Na infância, Edinho não gostava de comentar a profissão do pai. “Tinha vergonha de falar que ele era jogador de futebol”, porque, nos Estados Unidos, a imagem predominante era a de um esporte de mulheres. Quando se mudou para o Brasil, virou “não uma pessoa própria, mas o filho de alguém” FOTO: EGBERTO NOGUEIRA
O filho de Rosemeri
Depois da acusação de tráfico de drogas e de duas prisões, o ex-goleiro e atual assistente técnico do Santos se escora na família para devolver a normalidade à sua rotina
Fábio Fujita | Edição 34, Julho 2009
Faltam dez minutos para o início do treino, marcado para as 16 horas no Centro de Treinamento Rei Pelé, em Santos. É a quarta-feira que antecede o segundo jogo da decisão do Campeonato Paulista contra o Corinthians. Um pequeno grupo de atletas se organiza em duplas no gramado para disputas de futevôlei. Edinho entra quando uma dupla é eliminada. Não fosse pelo uniforme azul, padrão da comissão técnica, Edinho poderia ser confundido com um dos atletas, que vestem branco. Ex-goleiro, ele demonstra habilidade incomum com os pés. A disputa é acirrada. No ponto derradeiro, o parceiro escora e Edinho, fulminante, corta de cabeça e faz o ponto. Os derrotados bufam e Edinho vibra.
Edson Cholbi do Nascimento, o Edinho, começou como auxiliar do preparador de goleiros do Santos em fevereiro de 2007 e virou auxiliar técnico do time dois anos depois. Sonha em chegar a ser treinador. O que mais chama a atenção nele é seu desprendimento entre os jogadores. Parece um deles. Até pela forma física: mantém o mesmo peso de quando jogava, 82 quilos, e não aparenta já ter chegado aos 38 anos. Na gíria do futebol, é um “cavalo”: forte e competitivo.
O técnico Vagner Mancini divide os atletas em quatro grupos de seis. Como só há 23 atletas disponíveis, Edinho é chamado para completar um sexteto falho. Não compromete a qualidade do jogo. Corre, chuta, divide, orienta, grita. Transpirando, me explica que, dos três auxiliares de Mancini, só ele mesmo mantém o vigor físico necessário para encarar aquele tipo de coletivo, realizado em campo reduzido.
Edinho diz que o futebol entrou na sua vida por decisão sua, e não como herança da cadeia genética que teria começado com o avô, Dondinho, que teve a carreira profissional precocemente interrompida por uma lesão. “Muita gente imagina: ‘Ah, lógico, o Edinho jogava porque o pai dele foi jogador'”, ele disse. “Mas o meu avô foi jogador, meus três tios foram jogadores, meu pai foi jogador, todos os homens da minha família foram jogadores.”
Edinho não tem lembranças do pai com a mítica camisa 10 do Santos. Ele se mudou com a família para os Estados Unidos aos 4 anos, em 1974, quando o pai assinou contrato com o Cosmos. Assim, é com a camisa verde-esmeralda da equipe americana que Edinho guarda as únicas lembranças de Pelé como jogador profissional.
Edinho começou a jogar futebol na escola, por volta dos 6 anos de idade. “Era o esporte que eu conhecia”, justificou. Mas quase nunca havia jogo. As crianças limitavam-se a correr desordenadamente em busca da bola. Era como se Edinho, que jogava na linha, fosse o único com alguma noção do esporte, e os demais não passassem de café com leite. O futebol – ou, no caso, o soccer – era pouquíssimo jogado nos Estados Unidos. A ida de Pelé para o Cosmos servia, justamente, como um primeiro esforço de divulgação, no país, do esporte mais popular do mundo. Sem ter com quem jogar, Edinho pendurou as chuteiras por mais de dez anos.
Dentro de casa, naqueles primeiros anos nos Estados Unidos, as coisas também não iam nada bem. Se não chegavam a ser recorrentes, os desentendimentos entre Pelé e a mulher, Rosemeri, deixaram marcas nos filhos, Edinho e Kelly Cristina, a primogênita. “Lembro de umas poucas discussões, porque ele geralmente chegava depois que a gente já tinha ido dormir”, disse Edinho. “Aí ela ficava meio chateada, ele ficava meio sumido.”
O casal já saíra atritado do Brasil e os conflitos não se resolveram no novo país. A separação, que viria em 1978 – ano em que nasceu a caçula do casal, Jennifer –, não foi nada amigável. Mas hoje Rosemeri e Pelé têm um bom relacionamento. Se quando os pais estavam juntos a presença de Pelé era rara em casa, a partir da separação o distanciamento se aprofundou. Perguntei a Edinho qual a lembrança mais forte que ele guarda do pai na infância. Ele respondeu “saudades” e fez uma longa pausa antes de completar: “Quando lembro a minha infância e penso no meu pai, geralmente eu estava com saudades dele.”
Edinho e Kelly ficaram com a mãe e se mudaram para uma nova casa, em Nova York, porque Rosemeri queria lhes proporcionar uma formação americana. “A oportunidade de conhecer outras culturas, de desenvolver a tolerância por outras religiões e nacionalidades é importante para um jovem”, ela me explicou. Quando se separou de Pelé, Rosemeri passou por outros grandes problemas. Perdeu o pai na mesma época, e não pôde sequer vir para o enterro porque estava com o visto de permanência prestes a vencer e ficou com receio de não poder voltar logo aos Estados Unidos para cuidar dos filhos. Pouco depois, também perdeu a mãe e, de novo, teve de cumprir o luto a distância. “Não há como medir o débito que eu e minhas irmãs temos com ela, por ter sacrificado a vida dela por nós”, disse Edinho. “Minha mãe também ganha presente de Dia dos Pais.”
Tudo isso acabou sendo importante para que Edinho desenvolvesse precocemente o senso de independência. Kelly Cristina lembrou que, nos primeiros dias no colégio americano, o irmão, meio assustado, fugia para a sala dela toda vez que podia. Mas acha que ele não teve maiores dificuldades para se adaptar e fazer amizades: “O Edinho é muito carismático, as pessoas gostam dele rapidinho.” Ele teve uma infância e adolescência de uma pessoa comum, sem deslumbramento. “Por isso também sou tão grato à minha mãe: se tivesse sido criado no Brasil, ou em qualquer outro país, eu sempre seria o ‘filho do Rei’, e sofreria os preconceitos que ainda sofro – mas hoje sei assimilar”, disse Edinho.
Aos 13 anos, se deu conta de que, sozinho, podia arrumar o dinheirinho de que precisava para levar as meninas ao cinema. Quando queria um novo par de tênis, calculava quantas semanas teria de trabalhar para consegui-lo. Fez entregas de pizza e vendeu revistas de banca, mas a melhor experiência foi quando trabalhou numa delicatéssen. Lavava pratos durante o dia e limpava a cozinha de noite, preparando a loja para o dia seguinte. “E sempre saíam uns cookies gourmet, umas massas fresquinhas que a gente levava para casa. Comia bem demais. Tenho saudades.” Certa vez, um colega do colégio lhe perguntou se queria provar maconha. Ele quis. Passou a fumar ocasionalmente.
Edinho e a irmã Kelly, a essa altura, misturavam idiomas. Diziam frases como: “Esqueci minha knapsack no carro. Onde a mamãe ‘parqueou’?” Kelly lembrou que o irmão chegou aos Estados Unidos sem ter aprendido o vocabulário mínimo do português. Rosemeri se alarmava. “Vocês vão voltar para o Brasil, vão ver seus avós, tios, primos, e não vão conseguir falar com eles”, dizia. “Vai ser uma vergonha, uma coisa muito triste para mim.” Até que decidiu que, em casa, só se falaria em português. Ponto. Edinho só conseguia pedir em inglês para a mãe comprar seu Ruffles no supermarket, e acabava orgulhosamente ignorado. Chegava a chorar: “Era ódio, desespero e hoje é gratidão.” Foi a forma que ela encontrou, também, para fazer com que a caçula e americana Jennifer se familiarizasse com a língua dos pais e dos irmãos. Jennifer e Kelly ainda moram em Nova York.
Edinho aprendeu a gostar dos esportes americanos, sobretudo o basquete, o beisebol e até mesmo aquele futebol da bola oval. Quando assistia a partidas pela televisão, com frequência ao lado da mãe, explicava a ela as regras e as características de cada um deles. “Edinho me ensinou todos esses esportes para eu poder participar da vida dele”, lembrou. O garoto era bom em esportes. No secundário, foi titular nas equipes de beisebol, basquete e futebol americano. Ao se formar no high school, foi convidado pela St. John’s University, de Nova York, a conhecer a infraestrutura da instituição, sinal de que tinha chance de conseguir uma bolsa de estudo. Queriam vê-lo representar a universidade nos times de basquete ou de beisebol.
Pelé me contou que, certa vez, foi convidado pelo colégio para ver uma premiação esportiva do filho. “Fui todo contente, pois pensava que o prêmio era de melhor jogador de futebol, e, na verdade, era de melhor jogador de beisebol!”, ele lembrou. Não podia supor que, para o filho, o futebol – aquele da bola circular – tivesse se tornado uma lembrança esfumaçada. Edinho sequer gostava de comentar a profissão do pai, quando o assunto surgia entre os amigos. “Tinha vergonha de falar que ele era jogador de futebol”, disse. Por quê? Explicou que, por lá, a imagem predominante era a de se tratar de um “esporte light”, jogado majoritariamente por mulheres. Não que Pelé não fosse uma celebridade. “Mas ele era muito mais conhecido como uma figura num livro de educação, que falasse da América do Sul, do Brasil. Era mais uma referência do que uma figura viva”, avaliou. “Que ironia, não é?”
Edinho voltava todo ano ao Brasil, durante suas férias de dezembro, para visitar os parentes por uma ou duas semanas. Em 1986, decidiu vir nas férias no meio do ano, para uma estadia mais longa. Para que o filho não ficasse sem fazer nada, Pelé sugeriu que fosse treinar nos juvenis do Santos e Edinho achou boa a idéia. Só ficou receoso por estar completamente destreinado: fazia anos que não jogava futebol. Então, topou, com a condição de que treinaria como goleiro.
Pelé não ficou surpreso. Edinho lembrou que, quando tinha seus 5, 6 anos, nas vezes que voltava a Santos nas férias, brincava com o pai na sala de cinema que tinham em casa. Usava a cortina como trave imaginária e um pequeno travesseiro como bola. “Eu falava: pai, chuta que vou para o gol.” Além disso, Edinho explicou, ele “tinha o arrojo do futebol americano, não tinha medo de cair, de levar chute. Tinha a impulsão do basquete, a coordenação motora das mãos. Com isso, encontrei até certa facilidade para jogar no gol”.
O menino não entendeu quando soube que seria seu tio David – marido da irmã de Pelé, Maria Lúcia – quem o conduziria ao clube, e não o próprio pai. Edinho não tinha a real dimensão do que Pelé representava no Brasil, não só como ídolo, mas como figura pública. Nos Estados Unidos, sempre entendeu que o pai fosse um profissional bem-sucedido, notando a diferença de tratamento que recebia onde quer que fosse. Em aeroportos, por exemplo, percebia que o pai dependia de um esquema especial para desembarcar, recorrendo a saídas alternativas e motoristas. No Brasil, Edinho se assustou com a impossibilidade de Pelé fazer coisas triviais, como aguardar numa fila. Sempre havia assédio. A privacidade era impossível. Treinar por intermédio do tio, Edinho entendeu, era para que ninguém descobrisse, pelo menos a princípio, sua filiação.
Edinho falava sobre isso na nossa segunda entrevista, também no CT Rei Pelé, quando fomos interrompidos por uma dupla de pai e filho, torcedores santistas que buscavam autógrafos dos jogadores. O pai perguntou se o garoto sabia quem era ele, apontando Edinho. O garoto disse que não. Edinho deu o autógrafo e contou que seu anonimato nos juvenis do Santos só durou duas semanas. Repórteres passaram a procurar o jovem arqueiro para entrevistas e reportagens. Ele ficou incomodado porque, invariavelmente, o enfoque era o mesmo: “Virei essa coisa que não era eu, mas quase um objeto. Não uma pessoa própria, mas o filho de alguém.” O pai-torcedor, afinal, completou para o filho pequeno a ficha técnica do interlocutor: “Ele foi goleiro do Santos também.”
Passados os três meses das férias de verão, Edinho botou um par de luvas nas malas e voltou a Nova York. Do Brasil, levava a redescoberta do futebol jogado com os pés, embora preferisse jogá-lo com as mãos. Pouco depois, Pelé topou com dois ex-parceiros do Cosmos, ambos brasileiros. A dupla havia sido recém-contratada para treinar uma equipe de futebol, amadora, dos Estados Unidos. Era um clube social, de descendentes alemães, cujos filhos dos diretores e funcionários haviam formado um time. Treinavam nas noites de quarta-feira, e os jogos do campeonato eram nos finais de semana. Edinho assumiu a camisa 1.
“Era quase de brincadeira”, recordou. “Jogávamos sempre contra outras equipes de descendentes de europeus e latinos, que tinham muito mais noção do que os americanos.” Ele fechou o gol por quase dois anos. Pelé ficou sabendo que, ali, Edinho era o dono da bola. Mas, para saber se o garoto vingaria mesmo como goleiro, aquele tipo de campeonato não era o melhor dos parâmetros. Edinho havia acabado de concluir o colegial e precisava decidir entre o interesse da St. John’s University ou tentar a carreira profissional como jogador. Começava uma nova fase na vida de Edinho.
Gilberto havia se projetado pelo Sport Recife em 1992, quando terminara o Campeonato Brasileiro como o goleiro menos vazado. Sua boa atuação rendeu-lhe a transferência para o São Paulo, mas, com a difícil concorrência de Zetti, não teve oportunidades, pedindo para ser negociado. Dois anos depois, chegou ao Santos para ser titular. Mas falhou nas três primeiras partidas que disputou. O técnico santista, Pepe, chamou o goleiro reserva de canto e perguntou: “Está preparado, garoto?” Edinho respondeu: “Seu Pepe, pode ficar sossegado.” Não falou por falar. Havia atuado uma temporada inteira como titular do time de aspirantes. Ao se profissionalizar, a diretoria do Santos o emprestou para a Portuguesa Santista, pela qual disputou a série B do Campeonato Paulista.
Pepe, um dos mais famosos parceiros de Pelé na fase áurea, diz que a entrada de Edinho no time não teve nada de proteção: “Tanto o considerava bom goleiro que, depois, o levei para a Ponte Preta em 1998.” O jogo da estréia de Edinho pelo Santos seria contra o Santo André, no ABC Paulista. Por coincidência, o mesmo palco em que Pelé havia estreado como profissional, aos 15 anos de idade. Antes de a bola rolar, a torcida santista saudou aos gritos o ídolo instantâneo. A imprensa mundial se espremia nas acanhadas instalações do estádio Bruno José Daniel. “Era o quarto jogo do Campeonato Paulista e parecia final de Copa do Mundo”, disse. Edinho teve uma atuação segura. Só não conseguiu impedir que, aos sete minutos do segundo tempo, a cabeçada de Claudinho, já na pequena área, lhe rendesse seu primeiro tento sofrido com a camisa santista. O jogo terminou em 1 a 0 para os anfitriões. Mas Edinho não perderia a condição de titular pelos próximos três anos.
Durante esse período, especialmente nas derrotas, houve quem contestasse os méritos de Edinho. Dizia-se que estava no time por apadrinhamento, já que sua altura era um pouco abaixo dos padrões dos goleiros. Perguntei quanto media e, de bate-pronto, disse 1,80 metro. Em seguida, em voz baixa, falou que, na verdade, é 1,78 metro. “Dou uma arredondada”, admitiu. Para compensar, era um leão nos treinos. “Eu me dizia que nunca seria criticado pela minha estatura. Podiam falar que era ruim tecnicamente, qualquer crítica. Mas não deixaria que minha deficiência virasse um ponto fraco.”
Entre suas virtudes estavam a impulsão e a agilidade. Não se lembra de ter tomado gols por cobertura, ou de qualquer outra forma que pudesse ser atribuída à condição de “baixinho”. Pode não ter conseguido evitar gols considerados fáceis, mas também não levou qualquer frango escandaloso. Até com os pés aprendeu a jogar bem, já que pegou uma época de transição da aplicação da “regra anticera” para goleiros. O próprio pai estimulou Edinho a aprimorar a técnica do pé esquerdo. “Como sempre fiz os goleiros sofrerem, não queria que meu filho passasse pela mesma situação”, explicou Pelé. Hoje, quando o Santos treina cabeçadas na área, é Edinho quem faz os cruzamentos pelos dois lados do campo. Passa fácil por ambidestro.
Edinho acha que, em 1994, fez sua melhor temporada, individualmente. Mas, do ponto de vista coletivo, teria no ano seguinte o ponto alto da carreira. Com um elenco longe de ser brilhante, o Santos chegaria à final do Campeonato Brasileiro contra o Botafogo, que contava com a dupla Túlio e Donizete. Márcio Rezende de Freitas, o juiz, validou um gol ilegal dos cariocas, o Santos perdeu e Edinho não se conforma até hoje. Principalmente, porque o seu time estava há onze anos sem ganhar um campeonato. “Tive a oportunidade de fazer parte do time que tiraria o Santos da fila”, lamentou. “Nunca mais terei essa oportunidade.”
Nos anos 90, o Santos, como a maioria dos grandes clubes, ainda não contava com uma infraestrutura, atualizada, nos departamentos de fisiologia e fisioterapia. O Centro de Excelência em Prevenção e Recuperação de Atletas de Futebol, erguido junto ao CT Rei Pelé – hoje uma referência do setor –, só viria a ser inaugurado em 2007. O clube recorria a clínicas terceirizadas para avaliações e tratamentos dos atletas. Uma delas era o Instituto Cohen de Ortopedia, Reabilitação e Medicina do Esporte, comandado pelo fisiologista Renato Lotufo. Nos exames médicos de praxe num início de temporada, Edinho foi apresentado a uma das profissionais da equipe de Lotufo: Flávia. Ela ia ao clube de duas a três vezes por ano e, lentamente, ficaram amigos.
Anos depois, Edinho teve de ir à clínica dela, em São Paulo, para iniciar um tratamento. Soube então que não era só uma amiga. Tratava-se de Flávia Kurtz, filha que Pelé conheceu em 1994 e cuja paternidade admitiu no início dos anos 2000. Ela é fruto de um affaire-relâmpago que Pelé teve numa passagem por Porto Alegre, no final dos anos 60, com uma estudante. Durante a convivência como amigos, Flávia sabia que era irmã de Edinho, mas ele não. Só revelou o parentesco quando repercutiu na imprensa a existência de outra filha de Pelé fora do casamento – a primeira, Sandra Arantes do Nascimento Felinto, que morreu em 2006, de câncer, Edinho não chegou a conhecer.
Mesmo a semelhança física de Flávia com o pai não levou Edinho a desconfiar do parentesco. Eles se vêem com frequência, quando Edinho viaja a São Paulo – onde Flávia mantém sua clínica de fisioterapia – ou nos encontros da família Arantes do Nascimento na casa de Pelé, no Guarujá. Nos finais de semana, o anfitrião gosta de reunir a turma até para integrar seus filhos mais novos, os gêmeos Joshua e Celeste, de 12 anos, com as netas Stephany, 9, Sophia, 6, filhas de Edinho, e as outras crianças da família. “Preciso estar bem preparado fisicamente para acompanhá-los”, brincou Pelé. As herdeiras da “dinastia” não traem o DNA esportivo: as meninas adoram atividades físicas. “A mais velha foi fazer caratê, aí a mais nova foi atrás”, disse Edinho. Elas também fazem balé e já arriscam as primeiras tentativas no futevôlei. No esporte que deu fama à família, parece ser do meio-irmão Joshua a missão da continuidade. Ele treina no clube social do São Paulo e Pelé tem acompanhado a evolução do pequeno com a bola nos pés.
Em novembro de 1996, numa partida entre Santos e Paraná, um escanteio cobrado bem fechado no primeiro pau fez Edinho sair para o abafa, ao mesmo tempo em que tentou evitar o choque com a trave. Caiu com todo o peso sobre uma perna, pisando numa canaleta sobressalente que servia para prender a rede do gol. Foram dois estalos bem sonoros, ouvidos até pelos repórteres atrás da meta. O goleiro havia rompido os ligamentos do joelho. Sem saber da gravidade, e apesar da dor, Edinho tentou continuar no jogo. Mas quando tentava apoiar a perna no chão, tinha a sensação de que toda ela se desmancharia. Ficou um mês imobilizado, e outros nove até voltar a trabalhar com a bola. Durante a inatividade, casou-se, ainda de muletas, com Jéssica, numa discreta cerimônia católica realizada num clube de Santos. Edinho a conheceu logo que voltara em definitivo ao Brasil, em 1990. Ela estudava no colégio Coração de Maria, que ficava defronte à casa de sua tia Lúcia, onde morava. Pedagoga e professora, Jéssica se dedica à casa e às filhas.
Depois de se recuperar da lesão, Edinho perdeu a posição para Zetti, contratado do São Paulo. Não desanimou e acertou seu empréstimo para a Ponte Preta, por um ano, time pelo qual disputou o Campeonato Brasileiro de 1998. Apesar de ter se saído bem no clube campineiro, Edinho acabou se chateando com algumas pessoas da, como ele diz, “indústria do futebol”. Somado a outros fatos, como o de nunca ter ganho muito dinheiro como jogador e a possibilidade de trabalhar com o pai –, que começava a enfrentar problemas nos negócios por desentendimentos com sócios –, o desgosto o levou a parar de jogar. Tinha apenas 28 anos.
No dia 6 de junho de 2005, Edinho estava no banheiro de casa, lavando o rosto, ainda sem camisa, preparando-se para uma reunião com a diretoria do Santos. O encontro seria para assinar o contrato segundo o qual ele assumiria o comando de todas as categorias de base do departamento de futebol. Já se passavam sete anos desde sua aposentadoria precoce do futebol. O retorno à “indústria” se daria naquela manhã, mas Jéssica bateu à porta do banheiro e avisou que policiais queriam falar com ele.
Edinho achou que fosse piada e disse para ela parar de brincadeira, porque estava atrasado para sua reunião. Pela expressão da mulher percebeu que ela falava sério. Desceu para ver o que era. Os policiais tinham uma ordem de busca e apreensão. Vasculharam tudo e não encontraram nada de comprometedor. Levaram-no ao Departamento de Investigações sobre Narcóticos, o Denarc, em São Paulo. Nesse meio-tempo, Jéssica falou com Pelé, que estava num sítio em Juquiá, no interior do estado. Quando Edinho chegou ao Denarc, aquele que viria a ser seu advogado, Sidney Gonçalves, já o aguardava.
Edinho foi acusado de estar ligado a Ronaldo Duarte Barsotti de Freitas, o Naldinho, apontado como cabeça do tráfico de drogas na Baixada Santista. Foi preso numa operação envolvendo 52 pessoas, das quais treze – ele inclusive – foram processadas por tráfico, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro. Com base em escutas telefônicas, o Denarc concluiu que havia uma “amizade íntima” entre Naldinho e o ex-goleiro, e que ambos tinham negócios em conjunto.
Em setembro passado, o processo foi anulado pelo Superior Tribunal de Justiça, mas pode ser reaberto pela promotora responsável pelo caso, Ana Maria Molinari. “Preciso que o processo acabe para poder explanar algumas coisas técnicas, que motivaram a anulação do processo, e uma série de covardias e injustiças”, disse Edinho. “Mas hoje não me interessa falar, até para não alimentar alguma outra situação.” Tudo o que ele reconhece é ter sido usuário de maconha. “Admiti isso no boletim de ocorrência no dia em que fui preso”, explicou. E garantiu que nunca vendeu droga a ninguém.
Na transcrição das escutas telefônicas apareceram frases como “eu tenho, não precisa trazer, não”. Ou “eu levo, pode deixar”. Segundo Edinho, suas frases foram distorcidas: elas se referiam a quem se encarregaria do baseado “de depois da pizza”, e não a carregamentos de droga, como queriam acusar. “Nunca bebi, nunca cheirei, mas tinha o hábito de fumar. Não faço apologia, pelo amor de Deus, mas é uma coisa que fez parte da minha vida”, disse. Só parou com a maconha enquanto jogou futebol. “A minha profissão não permitia.” Ao se aposentar, voltou aos baseados, e os abandonou de vez quando foi preso. Ser usuário da droga nem era o motivo do processo, e sim sua proximidade com Naldinho. Por isso, ele diz que entende o que aconteceu: “Foi uma injustiça, mas eu compreendo.”
A compreensão decorre não meramente da lógica que seria a aproximação de um usuário com o traficante, mas porque havia, sim, uma amizade entre Edinho e Naldinho. Amizade herdada dos pais. Ronaldo Barsotti de Freitas, o Pitico, pai do traficante, é ex-jogador. Atuou com Pelé no Santos dos anos 60 e, no final da década seguinte, voltou a jogar com o Rei no Cosmos. Os filhos de ambos conviveram e cresceram juntos – Naldinho é apenas um ano mais novo que Edinho. Em 2005, quando um busto para Pelé foi erguido no sítio dele em Juquiá, Pitico e Naldinho estavam presentes na inauguração.
Ao saber da prisão de Edinho, Pelé disse que não poderia supor que o filho do amigo pudesse estar envolvido com o tráfico “daquela maneira”. Publicamente, Naldinho era um homem de negócios bem-sucedido, dono de duas revendedoras de automóveis – que, para a polícia, serviam como fachada para lavagem de dinheiro do tráfico. Por ser filho de Pitico, Naldinho desfrutava de livre trânsito no universo boleiro de Santos. Era presença constante no estádio da Vila Belmiro, onde tinha um camarote. Ao ser preso, a polícia encontrou no seu escritório fotos em que aparecia ao lado de outro ídolo local, o atacante Robinho, hoje no Manchester City.
Edinho foi parar num presídio de segurança máxima em Presidente Bernardes, interior de São Paulo. Passava 23 horas por dia enclausurado na solitária. Tinha só a leitura como companhia. Escrevia cartas para Jéssica e as filhas e fez uma espécie de diário, para matar o tempo e, sobretudo, refletir. “Tenho umas sessenta páginas”, disse. Pedi que mostrasse os escritos. Respondeu que não e explicou que pretende fazer um livro a partir dessas memórias do cárcere.
A solidão em Presidente Bernardes durou quatro meses, quando foi transferido para a penitenciária 2 de Tremembé, também no interior paulista. Num final de semana, recebia a visita da mãe; no outro, a mulher e as filhas. Pelé disse ter visitado o filho “várias vezes”, mas Edinho só se lembrou de uma única ocasião, ainda em Bernardes. Ciente da comoção que a presença do pai costuma causar, Edinho não esperava que ele o visitasse.
Rosemeri contou que, nas vésperas de se encontrar com o filho, tirava o dia para preparar as comidas que ele gostava. Levava tanta coisa que mal dava para carregar. “Mas não tem nada que faça a pessoa ficar feliz”, disse. Nas visitas, ela procurava manter uma postura serena e positiva. “Depois, provavelmente, cada um desmoronava no seu travesseiro.”
Depois de dois meses em Tremembé, ganhou a liberdade provisória a partir de uma liminar concedida pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal. Das primeiras coisas que ele fez ao sair, está a tatuagem de uma rosa que ele exibe, com orgulho, no braço esquerdo. “Rose“, corrige Edinho, com a entonação em inglês, explicando se tratar da corruptela do nome da mãe. É a única referência familiar entre as onze tatuagens que traz no corpo.
O alívio da volta para casa durou 47 dias. A nova prisão preventiva foi determinada pela juíza substituta da 1ª Vara Criminal de Praia Grande, Lizandra Lapenna. Agora sob acusação de lavagem de dinheiro, Edinho voltou para Tremembé. Ele considera abusiva a segunda prisão, por ter sido detido “pela mesma coisa” e por não ter havido, no seu modo de ver, nenhum fato novo. Já o juiz da 1ª Vara, Edegar de Sousa Castro, declarou, por sua vez, que novas provas haviam sido apresentadas. Mas é fato que Edinho residia em local fixo, tinha seu passaporte em poder da Justiça e, quando deixou a cadeia pela primeira vez, se submeteu a exames numa clínica de reabilitação. “O Estado está me devendo um ano e meio, porque fui preso sem motivo e sem condenação”, contestou Edinho.
Voltar para a cadeia foi, ele disse, “cem vezes pior” do que a primeira vez em que ouviu o barulho da grade sendo trancada às suas costas. Ele e Jéssica inventaram uma fantasia para que as filhas não soubessem que estava preso: o pai estava numa “escola especial”. Apesar do estranhamento provocado pela revista na entrada dos visitantes, a história parecia crível. Edinho as recebia num pátio onde era permitido pintar as paredes com desenhos. “Então, descaracterizava um pouco a situação”, contou. “Parecia um salãozinho de bufê.”
Edinho disse que nunca esquecerá a passagem pela cadeia. Aprendeu a valorizar coisas banais, como beber em copo de vidro e comer com talheres de metal. Nos banhos de sol, lamentava ver o “matador do shopping”, Mateus da Costa Meira, caminhando solitário, feito zumbi, sempre sedado. No futebol dos presidiários, Edinho chegou a bater bola até mesmo com um dos irmãos Cravinhos – “aquele mais tatuado” –, participante do assassinato dos pais de Suzane von Richthofen. Lamenta que o sujeito tenha cometido a atrocidade que cometeu, porque fez boa imagem dele. A sociabilidade de Edinho o ajudou: a segunda estada na prisão durou dez meses.
Tempo mais do que suficiente para planejar o que faria quando voltasse para casa. Uma das coisas seria compensar junto às filhas o tempo perdido na “escola especial”. Como na idealização de uma festa de aniversário para Stephany, a mais velha, com base no desenho A Bela e a Fera. Sem que a menina desconfiasse, ele surgiria de surpresa, caracterizado de Fera. “Achei que ela fosse desmaiar de tanta emoção”, disse Rosemeri. A paternidade, para Edinho, se tornaria uma espécie de militância. “Elas sentem minha presença constantemente”, disse. “Não quero deixar o que aconteceu comigo acontecer com elas.” Outro plano era o retorno ao futebol. Conseguiu: foi posto em liberdade em 29 de dezembro de 2006 e, em janeiro, já estava a serviço do Litoral FC, o caçula do futebol santista, time apadrinhado por Pelé. Em fevereiro, Edinho foi convidado a voltar ao Santos – de onde não mais saiu.
Edinho tem se apoiado na família para superar o trauma da prisão. Pelé é quem paga as despesas com advogados, e o filho mora num apartamento dele na Ponta da Praia, em Santos. Além do salário como assistente técnico do Santos, ele complementa o orçamento com o futevôlei. Por meio de sua empresa Global Esportes, organiza o maior evento da modalidade no Brasil, o Circuito de Futevôlei Reis do Seis, realizado em oito etapas na Baixada Santista. Seu objetivo é estruturar um novo segmento na “indústria do futebol”, como já ocorre com o futebol de praia e o futsal. São duas categorias: amadora e profissional. O próprio Edinho participa, mas entre os amadores. “Eu até ficaria entre os dez primeiros, no profissional, mas quero brigar para ganhar”, justifica. Edinho é competitivo. Afinal, desde o berço, teve de lidar com a competição involuntária de ser filho de quem é.
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