Marcelo Freixo entrou raspando na eleição de 2006 para deputado estadual, com 13 547 votos; quatro anos depois, teve a segunda maior votação do estado do Rio (177 mil votos). Entre as duas, uma CPI contra as milícias, muitas ameaças de morte e um filme bombástico FOTO: ROGÉRIO REIS_2012
O estranho do ninho
Como vive e o que pensa Marcelo Freixo, o deputado na linha de tiro das milícias e candidato azarão a prefeito do Rio de Janeiro
Dorrit Harazim | Edição 67, Abril 2012
Março de 2012_“Não gosto de frescura. Vamos falar sério, sem galinhagem. Que loucura é essa?”Sentado numa poltrona parruda com um laptop no colo, o dono da casa, Marcelo Yuka, dirige a pergunta ao xará. Instalado num trio de cadeiras conjuminadas, arrematadas de um cinema, Marcelo Freixo precisava ser convincente e persuasivo na resposta.
Artífice do encontro daquela sexta-feira, dia 9, o espaçoso Eduardo Alves, chefe de gabinete do deputado estadual do PSOL carioca, preferiu se anichar sobre a cama do anfitrião. Dali, Edu, como é chamado por todos, podia ouvir a conversa com conforto total – o andar inteiro era uma espécie de loft, sem divisórias entre sala, quarto, cozinha e varanda.
Marcelo Fontes do Nascimento, o Yuka dos tempos da banda O Rappa, deixou Freixo concluir o arrazoado antes de se pronunciar. Paraplégico há quase doze anos, em razão dos tiros que o acertaram quando tentou impedir um assalto na Tijuca, Yuka jamais havia recebido proposta tão inesperada em seus 46 anos de vida.
– O Gabeira vai te apoiar?, pergunta Yuka.
A resposta é não.
– O PV deve lançar a deputada Aspásia Camargo com a justificativa de que na Conferência Rio+20 a cidade precisa ter uma candidatura verde para prefeito. Mas acho que é outra coisa, é para não nos apoiar, explica Freixo.
– Como foi a campanha anterior?, quer saber o músico, referindo-se à reeleição de Freixo em 2010.
– Fui o segundo mais votado.
– E agora, como está a situação por enquanto?
– O Eduardo Paes [prefeito do Rio de Janeiro] tem 37% dos votos e eu tenho 12%.
– E entre esses 37% e 12%, não tem mais ninguém?
– Não, estou em segundo.
Na sua primeira eleição legislativa, em 2006, o niteroiense Freixo pousou na política fluminense como um estranho. Passados seis anos, aprendeu muito, mas mudou pouco – continua adepto do voo livre e solo, ao qual se junta quem quiser.
– Por que você acha que dá para fazer campanha sem coalizão alguma?, prossegue a sabatina.
– Nossa aliança precisa se dar em outra esfera, não reproduzir a lógica em vigor. Precisamos ser capazes de mobilizar quem está cansado da política convencional. Se der certo, as alianças virão se juntar a nós no segundo turno.
Edu se levanta da cama, acha um violão, volta para o seu posto de observação e começa a dedilhar. Foi ele quem recrutou Yuka para o partido dois anos atrás. Por ter saído do PT em 2003, considera-se “psolista” antes mesmo de o Partido Socialismo e Liberdade existir. Agora, torce para a conversa terminar a contento. Cientista social formado pela UFRJ, Edu, com 44 anos, é o escudeiro mais afetuoso do chefe.
– Você acha realmente que meu nome pode ser uma boa?, indaga, por fim, Marcelo Yuka.
– Fundamental.
– Então você o tem.
Freixo conseguira fisgar um companheiro de chapa ainda menos catalogável do que ele. Na mesma noite, submeteria a indicação à direção do partido. “Se conseguirmos chegar ao segundo turno, pode encomendar terno novo”, brincou. “Sou mais racional, acho que não vai dar”, rebateu Edu. “Isso vai ser uma roubada fodida. Acho que vou enfartar”, concluiu Yuka.
Dali, Freixo seguiu num Bora blindado até o Centro da cidade, com quatro seguranças logo atrás, enfiados num outro Bora também preto, mas sem blindagem. O deputado tinha agendado uma audiência no meio da tarde com a delegada Martha Rocha, chefe da Polícia Civil. Como era sexta-feira e não havia sessão na Assembleia, estava liberado do paletó. Continuava com a mesma roupa com que saíra cedo de casa para uma penca de compromissos informais: camisa social para fora do jeans e tênis branco. Na sede da polícia, foi atendido com solicitude neutra pela recepcionista. Somente ao ter o nome copiado da carteira de identidade foi olhado com simpatia curiosa, seguida de um sorriso discreto, cúmplice. A ficha da funcionária tinha caído.
Tem sido assim desde meados de 2008, quando Freixo tornou-se um nome mais forte que um rosto. Seu nome-logomarca, quase sigla, passou a ser automaticamente associado ao combate às milícias que atuam no Rio de Janeiro. Criador e presidente da bombástica Comissão Parlamentar de Inquérito que revelou a gangrena comandada por policiais civis e militares, bombeiros militares e agentes penitenciários, o nome alçou voo para além da legenda que o abriga. Mesmo assim, uma minoria restrita dos 177 mil fluminenses que o reelegeram num arrastão de entusiasmo em 2010 o reconheceria se cruzasse com ele na rua.
Há motivos para esse descompasso. Aos 44 anos, o homem por trás do nome é um tipo de brasileiro comum. Não tem estampa, altura, porte, pose ou qualquer atributo físico que cause impacto ou atraia fotógrafos. Sua ficha de identificação policial registraria, no máximo, a pinta na pálpebra inferior do olho esquerdo. Ademais, Freixo frequenta pouco as colunas sociais – e não apenas pelas ameaças de morte que recebe. Suas escolhas de lazer e entretenimento são prosaicas: um cineminha obrigatório com a mulher – a jornalista Renata Stuart –, o chopinho no mesmo bar e com os mesmos amigos de juventude, em Niterói, férias familiares na Chapada dos Veadeiros, alguma praia de Santa Catarina, uma pousada em Paraty.
Nada em Freixo é extravagante. Sua singularidade está alhures. Primeiro, nas origens. Depois, nas escolhas que fez de como tocar a vida.
Marcelo Ribeiro Freixo não tem nem nunca teve casa própria. “Se eu for viver a angústia de não ter teto e outras coisas, não vou viver. Faço o que dá com o que ganho e vivo bem, sem sobras”, explica. Dos doze burgomestres que ocuparam a Prefeitura do Rio nos últimos 37 anos – somados aos cinco governadores do antigo estado da Guanabara, que reinaram na cidade entre 1960 e 1975 –, é muito provável que nenhum tivesse ou tenha patrimônio tão esquálido como o do candidato do PSOL. Freixo vive dos quinze salários anuais a que tem direito todo deputado estadual, com rendimentos que equivalem, por lei, a 75% do salário dos deputados federais. Até a aprovação, em Brasília, do último reajuste, no final de 2010, ele recebia 12 384 reais. Desde então, embolsa 20 042,39 reais.
Do que entra, 17% saem direto para a pensão da filha Isadora, de 13 anos, que mora com a mãe. Outros 1 700 pagam o aluguel do filho João, de 21 anos, que mora em Niterói, estuda na Universidade Federal Fluminense e trabalha no Rio. O que o jovem ganha como estagiário numa organização da sociedade civil paga o transporte e a alimentação. O restante ainda continua a cargo de Freixo.
O plano de saúde dos pais, além do aluguel de 700 reais do apartamento de dois quartos sem elevador em que moram, também faz parte de seus gastos fixos. Foi ali, no mesmo bairro do Fonseca e na mesma rua de cinco prédios, que o garoto Marcelo cresceu e se tornou adulto sem jamais ter tido um telefone em casa. O único bem que Freixo teve até hoje foi um Fiat Uno 2003. Vendeu-o quatro meses atrás por 9 mil reais. Este ano, pela primeira vez, o candidato a prefeito do Rio vai poder declarar economias depositadas em caderneta de poupança – acredita que cheguem a 8 mil. “Num mês consigo botar mil reais, no outro 500, não passa disso, mas está ótimo. A Rê me ajuda muito. Dividimos tudo e somos muito controlados”, diz ele, casado desde dezembro de 2010 – seu terceiro casamento.
Se não tivesse trocado a profissão de professor de história pela política, Freixo estima que seus rendimentos “talvez caíssem pela metade, mesmo trabalhando em três empregos, como sempre fiz”.
Seu ninho domiciliar atual também está fora do padrão. Freixo trocou o bairro Fonseca, em Niterói, pelo Leblon, e transferiu seu título de eleitor para o Rio de Janeiro em agosto de 2011, zerando assim o requisito legal a esse respeito. “Para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de, pelo menos, um ano antes do pleito”, diz a lei.
O apartamento atual na Zona Sul carioca pertence ao pai de Renata, um militar separado da mãe, com o qual ela mantém relação distante. Renata e a irmã Roberta moram ali há anos e se habituaram a ter hóspedes pagantes para ocupar um dos três quartos. Desde que casou com Renata e se mudou para lá, é Marcelo Freixo quem divide as despesas da casa com as irmãs. O fato de um deputado estadual em segundo mandato não ter patrimônio suficiente para morar com a esposa em casa própria faz dele uma ave política realmente exótica. “Não sou eu que tenho de explicar por que eu não tenho bens, são os outros que têm de explicar de onde vêm os bens deles”, observa Freixo, referindo-se a alguns colegas de plenário.
Outubro de 2011_O gabinete T04 de Freixo fica no térreo do Anexo da Assembleia Legislativa do Rio. É vizinho de porta de Clarissa Garotinho (PR), candidata a vice-prefeita na chapa do deputado federal Rodrigo Maia (DEM). Se no T03 de Clarissa as persianas internas são cor de lavanda e pufes amarelo-manga adornam a recepção, no gabinete de Freixo o ambiente é mais utilitário e bagunçado, militante e saudosista. Na sala coletiva onde trabalha boa parte dos 25 assessores, ninguém mais olha para o pôster esmaecido do Che ou para a foto de Rosa Luxemburgo.
Quem quiser falar com Freixo em sua sala terá companhia. Ele deve ser o único entre os setenta parlamentares da Casa a abrir mão da privacidade: divide o espaço com Eduardo Alves e com o multitarefas Vinicius George, homem-chave na elaboração da CPI das Milícias e coordenador para Assuntos de Segurança. Freixo acha mais prático assim, pois ganha tempo discutindo coisas a qualquer momento. Em tempos de alta voltagem, o ambiente, ali, pode ficar carregado. Vinicius, delegado da Polícia Civil, é hiperativo. Segundo a assessora de imprensa do deputado, Paula Máiran, “ele tem formiga na cadeira”. Edu tende a ficar grudado no computador, em combustão silenciosa.
“São as denúncias da semana”, explicou o deputado, apontando para três folhas em destaque sobre sua mesa. Naquela tarde de sexta-feira, a sua rotina profissional e pessoal seria irremediavelmente alterada.
As duas primeiras folhas, oriundas de informações anônimas recebidas pelo Disque-Denúncia, o serviço financiado por empresários do Rio de Janeiro e vinculado indiretamente à Secretaria de Segurança Pública do Estado, seguiam um padrão já familiar ao deputado. Alvo de ameaças desde que começou a mexer no vespeiro das milícias, Freixo aprendeu a relativizar o que lia com a ajuda de Vinicius George – ele também na mira. Algumas ameaças são típicas guerras entre quadrilhas, outras atendem à lógica da contrainformação, outras ainda são táticas de intimidação.
“…No bairro de Gardênia Azul [área de milícia na Zona Oeste], a loja EMIMAR Bazar e Ferragens esconde neste momento o armamento que será utilizado no atentado contra o deputado estadual MARCELO FREIXO, sendo entre quatro a cinco fuzis, cinquenta munições para esta arma e uma escopeta calibre 12”, informava uma das transcrições.
A segunda continha informações demais para ser crível:
“… Nas imediações do Conjunto Habitacional do Campinho, na rua 8, fica situada uma grande padaria, na qual todos os dias, no período entre 10 e 2 horas, podem ser encontrados cerca de cinquenta milicianos fortemente armados… Os citados estão planejando assassinar o deputado estadual MARCELO FREIXO e a chefe de Polícia Civil, delegada MARTHA ROCHA, nos próximos dias. Os líderes do grupo costumam circular nos seguintes veículos [seguem-se marcas, modelos, cores e placas].”
“Denúncia com muito detalhe é melhor você tratar com desconfiança e trabalhar para ver o que sobra”, ensina David Antônio dos Santos, gerente de Análise do Disque-Denúncia, durante um almoço em que fez a cortesia de desligar seus quatro celulares. “Meu problema não está em receber mil denúncias contra uma mesma pessoa e 999 delas serem mentira”, explicou. “Meu problema é essa única que vai se revelar verdadeira. E eu só vou saber qual é qual depois que algo acontecer.” Ao longo de seus treze anos peneirando denúncias anônimas, David dos Santos, que singularmente também ocupa o cargo de diretor do Departamento de Estádios, da Suderj, aprendeu a respeitar absurdos. O analista trabalha no 3º andar do Edifício Central, um abaixo da Secretaria de Segurança Pública, onde fica o xerife do Rio, José Mariano Beltrame.
Em cima da mesa de Freixo, foi a terceira folha de papel que chamou a atenção. Tinha visual diferente, origem diferente e urgência diferente. Apesar de datada de 26 de setembro, levara quase duas semanas para sair da sede da Polícia Militar, na rua Evaristo da Veiga e pousar na Alerj, a dez quarteirões de distância.
O documento trazia cabeçalho da chamada PM2, a Coordenadoria de Inteligência da Polícia Militar. Embora administrativamente subordinada ao comando da PM, a PM2 é tecnicamente ligada à Subsecretaria de Inteligência de Segurança Pública, comandada pelo delegado federal Fábio Galvão, homem de confiança de Beltrame. O ofício N.001900 – 11/D3/D311/CL, classificado de “Urgentíssimo”, dizia:
Esta Coordenadoria de Inteligência informa V. Sa. que chegou ao seu conhecimento que o miliciano ex-CB PM (rg 73 206) CARLOS ARY RIBEIRO, vulgo CARLÃO, foragido da UP/PMERJ, figura em denúncias de articular o assassinato do deputado estadual MARCELO FREIXO.
CARLOS ARY receberia a quantia de R$ 400 000,00 (quatrocentos mil reais), pagos após o término do serviço, pelo ex-SD PM (RG 75 599) TONY ANGELO DE AGUIAR, vulgo ERÓTICO, que atua como miliciano na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Os supracitados já possuem algumas informações sobre a rotina do parlamentar, como seus horários e que o mesmo anda sem seus seguranças.
[Assina]: SÉRGIO ALEXANDRE RODRIGUES DO NASCIMENTO – Cel. PM Coordenador de Inteligência.
Desta vez o assessor Vinicius George farejou encrenca. Era preciso se mexer, e rápido. Até então, sempre fora contrário à divulgação das ameaças que Freixo e ele próprio recebiam. “Era um dos pontos sobre os quais eu sempre brigava com Marcelo”, diria meses mais tarde. Lotado há cinco anos no gabinete do deputado, Vinicius conheceu as entranhas da polícia desde seu primeiro posto como delegado estagiário em Copacabana, nos idos dos anos 80. O titular da época atendia pelo apelido de Don Ratón. Um dia, esse delegado chamou o recruta esguio, de olhos verdes e jeitão de jogador de vôlei de praia, para uma conversa. Vinicius se formara em direito na UERJ aos 21 anos, fora o primeiro colocado no concurso para delegado e o primeiro da turma na academia. Tinha o típico perfil do “tira” – o policial que gosta do ofício. “Vem cá, meu filho, vou te explicar como são as coisas”, disse-lhe Don Ratón à época. “E me contou tudo”, relembra ele, hoje veterano, com 46 anos. Aprendeu que cada um escolhe o seu caminho. “O corrupto declarado nunca diz que você tem de ser corrupto também. É pôquer aberto”, explicou Vinicius.
Somente alguns dias depois, Freixo foi avisado de que o alarmante ofício também tivera origem numa denúncia anônima. As informações nele contidas – sua cabeça estaria valendo 400 mil reais, a serem pagos por um miliciano foragido de alcunha Erótico –, tidas como confiáveis, não eram fruto dos serviços de inteligência da polícia. A trapalhada devia ser atribuída a um curto-circuito intra-agências.
Tarde demais: nesse meio tempo, Freixo perdera a serenidade. Andava tenso desde a noite de 11 de agosto, quando 21 tiros disparados por milicianos mataram a juíza Patrícia Acioli, que voltava para casa sem escolta, dirigindo o próprio carro. A partir daí, as ameaças contra o deputado também se multiplicaram. Quando a conta de outubro chegou a sete, sua vida privada estava esgarçada.
Freixo é responsável pelo bem-estar dos pais – o pai tem pouca escolaridade e se locomove com dificuldade –, provedor do sustento dos filhos e, além disso, guardião de duas sobrinhas que ficaram órfãs muito pequenas. O pai delas, Renato Freixo, era irmão do deputado. Foi assassinado a tiros por milicianos numa madrugada de julho de 2006, aos 35 anos de idade. Morava a poucos quarteirões do local da fuzilaria que matou a juíza Acioli cinco anos depois. Era síndico do prédio e havia acabado de demitir os policiais que faziam bico como seguranças do condomínio.
A pedido dos pais, Freixo nunca fez alarde do caso do irmão na imprensa. Cobrava o andamento do inquérito através de visitas periódicas à delegacia. Da última vez, deixou transbordar seu desalento. “Perguntei mais quantas pessoas esses caras vitimaram desde 2006, pois talvez meu irmão não tenha sido o primeiro”, conta. Somente em 10 de janeiro passado, transcorridos cinco anos e meio do crime, a Delegacia de Homicídios de Niterói enviou o inquérito 002-2007 para o Ministério Público fluminense.
“A gente nunca quis que isso virasse um problema para o Marcelo, que já tem os dele”, diz, contida, a mãe Alenice, de 71 anos. Ela aceitou ser entrevistada no Diretório, um restaurante por quilo, inaugurado há meio ano por Guilherme, seu terceiro e mais jovem filho. “Embora o Marcelo nunca conte nada das ameaças que sofre, eu escuto pela televisão. Só peço a ele para ter muito cuidado, não facilitar. Mas falo pouco, para não interferir no que ele escolheu. Tenho que respeitar”, explica, sem nenhuma retórica.
Foi com esse pano de fundo familiar que o deputado atendeu a uma ligação de Londres, naquela tensa sexta-feira. Era Tim Cahill, o coordenador para assuntos brasileiros da Anistia Internacional. Parceiro de longa data, ainda dos tempos em que Freixo era pesquisador da ONG Justiça Global, Cahill havia enviado um e-mail ao parlamentar dias antes, perguntando se não seria prudente ele “sair um pouco”. O telefonema era para formalizar o convite e informá-lo dos detalhes.
Na mesa ao lado, o chefe de gabinete Edu saiu da fleuma aparente.
– Não seria bom pensar em levar algum segurança na viagem?, perguntou, como quem não quer nada.
– Menos, Edu, calma. Também não é assim – respondeu Freixo, que calmo não estava. “É melhor que meus seguranças acompanhem o João enquanto eu estiver fora. Ou melhor, vamos pensar um pouco mais. Não quero ninguém armado entrando no circuito trabalho–faculdade–casa dele”.
O título de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro que Freixo recebera na semana anterior estava afixado em lugar de destaque na parede. Entre amigos, familiares emocionados e companheiros de várias militâncias presentes à cerimônia da entrega, estava Mike Acioli Chagas, filho da juíza assassinada, que fora abraçar o deputado. Mike, de 21 anos, hoje mora nos Estados Unidos.
O filho de Freixo, da mesma idade de Mike, recebeu mal a ideia de ter escolta. Retraído e de índole dócil, ele é caseiro, namora a mesma garota há anos, vai bem na faculdade e trabalha com gosto no primeiro emprego. Não estava disposto a bagunçar sua rotina. O deputado, que havia decidido enviar um ofício a Beltrame solicitando escolta para o filho, teve de retirar o pedido. Em troca, João concordou em viajar com o pai.
Novembro de 2011_Fazia frio naquele início de inverno europeu e Freixo achou prudente proteger a cabeça com um béret xadrez ao desembarcar em Madri.
Era sua terceira viagem à Europa. Na primeira, em 2005, quando ainda trabalhava para o Justiça Global, fora convidado a expor os efeitos nefastos do uso de “Caveirões” (blindados) em incursões do Bope nas favelas do Rio. Em 2009, acompanhado de Vinicius George, percorrera doze cidades de seis países explicando o fenômeno das milícias. Desta vez, o único compromisso era com ele mesmo – ou com sua vida.
A passagem do parlamentar foi paga pela Front Line, uma fundação irlandesa de defesa dos direitos humanos. As da mulher e do filho foram bancadas do próprio bolso. Da Anistia Internacional Freixo recebeu 500 euros, o uso de um celular e hospedagem num apart-hotel no bairro Prosperidad, mais para decadente do que próspero.
Os três viajantes, uma vez instalados em Madri, deixaram as malas e seguiram direto para Portugal, onde Renata foi conhecer a parentela materna. Sua mãe nasceu em uma família de onze filhos e foi despachada para o Brasil aos 5 anos de idade, para ser criada por padrinhos. Nunca mais teve a chance de rever os parentes. A visita serviu para reatar os laços.
De retorno a Madri, numa padaria do bairro, Freixo aceitou analisar sua saída do Rio. “Só o tempo vai dizer se fiz bem ou não, se a decisão foi acertada”, começou. “É claro que eu não precisava viajar para solucionar o aumento da minha escolta. O problema estava no acirramento das denúncias. Vou receber oito, nove, dez, vinte ameaças até quando? Minha tensão estava no limite. Minha relação familiar começou a girar em torno das ameaças. Achei que valia a pena aceitar o convite para equilibrar a situação em família. Talvez eu não tenha calculado a questão eleitoral.”
Traçando um croissant com garfo e faca, conforme o hábito naquela padaria, Renata não se esquivou. “Foi uma decisão dele e sei que está pegando mal. A boataria no Rio atingiu um nível absurdo. Questionei muito a divulgação das ameaças. Se é uma viagem de fuga, a gente foge, não anuncia”, opinou.
Ela se referia à surpresa gerada no campo aliado com a principal justificativa de Freixo para viajar – “busca de equilíbrio familiar”–, que soou prosaica e vaga, embora fosse real. Para os adversários, foi um prato cheio: o parlamentar estaria usando as ameaças para turbinar sua candidatura a prefeito.
No campo de ataque, a voz mais tonitruante foi a da vulcânica deputada estadual Cidinha Campos (PDT). Cidinha fora sua parceira no passado – participou da CPI das milícias – e também recebeu ameaças de morte. Mas desde sua cooptação pelo PMDB de Jorge Picciani, o todo-poderoso ex-presidente da Alerj, Cidinha não dá trégua. Meio ano atrás, chegou a aventar a existência de sessenta agentes para Freixo. “Que porcaria de herói é esse que anda com sessenta nas costas e vai reclamar do comportamento da corporação? Devolva sua escolta, deputado, é uma UPP cuidando de sua segurança. O senhor em casa é mais útil do que trabalhando’’, disse à época.
Nos dias que se seguiram ao embarque do parlamentar, ela voltou ao tema várias vezes. “O que muda na segurança dele ficar duas semanas na Europa?… Eu acho que o deputado tem mais segurança do que o Papa, mais do que o Secretário de Segurança, mais do que o governador do estado… O gabinete dele se transformou numa espécie de bunker…”
A conta certa, para encerrar a polêmica: Marcelo Freixo tem à disposição dois veículos Bora e quatro equipes de três agentes que se revezam, mais Ricardinho.
Na primeira manhã livre em Madri, Freixo rumou em direção ao museu Thyssen-Bornemisza e deu de cara com uma passeata monstro no Paseo del Prado. Foi seu primeiro contato com uma Espanha já profundamente atolada na crise. Mais tarde, atendeu a uma chamada do filho, que ligava de um orelhão. “Ele foi sozinho de metrô conhecer o Estádio Santiago Bernabéu!”, festejou, empolgado. “O João está rodando sozinho por Madri. Só por isso já valeu. Acho que não ia demorar muito para ter um conflito na família se não saíssemos”, acrescentou, reiterando a tese de que fora necessário partir. Ao retornar de sua expedição, João trazia na mochila um par de meias do Real Madrid. Estava nas nuvens. O pai também.
Procurado por vários órgãos de imprensa, o deputado concedeu entrevistas numa das salas da sede madrilena da Anistia. “Por que agora, e por que deu certo?”, quis saber Óscar Gutiérrez, do El País, cuja edição do dia trazia na capa a ocupação das favelas da Rocinha e do Vidigal pela polícia, ocorrida na véspera na Zona Sul do Rio. Para Freixo, que respondia em um espanhol decente, bastou ligar o piloto automático. “O que me incomoda é a omissão do real motivo, é não esclarecer”, começou. “Claramente, a construção de um corredor de segurança na Zona Sul da cidade não segue critérios de um projeto de segurança pública, e sim de cidade para megaeventos. É o mapa da cidade olímpica: Jacarepaguá–Zona Sul–Zona Portuária–Maracanã. Só em Copacabana tem quatro UPPs, enquanto na Baixada só tem milicianos. Cidade segura não é a que tem muita polícia, e sim a que precisa de pouca, mas que tem muita escola, muita saúde.” A dissertação prosseguiu por um bom tempo.
A entrevista com Luis Tejero, do diário El Mundo, foi em português, pois o repórter tinha morado no Rio durante um ano e meio e retornara à Espanha poucos meses antes. Inicialmente seu jornal planejara manter um correspondente na cidade por um período de seis anos – da eleição de Dilma Rousseff, em 2010, até o final dos Jogos Olímpicos de 2016. Mas a carestia no Rio somada à crise econômica na Espanha abortaram o projeto. “Eu morava em Ipanema e pagava 3 200 reais de aluguel num apartamento ruim e pequeno. Aqui em Madri, pago menos e tenho um conforto incrível”, explicou Tejero.
Nas entrevistas, o tema da segurança pública no Rio sempre acabava desembocando no nó crucial: a atuação das milícias, mais corrosiva para as instituições do que o tráfico. “Não se trata de uma disputa entre o Estado e o que seria o poder paralelo do tráfico”, repetia o parlamentar. “No Rio, o poder paralelo é o próprio Estado, na figura das milícias. Se a gente aceita a narrativa de que está sendo travada uma guerra, e usa termos como conquista, batalha e Dia D, acaba aceitando os seus resultados de guerra”, acrescentou.
Na véspera de retornar ao Brasil, Freixo e Renata relembraram com gáudio cenas de um casamento – o deles, realizado em Lumiar, perto de Friburgo, região serrana do estado. A figura do oficiante, um pastor luterano que milita no PSOL, já era incomum: Mozart Noronha tem farta barba branca e rabo de cavalo que chega até a metade das costas. Formado em direito e mestre em teologia pela PUC, Mozart foi aprendendo a separar a fé da ideologia. Tanto assim que, como pastor da família do general Ernesto Geisel, oficiou o sepultamento do ex-presidente em 1996. No dia do casamento de Freixo, Mozart subiu a serra espremido no carro dos seguranças do deputado, que nunca tiveram companhia tão exótica.
Foi o primeiro matrimônio de Freixo com toque espiritual. Renata é kardecista e ele se declara sem religião, mas não ateu. Como Luan Santana e dom Tomás Balduíno, usa anel de tucum na mão direita. Quando casou no civil com a mãe de João, Freixo era um universitário de 21 anos. A namorada engravidou no terceiro mês do relacionamento e o casamento durou um ano e meio. O segundo casamento, com a mãe de Isadora, durou mais de quinze.
A festa em Lumiar custou menos de 12 mil reais, incluindo o vestido da noiva. Teve funk ao vivo, por gosto do noivo e por se mostrar obrigatório para um político que defende o reconhecimento da modalidade como bem cultural.
Na despedida em Madri, indagada sobre qual poderá vir a ser a vidraça mais frágil da candidatura do marido, a sra. Freixo, de 33 anos recém-completados, foi direta: “Eu, pois do lado dele ninguém vai encontrar nada. Marcelo é de uma integridade emocionante.” Renata trabalha há um ano na Câmara de Vereadores, como assessora de comunicação de Eliomar Coelho, do PSOL. Antes, teve passagens pela TV Bandeirantes, RedeTV!, Rádio Band e algumas assessorias. Trabalhou dois anos a serviço do governador Sérgio Cabral. Por via das dúvidas, o candidato já consultou três advogados. Todos garantem que o terreno é limpo. “Se ela trabalhasse na Assembleia, seria caso de nepotismo. Se alguém do Eliomar trabalhasse no meu gabinete, eu poderia ser acusado de nepotismo cruzado. Não é nem uma coisa nem outra. Se eu for eleito, é óbvio que Renata não vai continuar lá”, diz.
Foi a primeira e única vez em meses de acompanhamento que ouvi do candidato Marcelo Freixo, espontaneamente, a frase “Se eu for eleito”.
Dezembro de 2011_A volta ao Brasil em meados de novembro jogou Freixo numa rotina acelerada. Parlamentar que não falta à sessão e fica até o final (18h30), ele tinha uma campanha eleitoral para montar. E, sobretudo, mais uma CPI para concluir antes do recesso de final de ano. A complexa CPI das Armas consumira quase um ano de trabalho de Vinicius George e Paula Máiran, além de mobilizar meio gabinete. Para o deputado, essa CPI, cujo relatório de 258 páginas conseguiu ser finalizado e aprovado às vésperas do Natal, era um marco do qual queria se orgulhar. De resultado menos cintilante e apuração bem mais ingrata do que a CPI das Milícias, o levantamento feito gerou importantes precedentes.
Pela primeira vez na história do Rio de Janeiro, Exército, Polícia Federal, Polícia Civil e Justiça se sentaram na mesma mesa para falar do tráfico de armas. Nunca tinham feito uma reunião conjunta. Há dez anos nenhum grande traficante de armas é preso no estado.
Ao contrário da CPI das Milícias, que fora aprovada por unanimidade, mesmo que com dedos cruzados, a das Armas teve um voto contra – o do deputado Flávio Bolsonaro (PP), filho do deputado federal Jair Bolsonaro. “Foi um voto coerente por parte dele, até porque anda armado”, observou Freixo, que respeita o parlamentar de opiniões extremas pela atuação e constância nos trabalhos legislativos. “Não temos acordo, nosso olhar é muito diferente, mas o respeito. Ademais, o relatório não era meu, e sim fruto de diferenças”, explica. Sectário, definitivamente, Marcelo Freixo não é.
Compromissos acumulados devido à viagem acentuaram o afunilamento do tempo. O almoço por quilo, frequente, passou a ser diário. Freixo saía apressado pelos fundos do Anexo que desemboca numa ruela reservada, e andava apenas um quarteirão até o restaurante, sempre seguido pela escolta.
A ruela em questão é utilizada por duas tribos: a dos parlamentares e seus assessores, como corredor de acesso ao plenário, e a do enxame de seguranças que aguarda a saída de seus protegidos. A passagem leva o apelido de “Faixa de Gaza”. Ricardo Amaral e Silva, da escolta do deputado, explica: “Ali passa tudo de bom e de ruim. Em algum momento, quase todos os milicianos (policiais ou políticos) que foram presos já transitaram por ali. Se alguém quiser matar o Marcelo, será um policial ou ex-policial que já trafegou por essa faixa”, diz Ricardinho, como é chamado por todos, único segurança de Freixo que consente em ter a identidade revelada. Até porque seria inútil escondê-la: sua cabeleira e barba brancas, precoces para quem tem 51 anos, são a presença mais constante nas fotos externas do parlamentar. Ricardinho, que teria gostado de ser zootécnico, está há quatro anos a serviço do chefe.
Numa quinta-feira de calor acachapante, Freixo seguiu seu roteiro habitual: escapada vapt-vupt até o mezanino do barulhento Buffê a Quilo, em frente ao Palácio Tiradentes, seguida de goles de chá-mate para combater a sonolência que costuma derrubá-lo depois do almoço. Após a sessão no plenário, ele decidiu trabalhar até mais tarde. Isa, a filha adolescente, viera passar o fim de semana com o pai e se distraía na mesa vazia de Vinicius George. Por volta das 19h30, o chefe de gabinete de Paulo Mello, o presidente da Casa, entrou na sala com um fax encaminhado pela segurança interna da Alerj. Em papel timbrado da Subsecretaria de Inteligência classificado como “Urgente Urgentíssimo”, e endereçado ao coordenador de Segurança Institucional, o ofício 670/11-007/S120, de 15 de dezembro de 2011, da SSINTE/SESEG dizia:
Cumprimentando-o, venho por meio do presente expediente informar a V. Sa. que denúncia oriunda da Ouvidoria Geral do Ministério Público dá conta de que em 11 de Dez 2011 (domingo) uma reunião de “milicianos” teria ocorrido no bairro de Rocha Miranda, Rio de Janeiro/RJ, com o objetivo de planejar as mortes do Deputado Estadual MARCELO FREIXO e da Promotora de Justiça CARMEN ELIZA BASTOS DE CARVALHO, da 3ª Câmara de Justiça.
A reunião teria sido liderada pelo ex-vereador FAUSTO LOURENÇO ALVES, em companhia do policial civil EVALDO MARCOS ABAETÉ (ainda não identificado) e do Sgt PM MELCHISEDECH MOFATO ARRUDA, do BPChq.
Durante a citada reunião, teria sido articulada a contratação de um “matador de aluguel” de nome “ALUIZIO” (ainda não identificado) que seria o autor da ação criminosa e receberia para tal a quantia de R$ 1 500 000,00 (um milhão e quinhentos mil reais).
O atentado contra o citado deputado ocorreria em 16 de Dez 2011 (sexta-feira), quando ele fosse almoçar no restaurante localizado na rua Primeiro de Março, em frente à Alerj.
Atenciosamente, FÁBIO GALVÃO. No impedimento: DENIS DA SILVA GOUVEIA.
Em outras palavras, começava tudo de novo.
O ex-vereador citado não fez parte da lista de milicianos denunciados pela CPI, o que levava a crer que o nome de Freixo tenha sido incluído para embaralhar as coisas. Mas era a primeira vez que havia referência a um local por ele frequentado. “Liguei para o Mariano ali mesmo, na frente da minha filha. Não consegui localizá-lo, mas falei com o Galvão. Foi um diálogo maluco”, conta ele.
– Como assim, qual documento?
– O da sua subsecretaria.
– Não estou sabendo, quem o assina?
– Denis.
– Ah, o meu sub. Mas essa informação já data de onze dias atrás!
“Como é possível que não me liguem? Para que, então, fazer um ofício, se nada serve para nada?”, irritou-se o parlamentar.
Na equipe de Freixo prevalece a opinião de que Beltrame e Galvão são sérios e que a Secretaria está infiltrada de pessoas politicamente leais ao governador Sérgio Cabral e/ou ao prefeito Eduardo Paes. Por via das dúvidas, no dia seguinte, Galvão ordenou uma varredura em frente ao restaurante.
As relações entre Beltrame e Freixo são de respeito mútuo. “Já trocamos farpas em algumas ocasiões, mas o considero um homem sincero, honesto e honrado”, diz o deputado. “Ele não se envolve nos grandes esquemas, sabe separar as coisas. A meu ver seria mais do que legítimo ele ser candidato ao governo do Estado.” No encontro que tiveram mano a mano para zerar várias queixas, Beltrame se despediu do parlamentar com um conselho: “Marcelo, vamos continuar a nos falar, mas não por telefone, pois o seu tem mais grampo do que varal de favela.”
A mágoa e a preocupação permanentes de Freixo vêm do fato de ser mantido no escuro em relação a providências tomadas (ou não) pelos órgãos de segurança para os quais cada denúncia contra ele é encaminhada. “Nunca me disseram nada até hoje. Não é possível que seja esse o melhor padrão de funcionamento em relação a quem recebe ameaças. Concordo que há pouco a fazer com denúncias genéricas e que 95% delas não procedam. Mas me basta que 1% proceda para assustar.”
Mais do que ninguém, Beltrame sabe o que é ser vítima de ameaças. “Estou com umas dezoito acumuladas”, disse, numa tarde de fevereiro passado, em seu gabinete. Sua vantagem sobre Freixo é conhecer o que é feito das ameaças que recebe. Beltrame conta que a proporção de maluquices é muito alta. Poucos dias antes, recebera uma ameaça dizendo que, quando embicasse o carro na rampa de acesso à garagem, seria atingido por um tiro. “O importante é puxar o novelo, separar o que é cenário do que é conclusivo. Muitas delas são mais assustadoras do que ameaçadoras”, explicou.
Do sofá em que estava sentado, Beltrame apontou para o fundo da sala. “Quem senta naquela cadeira ali, a de secretário de Segurança do Rio, sabe que é briga de cachorro grande. Milícias formam uma ditadura”, diz ele, sugerindo que no interior dos bandos criminosos reinam práticas que vigoraram durante o regime militar no Brasil. Ele explica que todos os Disque-Denúncia são jogados numa rede que precisa ser trabalhada. “VIP, aqui, significa Verificação Interna de Procedimento, a análise preliminar do que tem fundamento. Eu não quero mais saber quem ordenou, preciso saber quem vai executar o serviço.” O secretário tem certeza do ódio da milícia ao trabalho de Freixo. “Ele tem, sim, que levar as ameaças a sério, mexeu com caras que são piores do que o tráfico.”
A saída do prédio da Central constitui quase uma gincana para pedestres. Entre pontos de ônibus que formigam, carros que disputam espaço a buzinadas e motos flechando no espaço que sobra, não é fácil se orientar.
– Por favor, qual o melhor lugar parase pegar um taxi por aqui?, pergunta a repórter, desambientada, a dois policiais que faziam ponto na esquina. Ao fundo, o imponente prédio do antigo Ministério do Exército, hoje Comando Militar do Leste.
A resposta veio cortês e simpática:
– A senhora quer dizer “qual o lugar menos perigoso por aqui”, não é?
Naquela tarde, a Secretaria de Segurança havia feito uma detalhada apresentação dos indicadores da criminalidade no Rio em 2011. Foram considerados animadores.
Indagada sobre quem iria à reunião daquela noite de dezembro em sua residência, a anfitriã saiu-se com uma boutade: “Não tenho a menor ideia. A minha casa já virou aparelho.” O casarão de três andares erguido no Alto da Gávea tem vista cenográfica sobre a cidade e a Floresta da Tijuca como quintal. A anfitriã é a advogada carioca Tatiana Saboya, casada com o jornalista Marcus Miranda. Nenhum dos dois votou em Freixo na primeira vez. Mas desde que foram apresentados ao deputado por Pedro Strozenberg, o roliço secretário-executivo do Iser e parceiro decisivo de todas as campanhas e mandatos de Freixo, tornaram-se cabos eleitorais, amigos e mecenas do candidato.
Era a terceira reunião embrionária para a construção de um programa de campanha. Entre os doze presentes estavam, além de Edu e Strozenberg, o economista Pedro Abramo, o antropólogo e coautor dos livros Elite da Tropa 1 e 2 Luiz Eduardo Soares, o geógrafo Jailson de Souza e Silva (UFF), a educadora Eliana Souza e a socióloga e ex-diretora do sistema prisional do Rio de Janeiro, Julita Lemgruber. Freixo estava exausto. Tivera um dia duro, mas queria se manter atento às opiniões e sugestões bastante distintas do grupo. “Isso aqui não é um projeto de anticandidatura”, explicou aos que não o conheciam. “Também não é um projeto para fortalecer o PSOL. O mais importante é debatermos a concepção de cidade que está aí. Para isso é preciso chegarmos ao segundo turno. Se tiver um segundo turno, zera tudo”, disse.
Ao término da reunião, a constatação já sabida de uma ausência gritante: não havia ali nenhum representante do mundo empresarial. Até as cadeiras do gabinete do deputado sabem que esse é o grande buraco negro da campanha. Mesmo o segurança Ricardinho especula a respeito: “O PSOL não gosta de se aproximar de empresário. Não consigo entender como alguém pode pensar em administrar uma cidade sem se aproximar do empresariado. Acho impossível, mas…”, conclui, sem concluir.
Freixo sabe que o eleitor que votou nele para deputado não será, automaticamente, seu eleitor para prefeito. “Seria de uma inconsequência e infantilidade atrozes eu pensar numa gestão da cidade sem o empresariado. Mas também não dá para determinado setor fazer o que bem entende do Rio de Janeiro”, argumenta. A seu ver, os governos estadual e municipal da aliança Sérgio Cabral–Eduardo Paes desvirtuaram o papel do poder público, transformando-o numa eficiente agência viabilizadora dos grandes negócios privados da cidade. “Qual a lógica da Barcas S.A. receber 100% de isenção sobre o ICMS? Por que as concessionárias de transporte não pagam impostos? Qual o papel do prefeito na malha do metrô?”, indaga. “São essas coisas que eu quero discutir e isso não significa ser contra o empresariado, muito pelo contrário”, acrescenta.
Em dezembro, o único voluntário que acreditava poder construir uma ponte entre Freixo e o empresariado carioca era um cineasta. José Padilha, o ebuliente diretor de Tropa de Elite 1 e 2, que se inspirou em Freixo para compor o personagem do professor Fraga, fala em profusão, mesmo durante um almoço. “Marcelo, para mim, é algo muito raro. É um cara que não participa dos processos tradicionais da política brasileira e consegue se eleger. Aparece um em cada cinquenta anos. Mesmo que não emplaque, ele ganha uma tremenda visibilidade. E Marcelo ter visibilidade é bom para a cidade. Vou achar muito legal tê-lo num debate sabendo tudo o que ele sabe e dizendo para as pessoas o que elas não sabem que acontece no governo estadual e municipal do Rio de Janeiro. Vou conseguir sentá-lo com X e Y”, assegurou três meses atrás, pedindo reserva quanto aos nomes.
Padilha considera Eduardo Paes extremamente inteligente e trabalhador – a segunda opinião é compartilhada por Freixo e seu entourage. Chama o prefeito pelo apelido. “Eu gosto do Duda, o considero um político interessante, mas ele fez uma escolha que pode atrapalhá-lo no futuro [a aliança com Sérgio Cabral para derrotar Fernando Gabeira, em 2008]. O destino, agora, lhe armou um acaso: na hora em que ele fez uma escolha pragmática, aparece o Freixo para lhe apontar o dedo. Para o nosso espírito de porco, acho essa situação genial.”
Detalhe: Padilha está há seis meses nos Estados Unidos e Canadá. Foi contratado para criar uma nova série de filmes Robocop*. Numa rápida passagem pelo Rio, no mês passado, admitiu ainda não ter feito grandes conquistas para o seu candidato na área empresarial.
É por essas e outras que Freixo aposta mais no que está a seu alcance: “Não podemos depender de dinheiro. Vamos ter que ter gente. E gente na rua”, repete, como um mantra.
JANEIRO de 2012_“Quando eu cheguei aqui, não sabia nem o que era o pequeno expediente nem como votava”, relembra Freixo, referindo-se ao seu desembarque como calouro na Alerj. Recebera míseros 13 547 votos no pleito realizado em 1º de outubro de 2006, ultimíssimo da lista dos que entraram. “Eu não tinha bancada, não tinha nada. Na reunião de líderes eu era líder de mim mesmo por ser o único representante do PSOL.”
Ao ser informado de que a Alerj oferecia um curso de história do legislativo, inscreveu-se. Chegou a participar de uma visita guiada com estudantes. Mesmo assim, quando começaram as sessões da primeira legislatura, achou que fosse enlouquecer. Apesar de ter assessorado a equipe da Comissão dos Direitos Humanos para o então deputado estadual do PT, Chico Alencar, era visto como um peixe fora d’água.
Daí o espanto dos pares quando o calouro Freixo irrompeu no Plenário Barbosa Lima Sobrinho arriscando alto logo no seu primeiríssimo dia de trabalho na Casa. A lembrança daquele 5 de fevereiro de 2007, quando apresentou o requerimento para a constituição de uma CPI destinada a investigar a ação das milícias, é breve: “Fui, literalmente, motivo de gargalhadas e escárnio.” Vinicius George também não esquece: “Riram da gente. Sacanearam. Sequer foi a voto. O Álvaro Lins era deputado [foi cassado, está em liberdade provisória], o Natalino era deputado [Natalino Guimarães, preso e condenado em primeira instância por formação de qudrilha]. O Girão [Cristiano Girão, ex-vereador e miliciano condenado a catorze anos, cabe recurso] era assessor especial da então governadora Rosinha Garotinho”, lembra Vinicius.
Durante um ano e meio a coisa ficou emperrada até que, em maio de 2008, dois jornalistas de O Dia foram brutalizados por milicianos. A pressão externa fez com que a CPI fosse instalada. O problema tinha atravessado o túnel, como se diz no Rio quando algo da Zona Norte passa a reverberar também na Zona Sul. Como ninguém mais quisesse assinar a autoria da CPI, coube a Freixo, por regulamento, também presidi-la. Ele, Vinicius George e o resto da equipe mobilizada tiveram apenas seis meses para trabalhar. Por fim, a poucos dias do Natal de 2008, o relatório final de 282 páginas foi aprovado. Resultado: perto de mil investigados, 531 presos, 226 indiciados.
“O grande mérito da CPI foi mudar a opinião pública”, prosseguiu Freixo, sentado no plenário vazio da Assembleia, durante o recesso, enquanto era fotografado. “Milícia é um embrião de máfia, é a primeira organização criminosa com um projeto claro de poder e…” A narrativa é interrompida por um dos seguranças da Casa, de terno e aparelho de comunicação ao ouvido.
– Desculpe, deputado.
– Oi?
– Eles trabalham para o senhor?
– Quem?
O segurança de terno aponta para dois vultos sentados lado a lado na galeria deserta do 1º andar.
– São meus seguranças, informa Freixo, que sequer os tinha visto lá no alto.
– Ah, obrigado.
Célia Barbosa de Albuquerque, braço direito e esquerdo de Freixo no gabinete, tem lembrança quase saudosa daquela primeira CPI. Filha de Arnaldo Augusto de Albuquerque, um petista histórico, cuja casa em Duque de Caxias funcionava como sede informal do “PT igreja”, ela entrou para a Alerj em 1991. Foi assessora parlamentar de vários deputados, mas andava desencantada. Certa manhã de 2006 recebeu um telefonema de Eduardo Alves, o Edu, a quem não via há dezesseis anos. Durante um almoço que acabou durando sete horas, o amigo lhe falou com tamanha convicção da campanha para eleger o desconhecido Marcelo Freixo que Célia capitulou, embora não fosse do PSOL.
E que primeira impressão lhe causou a figura? “Ele era meio franciscano, com aquele anelzinho de tucum. Perguntei se era de alguma igreja”, recorda a assessora. “Na primeira reunião depois da vitória, a equipe chegou à conclusão de que, se conseguíssemos aprovar uma única lei até o final do mandato, umazinha só, seria um sonho. CPI, então, pensei, nem em sonho. Deputado único de partido fazer CPI? Isso não existe.” Freixo emplacou duas até agora.
Durante o recesso de final de ano, ele viajou para uma praia em Santa Catarina. Foi com Renata e levou uma pilha de estudos, livros, monografias e análises sobre trânsito, saúde pública, educação, movimentos sociais, urbanismo. Até o livreto Ramos, Olaria & Penha, da coleção Bairros do Rio (incentivo fiscal da prefeitura da era Cesar Maia), entrou na mala. “Estou me precavendo. Vão tentar dizer que não sou carioca e não sou mesmo. Nasci em São Gonçalo e minha história é em Niterói – infância, juventude e vida até anteontem. Só que minha militância nunca foi confinada a Niterói e meus votos também não: 65% da minha votação na eleição passada vem da cidade do Rio”, observa ele. “Tenho uma identidade legítima com o Rio. Não é uma história parlamentar nem de política partidária, e sim de militância em movimentos sociais, o que é muito maior. Estou tranquilo quanto a isso.”
Em 1996, quando integrava a direção do sindicato dos professores de escolas particulares, chegou a se candidatar a vereador em Niterói. Lembra com afeto da empreitada. “Fizemos um único panfleto, xerocado tantas vezes que minha foto nem aparecia mais, de tão esmaecida. Brincávamos dizendo que era uma candidatura Ghost, pois só aparecia uma mancha branca. Mas não era um projeto, era para levantar a bandeira da educação.” Conseguiu 1 700 votos.
Freixo considera Eduardo Paes “hábil”, porém não aceita o tapume institucional que, no seu entender, protege o prefeito. “Na crise na segurança pública, o Paes some, não é com ele”, aponta. “Problemas com Barcas, metrô e SuperVia, o prefeito finge que não são com ele. De fato, as concessões são estatais, mas o público que as utiliza trabalha na cidade dele.”
Fevereiro de 2012_O primeiro “comício doméstico” do candidato fora marcado para as seis da tarde de um sábado escaldante de véspera de Carnaval. Devido à proibição de levar a sua candidatura para as ruas antes da abertura da campanha, em julho, a solução é ir se reunindo em ambientes fechados e privados.
Três tribos de jovens da Zona Sul chegaram ao aprazível “aparelho” da Gávea e foram se acomodando na área da piscina. Um grupo era de ex-alunos do Ceat, escola privada com estatuto de cooperativa e reputação de excelência; outro, do curso de Arte e Design da PUC; o terceiro, de alunos da UFRJ. O candidato se atrasou meia hora – embrenhara-se num dos blocos carnavalescos de sua predileção.
Vendo a idade da plateia, Freixo avisou logo que tinha aprendido a usar o Twitter só três meses antes. E partiu para a primeira estocada: Cláudio Lopes, o procurador-geral de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, não deveria ter passado o Réveillon na casa do prefeito Eduardo Paes. Assim como o governador Sérgio Cabral não deveria circular em jatinhos emprestados por Eike Batista – sobretudo depois de lhe conceder nova isenção de impostos em alguns negócios.
Freixo descreveu sua candidatura como uma vitória pedagógica garantida, mesmo na hipótese de derrota eleitoral. “Não quero discutir com o Paes quem de nós é o melhor síndico”, pontua. Para quem o ouvia pela primeira vez, esclareceu que não pretende fazer tábula rasa de tudo o que conseguiu ser realizado. “Seria insano dizer que as UPPs não melhoraram a vida de quem mora lá. Ninguém tem o direito de dizer a esses moradores: ‘Mas vocês não estão entendendo, a realidade é mais complexa…’ É fato que houve melhoras, ponto. Os moradores repetem isso para quem quiser ouvir. O que nos cabe é debater o mapa dessas UPPs, cujo traçado não foi discutido com a sociedade e que segue a lógica da cidade dos grandes eventos.”
A primeira pergunta veio de um formando em comunicação pela UFRJ, que pediu para não ser identificado, pois trabalha na prefeitura de Paes. Ele queria saber como Freixo pretendia enfrentar as privatizações e interesses consolidados das construtoras.
– Ainda não sei – respondeu o candidato, sem traço de desconforto.
Indagado como pretende fazer campanha em áreas controladas pela milícia, Freixo deliciou a plateia com uma petite histoire. “Em época eleitoral, nas favelas, tem mais gente contratada para distribuir santinhos do que para votar. O truque, na eleição passada: ganhar os panfleteiros após a hora do expediente.” Segundo o deputado, vários se prontificaram a entregar santinhos do candidato do PSOL, sem ônus, após cumprirem o horário contratado pelo candidato pagante.
Um dos temas que mais apaixona Freixo, porém, caiu no vazio: a necessidade de interromper a sistemática eliminação de jovens pobres. “Este é um problema que permanece invisível, apesar da queda no índice de homicídios”, denuncia ele. Os números lhe dão razão. Segundo o Mapa da Violência (2010) do Instituto Sangari, a taxa de homicídios no estado do Rio de Janeiro é de 26,2 por grupo de 100 mil habitantes, e a de jovens de 15 a 24 anos é de 52,5 homicídios. Quando o corte se afunila no segmento jovem + negro, o índice salta para perto de 80 homicídios. A Organização das Nações Unidas considera aceitável apenas taxas de menos de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes. Freixo havia sido entrevistado pelo correspondente do diário japonês Yomiuri Shimbun (14,5 milhões de exemplares, duas edições diárias), um mês antes. O intérprete teve dificuldade em convencer o jornalista Masakazu Hamasuna de que ouvira bem. No Japão, a taxa de homicídios é de menos de 1 morto para cada 100 mil habitantes.
Freixo se desculpa por estar descalço, de bermuda e camiseta ao abrir a porta do apartamento que divide com a mulher e a cunhada. Havia acabado de chegar da academia, a um quarteirão dali, e desfrutava da rara manhã pouco atabalhoada da semana. A véspera tinha sido puxada: ginástica das 6 às 7h30, inglês das 8 às 9 horas e depois direto até Bangu para integrar a comissão parlamentar multipartidária que foi inspecionar as condições prisionais dos grevistas da PM.
“Só estudei inglês num colégio particular que minha mãe, funcionária do ensino público, conseguiu pagar durante um tempo. Meus pais não tinham a menor condição de dar mais nada”, conta ele, enquanto lavava a louça do café da manhã com luvas de plástico amarelonas. “A possibilidade de estudar línguas era completamente fora de nossa realidade e só agora estou tentando resgatar algumas coisas.” O filho João já vive em outra realidade: formou-se pela Cultura Inglesa há dois anos. E a mãe, aposentada do ensino público, por ironia, trabalha como funcionária administrativa num curso de idiomas do Centro de Niterói.
Foi Renata quem conseguiu encontrar um curso de inglês no Leblon com preços de não Leblon – 240 reais ao mês. E assim, desde o início de fevereiro, o casal tem duas aulas semanais. Por enquanto são os únicos alunos do horário matinal, o que Freixo acha bom para quebrar o bloqueio inicial.
Freixo nunca teve a vida fácil. Em determinada época, fazia faculdade (cursou dois anos de economia e formou-se em história pela Universidade Federal Fluminense), era funcionário administrativo no Colégio Itapuca e professor na mesma escola. “Eu chegava às 6h30, abria os portões, fazia café e cuidava da parte administrativa. Depois, começava a dar aulas. Lembro-me de uma marmita térmica que minha mãe comprou – o máximo, os pratos não se misturavam!”, rememora. O Itapuca foi cenário da única demissão de sua vida. Conta que fez greve como professor e foi mandado embora como funcionário. Por solidariedade, professores de outro colégio, o São José, abriram mão de suas turmas para ele poder dar aulas ali. “Mas não tenho nenhum lamento”, conclui, guardando a louça no armário e os mantimentos na geladeira.
Março de 2012_Já é tradição: a menos que chova ou seja feriado, todas as sextas-feiras do mês o PSOL carioca faz em praça pública o que chama de “prestação de contas”. A coisa começa em pleno formigueiro da hora do almoço, com uma mesa portátil sendo armada na praça onde a rua São José e a avenida Rio Branco se encontram, no centrão do Rio.
De início ninguém dá atenção ao militante de microfone, que convida os transeuntes a se interessarem pelas publicações expostas na mesinha. Como já disse Freixo, “a única publicação do PSOL que o pessoal briga para conseguir é o nosso guia dos blocos de rua. Em geral, é o contrário, somos nós tentando botar algum folheto na mão das pessoas”.
Um banquinho de madeira serve de palanque para os oradores do dia não sumirem na multidão. Para os militantes que vão chegando de vários cantos da cidade, não é surpresa encontrar ali as figuras mais graúdas do PSOL – os deputados federais Chico Alencar e Jean Wyllis, vindos de Brasília, os vereadores cariocas Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro, a deputada estadual Janira Rocha, o jornalista e político Milton Temer.
Pouco a pouco, o número de curiosos em semicírculo beira a centena. Entre eles, a jovem Juliana Agostinho da Costa, de 16 anos, uniforme azul e branco, livros escolares na bolsa. Tinha saído do Colégio Pedro II e ia pegar a barca para Niterói, onde mora. Filha de economista e professora, parou ao reconhecer que era Freixo quem falava ao microfone. “Ele tem toda uma história, meus pais o conhecem, e fiquei curiosa para ver como ele é”, explicou. O quarentão Eduardo Pedrosa, economista do Banco do Brasil, a caminho do almoço, gostou de se deparar com Freixo, que considera um político confiável, “independente do partido”.
O candidato a prefeito de uma só legenda vai enfrentar o prefeito que tem quase todas. O DNA do PSOL mais afugenta do que agrega, mas é essa agremiação, fundada por militantes do PT contrariados com o pragmatismo de Luiz Inácio Lula da Silva ainda no seu primeiro mandato presidencial, que dá latitude a Freixo.
“O PSOL tem problemas? Tem. Tem limitações? Tem. Mas é o partido que me permite ser quem sou. Em nenhum outro lugar eu conseguiria produzir o que produzo. Posso elaborar um programa com a sociedade civil. Que outro partido permitiria isso?”, pondera o candidato.
Um exemplo didático de como funcionam a cabeça e o coração militante de Marcelo Freixo pode ser encontrado num episódio que ainda arde um pouco. A personagem central da história se chama Isabel Mansur. Niteroiense de 32 anos, formada em ciências sociais e quadro altamente qualificado da ONG Justiça Global, Isabel é Freixo desde criança. Literalmente. Filha da diretora da Escola Nossa, unidade de ensino fundada por pais e professores, Isabel aprendeu a gostar de história aos 11 anos, quando o jovem professor petista foi contratado para dar aula para a 5ª série.
Passam-se alguns anos e o professor Freixo volta a ter a mesma aluna, já adolescente, em outra escola. Na efervescência do movimento estudantil do final dos anos Collor, Isabel se filiou ao PT e, com o título de eleitor novinho em folha, participou da campanha do candidato a vereador número 13 613.
O terceiro encontro de trajetórias ocorreu logo após sua formatura, quando Freixo a chamou para o Justiça Global. Ela se tornou monitora das oficinas para familiares de presos, por ele criadas. Trabalharam juntos durante quatro anos. Isabel foi a primeira dos dois a sair do PT, já no primeiro ano do governo Lula, para fundar o PSOL no Rio de Janeiro. Freixo faria o mesmo movimento em 2005. Com a eleição em 2006, a ex-aluna que concluía o mestrado aceitou adiar o doutorado para trabalhar em seu gabinete durante os dois primeiros anos. Finalmente, em dezembro de 2010, concorreu a uma das seis vagas no pioneiro Mecanismo Estadual de Combate e Prevenção à Tortura, órgão formado por quinze entidades representantes dos poderes públicos e da sociedade civil. Marcelo Freixo fora um dos mais dedicados proponentes do órgão e tinha direito a voto.
“Foi um momento difícil da nossa relação”, contou Isabel. “Marcelo achou importante não votar em mim por eu ser do PSOL, para não misturar as coisas na Assembleia. Isso me pegou de surpresa. Eu não cogitava da hipótese de ele não votar em mim.” Por um capricho do acaso, o casamento do deputado estava marcado para dois dias depois, e Isabel seria a madrinha. “Passei a noite ponderando se eu ia ou não e fiquei dois dias sem atender ao telefone. Acabou que eu fui e fizemos as pazes”, diz.
Hoje a ex-aluna faz uma leitura mais serena do episódio. “Entendi os motivos e a postura dele foi correta. Sei que a política se impõe sobre a relação pessoal, mas minha expectativa era de que ele não desumanizasse as relações. Acho que ele faz um grande esforço para isso e esse é um dos sofrimentos da pessoa Marcelo.” Indagado a respeito do episódio, Freixo responde: “Faria igual se fosse hoje. Tenho amor e infinito respeito por Bel, fazemos parte da trajetória um do outro. Mas muitas vezes batemos de frente e isso é bom.”
Freixo não costuma falar mal do PT, diz que tem coisa mais importante para discutir. Ainda assim, quando perguntado se concordou com a cautelosa defesa de José Dirceu feita por Chico Alencar, no início* da crise do mensalão, ele não se esquivou: “Acho que não se justifica, mas não enxergo o PT pela falha de seus dirigentes. Quando falo que não virei um antipetista é porque não se pode apagar a história do partido.”
Nos dois anos em que cursou economia,enfiou a cara nos pensadores marxistas e pinçou Antonio Gramsci como fonte de reflexão constante. Desistira da leitura intensiva de Karl Marx depois de fazer um curso de filosofia com sua turma de amigos de adolescência. “Minha leitura nunca foi em função da doutrina partidária nem da lógica militante.” Entre os livros que já contrabandeou de Niterói para o Leblon e se amontoam numa pequena estante do quarto, os autores se misturam: Tzvetan Todorov, Zygmunt Bauman, Perry Anderson, Eric Hobsbawm, Raymundo Faoro, Hannah Arendt, Isaac Deutscher, Machado de Assis, Clarice Lispector, Luiz Eduardo Soares. Todos trazem anotações do leitor.
Ficção e realidade se fundiram na vida pública de Freixo de forma indelével desde 2010. Quando surgiu a ideia de se tornar personagem de um novo filme do diretor que fizera Tropa de Elite, temeu ser odiado para sempre. O filme fez com que espectadores em várias salas aplaudissem cenas com sessões de tortura policial. A esquerda havia considerado o filme tóxico. “Vou arriscar, o Padilha não é fascista”, decidiu Freixo, que havia participado de dezenas de debates com o cineasta. E assim, Marcelo Freixo inspirou o personagem Diogo Fraga, o professor de história e depois deputado estadual de Tropa de Elite 2. “Eu estava aflitíssimo no dia da estreia no Festival de Paulínia, desesperado mesmo”, ele diz.
– E aí?, perguntou por telefone ao ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel, inspirador do capitão – e depois coronel – Nascimento, interpretado por Wagner Moura. Pimentel, que hoje é comentarista de segurança pública da Rede Globo, estava presente na estreia em Paulínia.
– Uma porrada, disse.
Desde então, 11,4 milhões de pessoas assistiram ao filme.
Dois meses atrás, na saída da cerimônia de entrega dos prêmios Orilaxé 2012, do AfroReggae, o deputado foi abordado por um jovem desconhecido:
– É você o verdadeiro Fraga?
– Não, sou o verdadeiro Marcelo Freixo.
* Correções em relação à edição impressa
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