"Camaradas, manter os locais de trabalho limpos também é participar nas lutas do povo", diz um dos cartazes. Nenhum estudante foi morto em maio de 1968. Os políticos não foram atacados. Os slogans nunca incitaram os manifestantes a fazer nada que provocasse prejuízo sério FOTO: BRUNO BARBEY_MAGNUM PHOTOS
O espectro da revolução
Em maio do ano fatídico, as universidades estavam lotadas, a extrema-esquerda lia o jovem Marx, surgiam as butiques londrinas e a onda iconoclasta e autocomplacente se espalhava pela França, Itália e Alemanha
Tony Judt | Edição 8, Maio 2007
Momentos de grande relevância cultural só costumam ser valorizados quando vistos em retrospecto. Os anos 60 foram diferentes: a importância transcendental que os contemporâneos atribuíram ao seu próprio tempo – e a si mesmos – foi um dos traços mais marcantes do período. Uma parte significativa dos anos 60 foi dedicada, como diz a banda The Who, “a falar da Minha Geração”. Tal preocupação não era de todo irracional, mas gerou algumas distorções de perspectiva. Os anos 60 foram, de fato, uma década de feitos extraordinários para a Europa moderna, mas nem tudo que na época parecia importante deixou a sua marca na História. O impulso iconoclasta e autocomplacente – observado da moda às idéias – logo se tornou datado. Por outro lado, levaria alguns anos até que a guinada na política e nas questões públicas, iniciada no final da década de 1960, alcançasse todo o seu efeito.
Em meados dos anos 60, o impacto social da explosão demográfica ocorrida no pós-guerra era sentido por toda parte. A Europa parecia estar lotada de jovens. Em 1968, na França, o contingente estudantil (entre 16 e 24 anos) chegava a 8 milhões de pessoas, constituindo 16% da população. No passado, uma explosão demográfica dessa magnitude teria comprometido o suprimento de gêneros alimentícios de qualquer país. E mesmo que fosse possível alimentar o povo, a oferta de trabalho seria insuficiente. Mas, numa época de crescimento econômico e prosperidade, o maior problema enfrentado pela Europa não era como alimentar, vestir, dar moradia ou empregar o número crescente de jovens, mas como educá-los.
Até a década de 1950, a maioria das crianças européias deixava a escola depois de concluir o ensino fundamental, geralmente entre os 12 e os 14 anos de idade. Estabelecida no final do século XIX, a obrigatoriedade do ensino primário não era devidamente fiscalizada em várias regiões. Assim, filhos de camponeses na Espanha, Itália, Irlanda e no leste europeu pré-comunista costumavam abandonar os estudos durante a primavera, o verão e o início do outono. O ensino médio ainda era privilégio restrito às classes média e alta. Na Itália, no pós-guerra, menos de 5% da população concluíra o ensino secundário.
Prevendo estatísticas sombrias, e no contexto de um ciclo mais abrangente de reformas sociais, os governos da Europa no pós-guerra introduziram uma série de importantes mudanças na educação. No Reino Unido, a idade mínima permitida para deixar a escola subiu para 15 anos em 1947 (e para 16 em 1972). Na Itália, onde na prática a maioria das crianças nos primeiros anos do pós-guerra ainda deixava a escola aos 11 anos, a média subiu para 14 anos em 1962. O número de crianças italianas que estudava em tempo integral dobrou entre 1959 e 1969. Na França – que em 1950 contava com apenas 32 mil bacheliers (formados do ensino médio) –, esse número aumentaria mais de cinco vezes nas duas décadas seguintes. Em 1970, os bacheliers representavam 20% dos jovens.
Essas mudanças educacionais tiveram implicações perturbadoras. Até então, a fissura cultural existente na maioria das sociedades européias ficava na faixa que separava os que haviam parado de estudar depois de aprender a ler, escrever, fazer contas e recitar os fatos principais da história nacional (a arrasadora maioria) da minoria privilegiada, que continuava na escola até os 18 anos, para receber o valioso diploma do ensino médio – o que lhes permitia ter acesso ao treinamento profissional ou ao emprego. As escolas primárias, lycées e Gymnasiums da Europa eram redutos da elite dominante. Herdeiros de um currículo clássico, antes inacessível às crianças de baixa renda, esses estabelecimentos passaram a receber um contingente cada vez maior de jovens de todas as classes sociais. À medida que um número crescente de alunos concluía o ensino médio, formava-se um hiato entre o mundo desses estudantes e o de seus pais.
A falta de sintonia entre as gerações, algo novo e sem precedentes, constituiu por si só uma verdadeira revolução social, embora seus efeitos ainda ficassem limitados ao universo familiar. Na medida em que dezenas de milhares de jovens ingressavam nas escolas secundárias construídas às pressas, o que onerou o sistema projetado para uma outra época, os planejadores começaram a se preocupar com as implicações das mudanças numa esfera até então restrita a uma elite ainda menor: as universidades.
Se a maioria dos europeus, antes de 1960, jamais tinha colocado os pés numa escola secundária, menos ainda eram aqueles que podiam sonhar em freqüentar uma universidade. No século XIX, as universidades tradicionais passaram por um relativo processo de expansão. Também foi a época da proliferação de outras instituições de ensino superior, sobretudo as de ensino técnico. A educação superior na Europa na década de 1950 era privilégio de poucos, daqueles cujas famílias podiam prescindir dos vencimentos dos filhos (para que eles pudessem permanecer na escola até os 18 anos) e que tivessem condições financeiras de pagar as taxas cobradas pelas escolas secundárias e universidades. Havia bolsas de estudo disponíveis aos filhos dos mais carentes e aos da baixa classe média.
A Europa precisava de um número bem maior de universidades. Em muitos lugares, não havia um sistema organizado de ensino superior. A maioria dos países havia herdado uma rede de instituições concebida ao acaso: escolas pequenas, antigas, ditas independentes, capazes de acolher, a cada ano, não mais de poucas centenas de calouros. Elas ficavam, em geral, em cidades do interior com pouca (ou nenhuma) infra-estrutura pública. Tais instituições não tinham espaço físico para se expandir, e as salas de aula, laboratórios, bibliotecas e residências estudantis (quando havia) eram insuficientes para acomodar os milhares de novos alunos.
Em vez de abrir as novas universidades ao público, os responsáveis pela educação na Grã-Bretanha optaram por integrá-las ao sistema antigo, o elitizado. Assim, as universidades britânicas preservaram o direito de admitir ou recusar alunos. Somente candidatos cujo desempenho em exames de conclusão do ensino médio alcançasse determinadas notas poderiam se candidatar ao ensino superior. Além disso, as universidades tinham liberdade para oferecer vagas a quem lhes aprouvesse – e a admitir apenas o número de alunos que lhes parecesse viável. No Reino Unido, o corpo discente era uma minoria privilegiada (em 1968, não mais do que 6% dos jovens) e, sem dúvida, as implicações de tal fato a longo prazo foram socialmente danosas. Para poucos felizardos, o sistema funcionava muito bem – e os isolava de quase todos os problemas enfrentados pelos demais colegas europeus.
No resto da Europa, o ensino superior seguia uma direção distinta. Em vez de construir novas universidades, os responsáveis pela educação no continente determinaram a expansão das que já existiam. Ao mesmo tempo, optaram por manter o acesso quase ilimitado, sem propor regras mais firmes nos processos de seleção. Ao contrário, alguns obstáculos remanescentes foram abolidos. Em 1965, o Ministério da Educação italiano acabou com o exame vestibular e o sistema de cotas fixas. O ensino superior, antes um privilégio, passou a ser um direito. O resultado foi desastroso. Em 1968, a Universidade de Bari, por exemplo, que normalmente matriculava cerca de 5 mil alunos, tentava lidar com uma demanda de 30 mil estudantes. Naquele mesmo ano, a Universidade de Nápoles chegou a ter 50 mil alunos; a Universidade de Roma, 60 mil. Apenas nessas três universidades, o número de matrículas era mais elevado do que toda a população estudantil da Itália de dezoito anos antes; muitos desses estudantes nunca se formavam.
No final da década de 1960, um em cada sete jovens italianos estava na universidade (dez anos antes, a proporção era de um para vinte). Na Bélgica, era de um para cada seis. Na Alemanha Ocidental, onde, em 1950, havia 108 mil estudantes, e onde as universidades tradicionais já começavam a sofrer os efeitos da superpopulação, havia quase 400 mil alunos no final dos anos 60. Na França, o número de universitários em 1967 se igualava ao de secundaristas em 1956. Por toda a Europa, o contingente estudantil era mais elevado do que nunca – e a qualidade da experiência acadêmica se deteriorava rapidamente. Tudo vivia lotado: bibliotecas, dormitórios, salas de aula, refeitórios. As instalações eram sofríveis, inclusive nas que eram novas. No pós-guerra, os gastos dos governos com educação, que haviam aumentado visivelmente, concentraram-se na provisão de escolas de ensino fundamental e médio, além de equipamentos e professores. A opção pode ter sido correta, mas teve seu preço.
É preciso ressaltar que em 1968, em todos os países da Europa, a maioria dos jovens não era estudante (detalhe que costuma ser ignorado em avaliações do período), sobretudo se os pais deles fossem agricultores, operários não-especializados ou imigrantes, ou, ainda, se viessem do interior do país ou do exterior. Para essa maioria, a experiência dos anos 60 foi bastante diferente, ainda mais no fim da década, quando tudo parecia estar ligado aos eventos nas universidades. As opiniões deles, e particularmente o seu posicionamento político, são diferentes dos estudantes da mesma época. Sob outros aspectos, entretanto, esses jovens compartilhavam uma cultura em comum.
Cada geração vê um mundo novo. A geração dos anos 60 via um mundo novo e jovem. A juventude, ao longo da História, estava acostumada a entrar numa sociedade mais velha, onde os experientes tinham maior influência e eram tidos como referências a serem seguidas. Para a geração de meados dos anos 60, a coisa foi diferente. O ecossistema cultural se desenvolvia mais rapidamente do que no passado. A distância que separava a nova geração (numerosa, próspera, mimada, autoconfiante e culturalmente autônoma) da anterior (reduzida, insegura, com medo da depressão econômica e devastada pela guerra) era mais visível do que nunca. Muitos jovens tinham a impressão de ter nascido numa sociedade estagnada, que relutava em se transformar – em mudar os próprios valores, o próprio estilo, as próprias normas – de maneira definitiva e afinada com suas aspirações. A música popular, o cinema e a televisão buscavam nos jovens sua maior audiência e seu principal mercado consumidor. Já em 1965, havia programas de rádio e televisão, revistas, lojas, produtos e indústrias inteiras exclusivamente voltadas para a juventude, e dependente de seu poder de compra.
Os novos modismos se voltavam para os jovens mais abastados, os filhos da classe média branca européia, que podiam comprar discos, ingressos para concertos, sapatos, roupas, maquiagem, e pagar o cabeleireiro. A disseminação desses produtos rompeu paradigmas tradicionais. Os músicos mais famosos da época, os Beatles e seus imitadores, tomaram emprestados os ritmos dos guitarristas de blues norte-americanos (em sua maioria, negros), e os incorporaram à linguagem e à experiência da classe operária britânica.
O conteúdo da música popular era de grande importância, mas a forma contava mais. Na década de 1960, as pessoas prestavam muita atenção ao estilo. Isso nada tinha de novo. A peculiaridade da época talvez estivesse no fato de o estilo ser substituto direto do conteúdo. A música popular de língua inglesa nos anos 60 era transgressora no tom, na maneira como era apresentada. As letras das canções costumavam ser banais e apenas parcialmente compreendidas pelo público estrangeiro. Na Áustria, tocar ou escutar música pop britânica, ou americana, era fazer pouco caso dos próprios pais, da geração de Hitler. O mesmo se aplicava, mutatis mutandis, ao outro lado da fronteira, na Hungria ou na Tchecoslováquia. A música protestava pelos jovens.
Se muito da cultura musical comercial nos anos 60 parecia versar sobre sexo (ao menos, até se desviar, brevemente, para drogas e política), isso também era, em grande medida, questão de estilo. Mais jovens viviam longe dos pais, e saíam de casa cada vez mais cedo. Os anticoncepcionais se tornavam mais seguros, mais práticos e estavam legalizados. A exibição pública do corpo nu e as demonstrações de liberação sexual, nos filmes e na literatura, tornavam-se mais comuns, ao menos no noroeste da Europa. Por todos esses motivos, os mais velhos se diziam convictos de que o recato sexual havia acabado – e aos filhos cabia instigar o pesadelo dos pais.
Na verdade, a “revolução sexual” dos anos 60 foi quase uma miragem para a grande maioria das pessoas, fossem jovens ou velhos. Até onde é possível saber, os interesses e as práticas sexuais da maioria dos jovens europeus não mudaram tão rápida ou radicalmente como então se afirmava. Segundo pesquisas realizadas à época, a vida sexual dos estudantes diferia pouco daquela das gerações anteriores. Quanto à libertação sexual, os anos 60 contrastavam com os anos 50, retratados (um tanto injustamente) como uma época de retidão moral e emoção reprimida. Mas, se comparados aos anos 20, ou ao final do século XIX, na Europa, ou ao demi-monde de Paris em torno de 1860, os Swinging Sixties foram bastante tranqüilos.
Em 1967, havia mais de 2 mil lojas em Londres que se autodenominavam butiques. A maioria era de imitações de lojas surgidas ao longo de Carnaby Street, antigo reduto gay repaginado como epicentro da moda jovem, tanto para homossexuais quanto para heteros. Em Paris, a New Man, a primeira versão francesa das butiques inglesas, foi aberta na rue de l’Ancienne Comédie, em 13 de abril de 1965. Em menos de um ano, surgiram dezenas de outras imitações da New Man sempre com nomes britânicos, refletindo a tendência do momento: Dean, Twenty, Cardiff etc.
O estilo Carnaby Street – clonado por toda a Europa ocidental (embora de maneira menos marcante na Itália) – enfatizava as roupas coloridas e justas, sugerindo algo andrógino e propositadamente estranho para pessoas com mais de 30 anos. Nos três anos seguintes, calças justas, de veludo cotelê vermelhas, e camisetas pretas colantes da New Man viraram o uniforme dos manifestantes nas ruas de Paris, e foram copiadas em toda parte. A exemplo de tudo o mais relacionado aos anos 60, essas roupas eram confeccionadas por homens e para homens, mas as mulheres jovens também podiam usá-las, e o faziam cada vez mais. Até os mais famosos ateliês de Paris foram afetados. A partir de 1965, os costureiros da cidade passaram a produzir mais calças do que saias.
Foi quando também apareceram os tecidos em estilo cigano usados pelos hippies. Em contraste com os estilos Carnaby Street, cujas origens eram autenticamente européias, a moda hippie – obscuramente utópica, com uma ética abertamente assexuada, contrária ao Ocidente e ao consumo, e favorável à “contracultura” – era importada dos Estados Unidos. A importância comercial dessa onda foi logo sentida, e o comércio, que, em meados dos anos 60, havia se expandido para suprir a demanda por roupas colantes e de corte justo, logo a adaptou. Chegou-se a tentar vender, por um breve período, o “estilo Mao”. Caracterizado pela jaqueta larga, com colarinho reto, e o sempre presente “boné de proletário”, o estilo Mao combinava aspectos das três tendências, especialmente quando o “acessório” era o Livro Vermelho, que continha as idéias revolucionárias do ditador chinês. Apesar do filme A Chinesa, rodado por Jean-Luc Godard em 1967, no qual um grupo de estudantes franceses estuda Mao e procura seguir-lhe o exemplo, o estilo Mao não vingou – nem mesmo entre os “maoístas”.
Depois de 1967, a política da contracultura e seus símbolos assumiram um perfil mais engajado, em virtude dos relatos românticos de guerrilheiros no Terceiro Mundo. Mesmo assim, tais mitos não colaram na Europa. É preciso não se deixar engambelar pela extraordinária pós-vida como mártir de Che Guevara, de sua imagem de pôster cristianizado para adolescentes ocidentais insatisfeitos: os anos 60 na Europa foram eurocêntricos do começo ao fim. Mesmo a “revolução hippie” jamais conseguiu, de fato, cruzar o Atlântico. No máximo, o movimento alcançou o litoral da Grã-Bretanha e da Holanda, deixando como herança uma cultura de drogas mais desenvolvida do que em outras paragens.
Entre 1956 e 1968, o marxismo na Europa viveu, e floresceu, num estado de suspensão. O comunismo stalinista caíra em desgraça, graças às revelações e aos eventos de 1956 [a revolta húngara contra o stalinismo e a invasão do país pelo Exército Vermelho]. Os partidos comunistas ocidentais eram politicamente irrelevantes (na Escandinávia, Grã-Bretanha, Alemanha Ocidental e Holanda), ou estavam em declínio lento e inequívoco (na França), ou então, no caso da Itália, tentavam se distanciar da herança moscovita. O marxismo oficial, conforme encarnado na História e nos ensinamentos dos partidos leninistas, estavam largamente desacreditados. Até mesmo os ocidentais que decidiam votar a favor do comunismo demonstravam pouco interesse no assunto.
Foram as lutas entre facções dos primeiros anos do regime soviético que deram vida à mais duradoura das “heresias” marxistas, a de Trotsky e seus seguidores. Vinte e cinco anos depois da morte de Trotsky, no México, assassinado por um stalinista (e, em larga medida, por causa dessa morte), era possível encontrar partidos trotskistas em todos os países europeus onde o movimento não havia sido explicitamente banido. Partidos pequenos que, à imagem do seu fundador, eram liderados por um chefe carismático e autoritário, que ditava doutrina e táticas. Sua principal característica era o “entrismo”, a militância nas grandes organizações de esquerda (partidos, sindicatos, sociedades acadêmicas), com o propósito de colonizá-las ou fazer avançar políticas e alianças indicadas pela teoria trotskista.
Os anos 60 redescobriram Rosa Luxemburgo, a socialista polonesa de origem judaica assassinada, em janeiro de 1919, por soldados alemães, na malfadada revolução berlinense; György Lukacs, o pensador comunista húngaro cujos escritos dos anos 20 propunham uma alternativa às interpretações ortodoxas da História e da literatura, textos que ele mais tarde seria obrigado a negar publicamente; e, acima de todos, Antonio Gramsci, o co-fundador do Partido Comunista Italiano, autor de anotações brilhantes sobre a política revolucionária e história italiana, a maioria das quais escrita em prisões fascistas, onde ele padeceu de 1926 até morrer, aos 46 anos, em abril de 1937.
O resgate dos escritos de Luxemburgo, Lukacs, Gramsci, e de outros marxistas esquecidos, cuja atuação ocorrera no princípio do século XX, foi acompanhado da redescoberta do próprio Marx. A idéia de um Marx novo e diferente foi decisiva para a atração dos jovens pelo marxismo nos anos 60. O “velho” Marx era o de Lênin e Stálin: o cientista social vitoriano, cujos textos neopositivistas previam e autorizavam o centralismo democrático e a ditadura do proletariado. Mesmo que esse Marx não pudesse ser diretamente responsabilizado pelo uso de seus escritos, era impossível dissociá-lo dessas idéias. Em nome do comunismo ou da social-democracia, aqueles escritos ficaram ligados à velha esquerda.
A nova esquerda, conforme passou a se chamar por volta de 1965, buscou novos textos – e os encontrou entre os escritos do jovem Karl Marx, nos ensaios metafísicos e anotações do início da década de 1840. Ele era um jovem filósofo alemão impregnado pelo historicismo hegeliano e pelo sonho romântico de liberdade suprema. O próprio Marx optara por não publicar alguns daqueles textos. Na realidade, depois do fracasso das revoluções de 1848, Marx se afastara daquelas idéias e se voltara para o estudo da economia política e da política contemporânea com o qual, a partir de então, seria identificado.
Assim sendo, muitos dos escritos do início da carreira de Marx não eram conhecidos, nem mesmo entre os estudiosos. Quando foram publicados pela primeira vez na íntegra, sob os auspícios do Instituto Marx-Engels, em Moscou, em 1932, despertaram pouca atenção. O interesse pelos textos (especialmente os Manuscritos Econômicos e Filosóficos e A Ideologia Alemã) só voltou a ocorrer trinta anos depois. De uma hora para outra, passou a ser possível ser marxista e, ao mesmo tempo, livrar-se do fardo pesado e sombrio da antiga esquerda ocidental. O jovem Marx parecia preocupado com problemas surpreendentemente modernos: como transformar a consciência “alienada” e livrar os seres humanos da ignorância sobre sua verdadeira condição e capacidade; como inverter a ordem de prioridades na sociedade capitalista e situar os indivíduos no centro da sua própria existência; em suma, como transformar o mundo.
Comunistas e outros marxistas conservadores perceberam a facilidade com que esse novo Marx humanista se adaptava ao gosto e ao modismo da época. As queixas de Marx – um romântico do início do século XIX – contra a modernidade capitalista e contra o impacto selvagem da sociedade industrial casavam com os protestos da época em relação à “tolerância repressiva” na Europa ocidental pós-industrial. A flexibilidade, aparentemente ilimitada e próspera, do Ocidente liberal, a capacidade demonstrada em absorver paixões e diferenças, enfurecia os críticos. A repressão, eles insistiam, era endêmica na sociedade burguesa. Não sumiria de uma hora para outra. A repressão, que já não existia nas ruas, teria se deslocado necessariamente para outros domínios, para a alma das pessoas e, acima de tudo, para os seus corpos.
A ênfase na satisfação sexual enquanto objetivo radical foi considerada agressiva para uma geração mais velha da esquerda. Pregar o amor livre numa sociedade livre não era uma idéia nova. Algumas facções socialistas do início do século XIX haviam defendido a mesma visão, e nos primeiros anos da União Soviética a moralidade fora bastante liberada. Mas a linha oficial do radicalismo europeu era a da retidão moral e doméstica. A velha esquerda nunca fora culturalmente dissidente, nem sexualmente aventureira, nem mesmo quando jovem. Tudo isso fazia parte do interesse de boêmios, estetas e artistas, gente muitas vezes com tendências individualistas ou mesmo politicamente reacionárias.
Os comunistas podiam desconsiderar os discursos acerca de liberação sexual. Eles sequer se incomodavam com a estética antiautoritária da nova geração, com suas reivindicações de autonomia no quarto, na sala de aula e no chão da fábrica. Tudo era encarado, talvez de maneira imprudente, como um contratempo passageiro, que se impunha à ordem natural das coisas. O problema maior era a tendência dos jovens radicais a identificar a teoria marxista com práticas revolucionárias em países distantes, onde o peso das autoridades e das instituições estabelecidas parecia não valer nada.
O principal pilar da esquerda histórica na Europa era que ela representava (e, no caso dos comunistas, encarnava) o proletariado. A identificação estreita entre o socialismo e a classe operária industrial assalariada era mais do que mera afinidade eletiva. Tratava-se da marca que distinguia a esquerda ideológica, que a separava dos liberais e dos reformistas católicos bem-intencionados. O voto da classe operária, especialmente o voto do segmento masculino da classe operária, era a base da força e da influência do Partido Trabalhista britânico, dos partidos trabalhistas na Holanda e na Bélgica, dos partidos comunistas na França e na Itália, e dos partidos social-democratas na Europa Central de língua alemã. Havia somente uma classe revolucionária: o proletariado. Somente um partido capaz de representar e defender os interesses dessa classe: o comunista. E apenas um desfecho correto para a luta dos trabalhadores sob o comando comunista: a revolução, conforme patenteada na Rússia cinqüenta anos antes.
Os partidos de esquerda tradicionais dependiam dos votos dos trabalhadores e, portanto, identificavam-se com eles. Em meados dos anos 60, porém, essa classe estava desaparecendo. Nos países desenvolvidos da Europa Ocidental, mineiros, operários dos estaleiros, das indústrias do aço, metalúrgica e têxtil, operadores de ferrovias e trabalhadores braçais de todo tipo começaram a se aposentar maciçamente. Na iminente era da indústria de serviços, o lugar desses trabalhadores estava sendo ocupado por uma população ativa bastante diferente.
O proletariado já não parecia ser a única ferramenta disponível no processo de transformação social. No Terceiro Mundo, emergiam outras opções: nacionalistas (anticolonialistas) no norte da África e no Oriente Médio; líderes radicais negros nos Estados Unidos (que não pertenciam aos países em desenvolvimento, mas que com eles se identificavam); e camponeses guerrilheiros em toda parte, da América Central até o sul da China. Ao lado dos estudantes e da juventude, essas outras alternativas, no que dizia respeito às esperanças revolucionárias, constituíam um grupo bem maior e mais mobilizado do que as massas acomodadas de trabalhadores europeus. Na Europa ocidental, depois de 1956, jovens radicais abandonaram o sombrio comunismo oriental e passaram a olhar mais ao longe, em busca de inspiração.
A atração pelo que ocorria em terras exóticas foi estimulada, em parte, pela aura dos movimentos de liberação nacional, e também pela sensação de que a Europa era uma causa perdida. Ainda havia pouca informação sobre o que de fato se passava nesses países. As revoluções em Cuba e na China, em particular, tinham a virtude e a ousadia que, lamentavelmente, faltavam à Europa. A marxista italiana Maria-Antonietta Macciocchi foi ousada ao comentar o contraste entre a miséria da Europa contemporânea e a utopia pós-revolucionária da China de Mao, então no auge da Revolução Cultural: “Na China, não há sinais de alienação, esquizofrenia ou da fragmentação do indivíduo que se verificam na sociedade de consumo. O mundo do chinês é compacto, integrado e absolutamente sólido”.
O Terceiro Mundo vivia em alvoroço, da Bolívia ao sudeste da Ásia. O “Segundo Mundo”, o do comunismo soviético, era estável apenas em aparência, e não por muito tempo. A maior potência ocidental, abalada por assassinatos e conflitos raciais, embarcava numa guerra polêmica contra o Vietnã. Em meados da década, os gastos americanos com defesa dispararam, atingindo o ápice em 1968. Na Europa, era consenso de que a guerra era um erro. O conflito serviu para gerar uma intensa mobilização popular em todo o continente. Em 1968, a campanha de solidariedade ao Vietnã levou às ruas de Londres dezenas de milhares de estudantes, que marcharam até a embaixada americana, em Grosvenor Square, exigindo o fim da guerra (e também do titubeante apoio do governo trabalhista britânico ao conflito).
O que resultou no maio de 68 teve início no outono de 1967, em Nanterre, subúrbio industrial onde funcionavam extensões da Universidade de Paris. Havia algum tempo, os alojamentos estudantis daquela área abrigavam uma população flutuante de estudantes, de invasores ilegais, além de traficantes e usuários de drogas. Ninguém pagava aluguel. Era intenso o vai-e-vem noturno entre os dormitórios masculinos e femininos, apesar do rígido controle oficial.
A administração do campus de Nanterre fazia vista grossa, para evitar maiores problemas com os estudantes. Mas, em janeiro de 1968, expulsou um sujeito que invadira o alojamento e ameaçou tomar medidas disciplinares contra um aluno, Daniel Cohn-Bendit, que havia insultado um ministro que os visitava. Outras reclamações foram feitas e, em 22 de março, depois que estudantes atacaram o prédio da American Express, no centro de Paris, e foram parar na cadeia, ganhou força a idéia de formar um movimento, do qual Cohn-Bendit seria um dos líderes. Duas semanas mais tarde, o campus de Nanterre foi fechado, após novos confrontos entre os alunos e a polícia, e o tal movimento (e a balbúrdia) foi deslocado para os suntuosos prédios da Sorbonne, no centro de Paris.
As motivações que desencadearam maio de 68 foram menos grandiosas do que os acontecimentos em si. A ocupação estudantil da Sorbonne, as barricadas nas ruas e a luta contra a polícia, especialmente nas noites e madrugadas de 10 e 25 de maio, foram comandadas por representantes da Juventude Comunista Revolucionária (trotskista), por membros de diretórios estudantis e de sindicatos de jovens docentes. A retórica marxista imbuída no confronto, embora bastante conhecida, mascarava uma atitude mais anarquista, mais ligada à balbúrdia, cujo objetivo imediato era deter e, de certa forma, humilhar as autoridades francesas.
Nesse sentido, conforme insistia em tom de menosprezo a liderança do Partido Comunista Francês, aquilo era uma festa, não uma revolução. O fenômeno tinha todo o simbolismo de uma típica rebelião francesa – manifestantes armados, barricadas nas ruas, ocupação de prédios e esquinas estratégicas, exigências e contra-exigências políticas – mas lhe faltava certa substância. O grosso da multidão estudantil vinha, predominantemente, da classe média. De fato, muitos pertenciam à própria burguesia parisiense: fils à papa (“filhos de papai”), como os rotulou, com sarcasmo, o líder do PCF, Georges Marchais.
O primeiro-ministro Georges Pompidou percebeu rapidamente o tamanho do problema. Logo após os primeiros confrontos, determinou que a polícia se retirasse, apesar das críticas de membros do partido e do governo, deixando os estudantes parisienses tomarem conta da universidade e da vizinhança. Pompidou e o presidente, Charles de Gaulle, sentiram-se intimidados diante da extensa cobertura midiática dos estudantes. Apesar de terem sido pegos de surpresa pelo confronto, no entanto, em nenhum momento eles se sentiram ameaçados pelos jovens. Acreditavam que, na hora certa, a polícia, sobretudo o pelotão de choque (formado por soldados filhos de camponeses e, portanto, sem qualquer pudor em rachar a cabeça de um jovem da elite parisiense, caso fosse necessário) haveria de restaurar a ordem. Pompidou estava preocupado com algo bem mais grave.
Os confrontos estudantis haviam estimulado uma série de greves e paralisações em fábricas que, em fins de maio, quase engessaram a França. Alguns dos primeiros protestos – que incluíram o de repórteres da rádio e televisão francesas – se voltaram contra líderes políticos que haviam censurado a cobertura do movimento estudantil e, sobretudo, contra a brutalidade excessiva de alguns pelotões da polícia. Na medida em que a greve se espalhava por fábricas de aviões, em Toulouse, por companhias de energia elétrica, indústrias petroquímicas e se estendia às imensas montadoras da Renault na periferia de Paris, ficava claro que a questão transcendia à indignação de alguns milhares de estudantes.
As greves, invasões, ocupações e passeatas se tornaram o maior movimento de protesto social na França moderna, muito mais relevantes do que as de junho de 1936. Mesmo em perspectiva, ainda é difícil precisar o que realmente havia por trás deles. Logo no início, a Confederação Geral do Trabalho, a CGT, central sindical comandada pelos comunistas, sofreu uma derrota quando seus membros tentaram dominar a greve da Renault. Eles foram impedidos pelos próprios trabalhadores grevistas. Um acordo firmado entre governo, sindicatos e trabalhadores foi rejeitado, terminantemente, pelos operários da Renault, a despeito da promessa de aumento salarial, redução da jornada e mais participação do operariado.
Os milhares de homens e mulheres que haviam cruzado os braços nas fábricas tinham ao menos um ponto em comum com os estudantes. Quaisquer que fossem as pendengas locais, eles se sentiam, acima de tudo, frustrados com as condições da sua existência. Não buscavam apenas melhorar sua situação profissional, mas uma transformação no seu estilo de vida.
A França vivia um momento de prosperidade e estabilidade, e alguns analistas conservadores concluíram que a onda de protestos não era fruto do descontentamento, mas do tédio. Contudo, existia uma frustração autêntica, não apenas em fábricas como as da Renault, mas em toda parte. A Quinta República havia acentuado o antigo hábito francês de concentrar poder em certas instituições. A França era dirigida (e vista como tal) por uma pequena elite parisiense: excludente, culturalmente privilegiada, arrogante, hierárquica e inacessível. Gente dessa própria elite (particularmente os seus filhos) a considerava opressora.
No auge das invasões e do movimento grevista, alguns líderes estudantis e um pequeno grupo de políticos experientes (inclusive o ex-premiê Pierre Mendès-France e o futuro presidente François Mitterrand) declararam, surpreendentemente, que as autoridades não tinham remédio: o poder estava à disposição para ser tomado. Esse tipo de discurso era arriscado e imprudente, conforme Raymond Aron observou à época: “Tirar do poder um presidente eleito democraticamente é diferente de destituir um rei”. De Gaulle e Pompidou rapidamente se aproveitaram dos erros cometidos pela esquerda. O país, alertaram, estava sob a ameaça de um golpe comunista.
Em fins de maio, De Gaulle anunciou uma eleição-relâmpago. Os franceses foram convocados a escolher entre o governo legítimo e a anarquia revolucionária. Durante a campanha eleitoral, a direita lançou uma grande ofensiva. No dia 30 de maio, uma multidão, muito mais numerosa do que a das manifestações estudantis de duas semanas antes, lotou a avenida dos Champs-Elysées gritando palavras-de-ordem que desmentiam o discurso da esquerda – que as autoridades haviam perdido o controle da situação. A polícia foi instruída a retomar os edifícios da Sorbonne, as fábricas e os escritórios. Nas urnas, os partidos governistas tiveram uma vitória esmagadora, que aumentou em mais de 20% seu eleitorado e garantiu maioria absoluta na Assembléia Nacional. Os operários voltaram ao trabalho. Os alunos saíram de férias.
As ações de maio de 68 na França foram bem mais pacíficas do que qualquer outra atividade revolucionária que se desenrolava mundo afora, ou mesmo quando comparadas ao que já havia ocorrido no passado no próprio país. Houve abusos contra a propriedade privada, e vários estudantes e policiais foram hospitalizados depois da Noite das Barricadas, em 24 de maio. Mas nada mais do que isso. Nenhum estudante foi morto em 1968. Os representantes políticos da República não foram atacados. As instituições nunca foram seriamente ameaçadas – à exceção das universidades, onde tudo começou, que passaram por certa turbulência e descrédito, e não implementaram qualquer mudança significativa em sua estrutura.
Uma prova do ambiente apolítico de maio de 68 é o fato de que, nos anos seguintes, os livros mais vendidos sobre o assunto não foram os que traziam análises históricas sérias ou reflexões sobre as doutrinas da época. Os best-sellers foram compilações de fotos de grafites e palavras-de-ordem pintadas em paredes, quadros de avisos e espalhadas pelas ruas da cidade. Mensagens que incentivavam os jovens a amar, se divertir, zombar das autoridades, fazer o que lhes agradasse – e transformar o mundo num subproduto de tais atitudes. Sous le pavé, la plage (“Debaixo dos paralelepípedos, a praia”), dizia uma delas. Os slogans de maio de 68 nunca incitaram os manifestantes a fazer nada que provocasse um prejuízo sério.
A situação foi bem diferente na Itália. O contexto social dos conflitos era bastante diverso. A grande migração do sul para o norte, durante a primeira metade da década, havia criado em Milão, Turim e outras cidades industriais do norte uma incontrolável demanda por transportes, serviços, educação e, sobretudo, moradias – necessidades com as quais os governos anteriores jamais haviam lidado. O milagre econômico chegou à Itália depois da maioria dos países europeus, e o rompimento com a sociedade agrária foi mais abrupto.
A conseqüência foi que a industrialização bateu de frente com quem havia sido excluído dos processos da modernidade. Trabalhadores especializados e não-especializados (a maioria mulheres, vindas do sul) nunca foram absorvidos pelos sindicatos do norte industrializado. Não bastassem os embates entre patrões e empregados, passou a haver outro: entre mão-de-obra técnica e não-técnica, entre sindicalizados e não-sindicalizados. Operários especializados das fábricas da Fiat ou da Pirelli, que tinham os melhores níveis salariais e mais estabilidade, reivindicavam maior participação nas decisões da diretoria, como a carga horária, os planos de carreira e medidas disciplinares. Os não-especializados concordavam com algumas propostas e discordavam de outras. O que eles queriam, em suma, era mudar a exigência do cumprimento de metas inatingíveis da produção em série, o ritmo implacável das linhas de produção e a falta de segurança no trabalho.
Quem mais se beneficiava com as tensões sociais não eram as organizações consolidadas da esquerda, mas uma rede extraparlamentar e informal de oposição. Seus líderes (comunistas dissidentes, acadêmicos defensores da autonomia para os trabalhadores e membros de organizações estudantis) foram ágeis na identificação dos operários descontentes, e logo os incorporaram a seus quadros. As universidades também eram irresistíveis. Havia nelas uma força nova e desorganizada (com a entrada em massa de estudantes de primeira geração), que enfrentava condições de vida e trabalho extremamente insatisfatórias. Uma elite velha controlava a massa estudantil, impondo horários, provas, conceitos e punições como bem entendesse.
A protéica capacidade de transmutação da política radical italiana pode ser entendida a partir de um documento com reivindicações dos estudantes que circulou em um liceo (colégio secundário) de Milão: o objetivo do movimento estudantil, dizia o papel, era “o controle e eventual eliminação do sistema de notas e reprovações e, portanto, a abolição do processo seletivo na escola; garantia do direito de todos à educação e a bolsas de estudo; liberdade de convocar assembléias; realização de uma reunião matinal; prestação de contas por parte dos professores aos alunos; remoção de todos os professores reacionários e autoritários; e autonomia estudantil para determinar o currículo”.
Os movimentos revolucionários italianos tiveram início em Turim, em 1968, com as objeções dos estudantes à transferência da Faculdade de Ciências para o subúrbio, um eco do que ocorria em Nanterre exatamente na mesma época. Outra coincidência foi o fechamento, em março de 1968, da Universidade de Roma, depois de tumultos durante o protesto dos estudantes contra uma lei de reforma universitária. Diferentemente do movimento francês, o interesse dos líderes estudantis italianos na reforma das instituições acadêmicas era menor do que sua identificação com os movimentos trabalhistas, como sugerem os nomes de suas organizações: Avanguardia Operaia ou Potere Operaio (Vanguarda Operária ou Poder Operário).
Os embates trabalhistas iniciados nas fábricas da Pirelli, em Milão, em setembro de 1968, que duraram até novembro de 1969 (quando o governo pressionou a empresa a aceitar as reivindicações dos grevistas), funcionaram como um estímulo aos estudantes rebeldes. Além de o movimento grevista de 1969 ter sido o mais relevante da história italiana, ele resultou na mobilização e na politização da juventude radical em proporções muito maiores do que o fora no caso dos protestos, de apenas um mês de duração, ocorridos na França no ano anterior. O período, batizado de “outono quente”, com greves ilegais e ocupações promovidas por pequenos grupos de trabalhadores que exigiam participar da gestão das fábricas, levou uma geração de estudantes a concluir que a tática correta de luta era a negação total do “estado burguês”. A autonomia dos trabalhadores seria a única saída. Assim, entendiam que as reformas, tanto nas escolas quanto nas fábricas, não eram apenas inviáveis – eram também indesejáveis. Concessão significava derrota.
A razão pela qual os marxistas “heterodoxos” seguiram esse rumo ainda é debatida. A estratégia política conciliadora do Partido Comunista Italiano dava margem a comentários de que seus membros tinham interesse na estabilidade, em manter o sistema vigente, o que fazia com que os críticos mais radicais da esquerda classificassem o partido como “altamente reacionário”. Soma-se a isso o fato de o sistema político italiano ser ao mesmo tempo corrupto e, aparentemente, incapaz de mudar. Nas eleições de 1968, tanto os democratas-cristãos quanto os comunistas ampliaram seu eleitorado, enquanto os demais partidos ficaram estagnados. Se tal fato pode explicar sua antipatia pela esquerda informal, não é suficiente para que se possa compreender a opção dela pela violência.
O “maoísmo” – ou o fascínio pela Revolução Cultural chinesa, que então vivia o seu momento máximo – era mais difundido na Itália do que em qualquer outro país europeu. Inspirados pela Guarda Vermelha chinesa, partidos, grupos e periódicos maoístas, ditos “marxista-leninistas” (expressão usada para diferenciá-los dos comunistas oficiais, a quem desprezavam), proliferaram naqueles anos. Eles pregavam a comunhão de interesses entre trabalhadores e intelectuais. Em Roma e Bolonha, os teóricos do movimento estudantil chegavam a imitar a retórica dos doutrinadores de Pequim, dividindo as disciplinas acadêmicas em “pré-burguesas” (Grego e Latim), “estritamente ideológicas” (História) e “indiretamente ideológicas” (Física, Química, Matemática).
A combinação supostamente maoísta do romantismo revolucionário com o dogma trabalhista foi personificada pelo periódico (e também movimento) Lotta Continua (Luta Contínua). Ele surgiu no outono de 1969, quando o uso da violência já se fazia notar no movimento estudantil. Durante as manifestações de junho de 1968, em Turim, os lemas eram “Não à paz social nas fábricas!” e “Só a violência funciona onde a violência reina”. Nos meses seguintes, protestos em universidades e fábricas pregaram o uso da força, fosse ela retórica (“Não transforme o Estado, destrua-o!”) ou mesmo real. A canção mais conhecida do movimento estudantil italiano daquele momento se chamava La Violenza.
A grande ironia da situação foi percebida pelos intelectuais. Como observou o cineasta Pier Paolo Pasolini, depois dos confrontos entre estudantes e policiais nos jardins da Villa Borghese, em Roma, os papéis haviam se invertido. Os filhos privilegiados da burguesia gritavam palavras-de-ordem revolucionárias e agrediam os filhos mal-remunerados dos camponeses do sul, cuja responsabilidade era preservar a ordem civil. Quem tivesse uma boa memória sobre os fatos ocorridos na história recente da Itália saberia que a orientação pela violência só poderia acabar mal.
Enquanto os estudantes franceses apostavam que as autoridades ficariam vulneráveis se a baderna viesse de baixo (uma ilusão dos estudantes alimentada pelas inabaláveis instituições francesas), os radicais italianos tinham bons motivos para crer que conseguiriam destruir a estrutura da República pós-fascista, e estavam ansiosos por fazê-lo. Em 24 de abril de 1969, foram colocadas bombas na Feira Mundial de Milão e na estação ferroviária central. Oito meses mais tarde, depois que os conflitos na Pirelli haviam sido resolvidos e o movimento grevista terminado, o Banco Nacional Agrícola, na Piazza Fontana, em Milão, foi pelos ares. Era o início da “estratégia de tensão”, que marcou o início da década de 1970.
Os radicais italianos dos anos 60 poderiam ter sido acusados de ter esquecido o que ocorrera no passado recente. Na Alemanha Ocidental, acontecia o oposto. Até 1961, a geração pós-guerra cresceu convencida de que o nazismo havia sido responsável pela guerra e a derrota do país; no entanto, até então, os efeitos mais infames do holocausto haviam sido minimizados. A partir daquele ano, com o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, seguido pelos “julgamentos de Auschwitz”, em Frankfurt, os males recônditos do nazismo foram finalmente apresentados à opinião pública. Em Frankfurt, 273 testemunhas confirmaram a crueldade dos crimes cometidos pelos alemães contra a humanidade, incriminando muito mais do que os 23 acusados (22 da SS e um kapo de um campo de concentração). Alexander e Margarete Mitscherlich publicaram um estudo, intitulado A Incapacidade de Lamentar, no qual afirmavam que o reconhecimento oficial das perversidades do nazismo por parte dos alemães jamais fora acompanhado de uma sincera admissão de culpa individual.
A intelectualidade alemã logo absorveu a idéia. Um grupo de jovens pensadores, nascidos durante ou logo após a Segunda Guerra Mundial, foi ainda mais radical. Atribuíam quase tudo o que dava errado na Alemanha ao fracasso da República de Bonn, e não ao nazismo. Portanto, para Rudi Dutschke (nascido em 1940), Gudrun Ensslin (1940) ou Andreas Baader (nascido em 1943) e Rainer Werner Fassbinder (1945), a democracia existente na Alemanha Ocidental no pós-guerra não era a solução – era o problema. Até as características constitucionais da República eram falsas. Nas palavras de Fassbinder: “Nossa democracia foi decretada pela zona de ocupação ocidental; nós mesmos não lutamos por ela”.
Em dezembro de 1966, o governo democrata cristão indicou o ex-nazista Kurt-Georg Kiesinger à sucessão do chanceler Ludwig Erhard. O novo chanceler tinha sido membro remunerado do partido por doze anos, e sua nomeação foi entendida como a prova clara do cinismo e da falta de arrependimento da República de Bonn. Se o próprio chefe do governo não se envergonhava de ter apoiado Hitler, quem poderia levar a sério as declarações de pesar, ou o compromisso com os valores liberais assumidos pela Alemanha Ocidental, principalmente numa época em que os movimentos neonazistas renasciam na periferia da política?
Kiesinger liderou o governo durante três anos, de 1966 a 1969. Nesse período, a esquerda extraparlamentar alemã se disseminou com sucesso nas universidades. Algumas das reclamações da União dos Estudantes Socialistas (UES) passaram a ser comuns a todo o continente europeu ocidental: residências estudantis e salas de aula superlotadas; professores distantes e inacessíveis; ensino enfadonho e desprovido de imaginação.
O antimilitarismo era uma bandeira importante nos protestos, tanto para criticar o governo vigente quanto o antecessor nazista. Com a crescente oposição à guerra do Vietnã, a latente confluência entre passado e presente acabou por atingir o mentor militar da Alemanha Ocidental. A América do Norte, sempre “fascista” segundo a minoria radical, havia se tornado o inimigo número um de um público muito mais numeroso. Na realidade, atacar a “Amerika” pela guerra do Vietnã era quase uma transferência da discussão dos crimes de guerra cometidos pela própria Alemanha. Na peça de Peter Weiss intitulada Vietnam-Discourse, de 1968, o paralelo entre os Estados Unidos e os nazistas fica explícito.
Na Alemanha, um dos reflexos da confusão cultural dos anos 60 foi entender que sexo e política estavam mais ligados do que nunca. A exemplo de Marcuse, Erich Fromm, Wilhelm Reich e outros teóricos da repressão sexual e política, grupos radicais alemães (e austríacos, ou pelo menos, vienenses) louvavam a nudez, o amor livre e uma educação infantil não-autoritária. As tão propaladas neuroses sexuais de Hitler passaram a servir como explicação para o nazismo. Em determinados círculos, era traçada uma analogia grotesca, repulsiva, entre os judeus vitimados por Hitler e a juventude dos anos 60, mártires da repressão sexual dos próprios pais.
Em junho de 1967, numa passeata em Berlim contra o xá do Irã, a polícia atirou e matou o estudante Benno Ohnesorg. Rudi Dutschke disse que a morte de Ohnesorg era um “assassinato político”, e incitou a reação das massas. Em poucos dias, 100 mil estudantes protestavam por toda a Alemanha Ocidental. Dias depois, Jürgen Habermas, até então um proeminente crítico das autoridades de Bonn, advertiu Dutschke e seus companheiros sobre a virulência de seus discursos. O “fascismo da esquerda”, ele lembrou ao líder da União dos Estudantes Socialistas, é tão letal quanto o da direita.
Cada vez mais violentas, as facções marginais da política estudantil alemã se tornavam ostensivamente “marxistas”, geralmente marxista-leninistas (como os maoístas). Muitas delas eram financiadas pela Alemanha Oriental, ou Moscou, embora à época isso não fosse público. Como acontecia com a maior parte da esquerda da Alemanha Ocidental (e não somente da esquerda), os radicais tinham uma relação ambígua com a República Democrática Alemã, a do lado oriental.
A esquerda alemã não deu ouvidos aos clamores de Varsóvia e Praga. Na Alemanha e nos demais países da Europa, as atenções estavam voltadas para si mesmos. Se a juventude ocidental olhava para além de suas fronteiras, esse olhar estava interessado no que acontecia em terras exóticas, cujas imagens flutuavam livres das limitações impostas pela familiaridade ou pela informação. Sobre a cultura dos países mais próximos, o Ocidente nos anos 60 pouco sabia. Quando Rudi Dutschke fez uma visita a Praga, na primavera de 1968, no auge do movimento reformista tcheco, os estudantes locais ficaram perplexos diante da insistência do visitante em afirmar que a democracia pluralista era o verdadeiro inimigo. Para os estudantes tchecos, a democracia pluralista era o objetivo.