar de programas como o Brasil Empreendedor. “Eu entrei no 4º andar, numa sala perto do banheiro; oito meses depois, estava com três salas e 32 funcionários para mim”, lembrou. “Era o Aloysio, o Pedro Parente [ex-ministro da Casa Civil] e eu.” Procurados para falar sobre Souza, Nunes Ferreira e Pedro Parente não quiseram conceder entrevista, assim como José Serra.
Certa ocasião, Souza soube que havia um lote grande de computadores apreendidos pela Receita Federal. Foi ao chefe do Fisco, Everardo Maciel, e pediu que fossem doados ao Planalto, cujas máquinas estavam obsoletas. “Aí, eu virei rei lá dentro”, falou. Quando havia apreensão de tênis Nike, idem. “As prefeituras pediam, a gente mandava. Puta que pariu, tem que ver a votação do Aloysio no interior por causa disso”, comentou. De volta a São Paulo, Paulo Souza foi convidado a ir para a Dersa, ainda no governo Geraldo Alckmin. Durante as obras do Rodoanel, ganhou o prêmio de profissional do ano do Instituto de Engenharia de São Paulo, considerado o Oscar da categoria no Brasil.
“Olha essas luzinhas azuis! É a única ponte do Brasil com iluminação azul. Sabe por que é azul? Porque eu gosto de azul. Viravam para mim e falavam: ‘Porra, mas tem padrão na iluminação, tem que ser cinza.’ Tem padrão o caralho! Foda-se, quem manda sou eu. Vai ser azul e pronto”, disse. Fez-se um silêncio e o engenheiro arrematou: “E olha aí, azul.”
Ao longo do trajeto, ele listou toques pessoais em toda a empreitada do Rodoanel. As obras, por exemplo, eram inauguradas com hora marcada, sempre aos 45 minutos, para aludir ao número do PSDB. Avistamos um grande monumento branco. “Sabe quem foi o arquiteto nacional que fez? Oscar Niemeyer? Ruy Ohtake? Não, foi o João Lima, do quinto escalão da Dersa”, disse. A escultura foi inspirada num par de botas da mulher do funcionário. “É como se você tirasse as botas da caixa e colocasse uma contrária à outra”, explicou o motorista Rodney. Quando a obra foi inaugurada, Mauro Arce e Nunes Ferreira ficaram surpresos. “O Aloysio me ligou falando que o autor não tinha sido o Niemeyer porra nenhuma. Eu respondi: ‘Mas o apelido dele é Niemeyer!’” E caiu na gargalhada.
Em determinado momento do governo, sua autonomia parecia total, o que ele disse só ter sido possível graças ao respaldo de José Serra. E citou um exemplo: houve uma mudança no edital do Rodoanel que reduzia os ganhos de algumas construtoras. “Com uma canetada, cortei 108 milhões de reais da irmandade antes do começo da obra. Concorda que eles ficaram putos? Mas eles iam lá no Serra e perguntavam: ‘É pra fazer o que esse cara está dizendo? E ele falava: É’”, contou. “Então, o que quero dizer é que TUDO o que foi feito por mim na Dersa tinha o aval do governador José Serra.”
Sua mágoa – aquele motor que, segundo ele, move a humanidade – era grande. Citando como testemunhas seu advogado José Luis Oliveira Lima e Aloysio Nunes Ferreira, Paulo Souza contou que, antes do início do debate presidencial na TV Band, a assessoria de José Serra foi informada de que, caso o tucano mencionasse o episódio envolvendo Erenice Guerra, Dilma Rousseff rebateria trazendo à tona Paulo Preto. “E ele citou. Ele não tá nem aí. Se for pra ferrar um engenheiro, um médico, fuder a minha família… É a linha dele. Ele não defende ninguém”, disse.
O peripatético passeio pelo Rodoanel ocorreu duas semanas antes de Paulo Souza depor na Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga, entre outras coisas, as ligações da Construtora Delta, de Fernando Cavendish, com o contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Ele havia sido convocado para explicar a participação da Delta nas obras de ampliação das marginais, cujo contrato era de 2 bilhões de reais.
Também se esperava que ele esclarecesse uma acusação feita por Luiz Antônio Pagot, ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, o DNIT. À revista IstoÉ, Pagot afirmara ter sido pressionado por Paulo Souza a assinar um documento para liberar 264 milhões de reais a mais para a obra do Rodoanel. O dinheiro, segundo Pagot, serviria para financiar a campanha de tucanos em São Paulo.
Souza ligou para a secretaria da CPI, em Brasília, para confirmar a data e a hora. Foi informado de que o Senado pagava a passagem e o hotel das testemunhas. “O secretário da Comissão falou que eu era a primeira pessoa na história a perguntar quem paga a conta da viagem a Brasília”, comentou.
Da pasta plástica, ele tirou outro recorte de jornal. “Leio aqui que a Delta baixava preços e depois conseguia um reajuste que excedia 25% do valor da obra”, disse. “E com a Marginal teria sido 75% acima. O que leio aqui é que sou um ladrão porque fui eu que comandei essa porra”, falou. “Isso está tudo errado, não teve nada disso em São Paulo.”
E prosseguiu, transtornado: “O que eles querem que eu diga? Que eu arrumei dinheiro em caixa dois? Eu quero que se fodam. Quem pede dinheiro para a campanha do Serra é o Serra. Agora querem que eu diga que fui eu? Desafio alguém a provar que passou mil reais na minha mão para algum político. Quebra a porra do sigilo fiscal, bancário, telefônico, o caralho.” Seria ingênuo achar que o dinheiro teria que passar por ele, argumentei. “Ah é? Você acha que eu tenho mais força do que o governador de São Paulo?”, ele perguntou.
“Chefe, aqui é a nova Jacu Pêssego”, interrompeu o motorista. Por mais de uma vez, quando percebia que o patrão poderia estar falando demais, Rodney gentilmente cortava a conversa com uma indicação sobre um trecho da rodovia. O patrão e o empregado comentaram que 6 500 pessoas haviam sido reassentadas durante a obra. “Nunca antes na história deste país se fez e se fará algo parecido com o Rodoanel”, disse Souza. “Tenho que dar razão para o Goldman, eu sou mesmo o super-homem.”
À direita, um conjunto de prédios coloridos ocupava o lugar da antiga favela. “Olha só os predinhos. Não é para ter ódio de mim?”, disse. “E aí você me pergunta por que eu fui eleito para ser o ladrão dos 4 milhões do PSDB? Eu atraí muito ódio. Deveria ter dado o mérito das obras pra eles. Não dei, não dou e não darei. Dou o mérito para os 25 profissionais do pelotão de elite da Dersa e da Prefeitura, que eu comandei. Foda-se o resto”, disse.
Ao final, o motorista comemorou o tempo gasto no percurso: 25 minutos da Zona Sul à Rodovia Ayrton Senna dirigindo a 60 quilômetros por hora. “Levava uma hora e meia antes das obras”, comentou. Quando paramos num engarrafamento na Marginal Tietê, Souza disse estar com fome. Abriu o vidro do carro e comprou um saco grande de pipoca doce, vendida em uma embalagem cor-de-rosa. “Isso aqui é uma iguaria!”
Eram quatro horas da tarde quando Paulo Souza chegou ao escritório, no Centro de São Paulo, onde faria uma preparação para seu depoimento na CPI do Cachoeira. Vestia terno escuro com camisa listrada e gravata de bolinhas. Foi orientado a optar pela combinação gravata vermelha e terno azul na ida ao Congresso. Havia organizado uma apresentação com slides sobre a construção do Rodoanel e a duplicação das marginais, além de uma extensa preleção sobre sua trajetória profissional. Todo material estava acondicionado em quatro pastas plásticas etiquetadas com o título “Preto no Branco”.
O engenheiro ainda se desentendia com seus advogados sobre a oportunidade de ser treinado por Olga Curado, que prepara políticos para falar em público, como fez com Dilma na campanha presidencial. Olga Curado lhe cobraria 45 mil reais por 48 horas de treinamento. “Não vou porra nenhuma. E dizem que ela bate na cara pra gente se soltar, se bater na minha…Cê num tá entendendo…”
Ele tirou do bolso do paletó um bonequinho preto e o colocou ao lado das pastas plásticas sobre a mesa. “Eu trouxe o Paul blackinho aqui para me dar sorte”, disse, provocando uma gargalhada geral. Do outro bolso, tirou um bolo grosso de notas de 100 reais novas, amarradas com um elástico, e passou uma cédula para que seu motorista fosse atrás de um adaptador de tomada. Ele não usa cheque ou cartão de crédito. Paga tudo em dinheiro porque o resto “não é confiável”. No começo de cada mês, saca 15 mil reais e anda com boa parte da soma no bolso.
Durante uma hora, Paulo Souza exibiu slides com seu currículo e fases das obras nas rodovias. A certa altura, simulou-se o interrogatório. Assuntos que nada tinham a ver com a CPI poderiam ser trazidos à tona e ele deveria estar preparado para respondê-los. “Eu não estou preparado, estou MUITO preparado”, disse. Virou-se para mim e pediu que eu imitasse Marília Gabriela. “Faz aí uma Gabi comigo, pergunta e resposta, para ver se eu não estou bom. Pode perguntar: Castelo de Areia, empréstimo pro Aloysio, caso Gucci, Rodoanel, sumiço de 4 milhões, Pagot, pode perguntar o que quiser!”. As explicações foram consideradas mais do que satisfatórias por sua assessoria jurídica.
Até a véspera, amigos de Souza, como Aloysio Nunes Ferreira, ainda insistiam para que ele fosse à Comissão com um habeas corpus, como o empreiteiro Fernando Cavendish, e ficasse calado. Ele compreendeu os pedidos. “Não vou me chatear com o Aloysio por isso, ele é meu amigo, é um senador da República. E eu não cobro além do que ele pode dar.” Mas foi à CPI sem habeas corpus.
Durante um almoço no restaurante Ecco, na rua Amauri, em São Paulo, Souza atendeu ao telefonema de um jornalista que especulava sobre o habeas corpus. “Esse povo não me conhece”, disse, desligando o celular. “O Cavendish é diferente. Ele não pode falar, porque, se falar, derruba a República”, disse. Segundo ele, Cavendish era um empresário competente e, por isso, conseguiu se credenciar para participar das obras de duplicação das marginais. “Mas ele não conseguiu segurar o mal, ele passou do ponto”, comentou.
Falava-se sobre evidências da investigação da CPI e, quando eu mencionei a “lavanderia que era a Delta”, ele me cortou: “Só a Delta?”. O garçom chegou com refrigerante diet. “Por que a CPI proibiu a abertura das contas do eixo Rio–São Paulo? Só vai poder ter Brasília e Goiás. Porque se abrir, cai o Brasil.”
Paulo Souza comia sem dar atenção aos graúdos camarões com molho de manga. Discorria sobre como fazer uma licitação bem-feita no Brasil. Para ele, um dos pontos cruciais é saber identificar corretamente a capacidade dos membros da irmandade. “Tem quarenta leões e comida para dez. Não vai dar certo porque os quarenta querem comer. Você pode ter o melhor projeto do mundo, vai licitar, pré-qualificar, ganhou uma empresa, pronto: vem outra e entra com ação judicial, diz que está estragando meio ambiente, e aí para tudo”, disse.
Ele deu o exemplo da retomada da Jacu Pêssego. A obra seria tocada apenas pela CR Almeida. Quando a irmandade ameaçou atrapalhar, Souza reagiu. “Se vocês me fodem aqui, eu fodo vocês em todas as outras”, disse. “Eu peito do lado do bem. E eles me respeitam por isso”, falou. “Diz que na CR Almeida fizeram até um oratório para mim”, brincou.
Segundo ele, a irmandade “ataca em leque e se defende em caracol”. Como as empreiteiras não se entendem, elas precisam “de um cara de fora, que elas respeitam, para pôr ordem nas coisas”. No caso, Paulo Souza.
“Precisa fazer um pacote de obras para todos os níveis. Atender as grandes, as médias, as pequenas. Quer entrar no Rodoanel? Não vai, porque você não tem condição. Não pode entrar se não for capaz de fazer. Mas você pode ter condição de fazer outra obra”, disse Souza, explicando o caminho das pedras. Foi o que teria acontecido durante sua gestão. “Qual das cinco irmãs estava na Marginal? Nenhuma! Na Jacu? Nenhuma! No Rodoanel? To-das! E quais estavam na Marginal e na Jacu e eram subempreiteiras do Rodoanel? Oitenta por cento!”
Para quem apostava na materialização do “homem-bomba” ou do “arquivo vivo”, o depoimento de Souza na CPI teve sabor de anticlímax. Não houve perguntas constrangedoras ou que esmiuçassem seu trabalho ou relação com partidos políticos. No que dizia respeito à Delta, ele respondeu que a empresa ganhou apenas 2% do total licitado, o que era nada. Como Luiz Antônio Pagot havia dito na véspera que as acusações de pressão tinham sido “conversa de bêbado”, as suspeitas sobre o uso de dinheiro do Rodoanel na campanha dos tucanos também foram sepultadas. Na avaliação de seu grupo, ele foi um azougue durante o depoimento de seis horas. “Vê se eu precisava daquela Olga Curado”, comentou depois, fazendo uma careta.
Duas semanas após sua ida à CPI, nos encontramos em seu escritório, uma sala simples e apertada, que ele havia sublocado de um amigo por 3 mil reais, no Itaim Bibi. Ele tinha preparado um DVD com seu depoimento à CPI para presentar amigos. Também havia compilado as mensagens de cumprimentos por seu desempenho. Entre as mais de oitenta recebidas, havia congratulações de diretores da Serveng, da OAS e da Andrade Gutierrez.
O turbilhão continuava: Paulo Souza move dezesseis processos criminais por difamação, danos morais e calúnia – o que lhe custa tempo e dinheiro. Até o momento, está em vantagem, ainda que em todos os casos caibam recursos. O candidato Celso Russomanno já foi condenado a indenizá-lo em 100 mil reais. Testemunha da prisão do engenheiro no caso Gucci, Russomanno deu uma entrevista dizendo que Souza foi preso com dinheiro nas meias e que a delegada Scapulatiello sofrera pressão política para libertá-lo.
Quando foi detido, ele tinha 11 mil reais em espécie nos bolsos da calça e da jaqueta. A delegada Nilze Scapulatiello negou ter sofrido pressão. Mas foi condenada a pagar 30 mil reais a Souza por abuso de autoridade. Logo depois do episódio, ela foi transferida da delegacia do Itaim. O inquérito sobre o roubo da joia foi arquivado.
Outro condenado a lhe pagar 30 mil reais foi Paulo Henrique Amorim, blogueiro e apresentador da TV Record, pelo uso de um trocadilho considerado racista e a divulgação do endereço de Paulo Souza.
O engenheiro também processa o ex-ministro Eduardo Jorge pela declaração à revista IstoÉ sobre o sumiço dos 4 milhões do PSDB. Eduardo Jorge negou em juízo ter dito a frase, mas Souza manteve o processo contra ele. O ex-ministro foi enigmático ao abordar o assunto comigo: “O senhor Paulo Souza está querendo limpar a biografia dele usando a minha.”
O ex-tesoureiro adjunto Evandro Losacco e os jornalistas da IstoÉ também foram acionados judicialmente. Ele justificou as querelas: “Eu não apareci como caixa dois no Brasil. Eu apareci como LADRÃO. A minha família inteira ficou abalada com isso. Minha mãe tem 80 anos. E ele [Serra] foi avisado que, se falasse da Erenice, iam falar de mim, e ele foi lá e falou. Quando eu vi, queria morrer”, contou. “Isso aqui é Gladiador: só termina quando acaba. Eu vou até o fim.”
Sem emprego desde a saída da Dersa, Paulo Souza disse que nunca trabalhará para a irmandade. “Porque no dia em que eu for trabalhar com uma empresa, eu brigo com todas as outras.” Avalia que seu caminho ainda é o setor público. “O Serra não vai me chamar, mas se for o Kassab, o Barros Munhoz, o Orlando Morando, esses me chamam na hora. Eles querem e precisam de um gestor”, disse, referindo-se ao atual prefeito e a políticos do PSDB paulista.
Restava um enigma a ser desvendado. Nesse contexto, o que ele quis dizer com “líder ferido”? Ele era líder de quê, afinal? “Daquela porra toda. Eu mandei, desmandei, pus minha cara. Quem ia resolver as merdas da obra no TCU? No Ministério Público? No DNIT? No Meio Ambiente? Fui eu!”, disse. “O PSDB me fudeu. Foi ingratidão geral de gente que nunca me cumprimentou na vida. E graças a Deus que eu falei ‘líder’, se não eu tava fudido. Ia passar como bandido e ninguém ia abrir a boca para me defender.”
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