CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
O fóssil é nosso!
O que aparece no Cariri fica no Cariri
Bernardo Esteves | Edição 196, Janeiro 2023
Na manhã de um sábado de dezembro, dois micro-ônibus e um automóvel encostaram junto à entrada de uma pedreira de calcário laminado na zona rural de Nova Olinda, na região do Cariri, Sul do Ceará. Desembarcaram dezenas de pesquisadores e estudantes. Nos dois dias anteriores, eles haviam participado do Paleo Nordeste, um encontro regional promovido pela Sociedade Brasileira de Paleontologia. Naquele dia, o último do evento, eles saíram em excursão para conhecer localidades onde costumam ser encontrados fósseis de organismos que viveram há mais de 100 milhões de anos.
O Cariri fica encravado na Bacia Sedimentar do Araripe, que também abrange áreas dos estados vizinhos do Piauí e de Pernambuco e é conhecida como uma das regiões mais ricas do mundo em fósseis do Cretáceo. Naquele período geológico, a área abrigava um lago que oferecia condições favoráveis à fossilização de plantas e animais, conforme explicou à piauí Álamo Feitosa Saraiva, paleontólogo da Universidade Regional do Cariri (Urca) que liderou a expedição daquele sábado.
As águas eram pobres em oxigênio e ricas em carbonato de cálcio, sal que envolvia os cadáveres dos bichos mortos que iam parar no fundo do lago. “Isso impedia que eles sofressem desgaste ou fossem decompostos, formando uma espécie de sarcófago natural”, compara Saraiva. Graças a essas condições, é comum encontrar, nos fósseis do Araripe, tecidos moles e outras estruturas que não costumam ficar preservadas no processo de fossilização.
Muito tempo depois, por volta de 35 milhões de anos atrás, o movimento das placas tectônicas da Terra levou ao soerguimento das camadas sedimentares onde esses fósseis haviam se formado. Os sedimentos que estavam no fundo do lago foram parar no topo da Chapada do Araripe, onde a mata verdejante contrasta com a vegetação típica da Caatinga. “Sempre que chove, o topo da chapada vai se desgastando, e vão aparecendo fósseis que estavam cobertos por sedimentos”, explica Saraiva.
Fósseis de peixes, insetos e plantas são figurinhas fáceis na pedreira onde o pesquisador levou os participantes do congresso paleontológico. Eles aparecem imprensados nas lâminas de calcário laminado que os operários extraem e cortam para transformar nas lajotas da pedra cariri, empregada para adornar beiras de piscina e outras superfícies.
A paleontóloga Aline Ghilardi, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), não precisou procurar muito para encontrar um peixe de 2 ou 3 cm gravado numa lâmina. Tratava-se de um Dastilbe crandalli, o fóssil mais comum da região. Não foi a única criatura contemporânea dos dinossauros encontrada pela equipe da UFRN. Em meia hora de coleta, apareceram também larvas de insetos, uma aranha e plantas de duas espécies diferentes, uma das quais talvez seja desconhecida pela ciência. “Isso só mostra como a Bacia do Araripe é escandalosa para fósseis”, disse Ghilardi. “Deixa todo principiante animado.”
A abundância dos fósseis faz das pedreiras do Cariri um alvo cobiçado por atravessadores que os vendem no mercado clandestino. As peças vão parar em lojas online e leilões virtuais que atraem colecionadores e pesquisadores estrangeiros. Comprar e vender fósseis é ilegal no Brasil, pois eles são propriedades da União, conforme estabelece um decreto-lei do Estado Novo. Embora esteja em vigor desde 1942, a lei não impediu que houvesse uma sangria de fósseis do Araripe para o exterior.
Álamo Saraiva relata que no Cariri existem 92 pedreiras de calcário laminado – algumas encerraram os trabalhos durante a pandemia. “Sem uma agência reguladora atuante, isso aqui vira um cavalo sem canga nem corda”, afirma. Com essa expressão, ele quer dizer que, se não houver quem fiscalize, o tráfico de fósseis correrá desimpedido. A tarefa cabe à Agência Nacional de Mineração, que regulamenta o acesso aos fósseis no Brasil. Em 2018, a ANM fechou o escritório que mantinha no município cearense do Crato.
A etapa final da expedição foi uma visita ao Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, situado em Santana do Cariri, cidade de 17,7 mil habitantes. Criado nos anos 1980 pelo pesquisador que dá nome à instituição, então prefeito do município, o museu ocupa um sobrado de dois andares e exibe centenas de fósseis encontrados na Bacia do Araripe. Os espécimes mais notáveis estão numa sala ampla no primeiro andar: réplicas em tamanho real de dois dinossauros e um pterossauro voando suspenso sobre os visitantes.
No fim da tarde, a caravana da UFRN, liderada pelo casal de paleontólogos Aline Ghilardi e Tito Aureliano, se juntou para uma foto diante dos répteis extintos. O grupo tinha enfrentado doze horas de estrada de Natal até o Crato – Ghilardi promoveu uma vaquinha online e arrecadou quase 9 mil reais para bancar o transporte, a alimentação e a hospedagem de dezessete alunos. À frente da foto estava a mascote do grupo potiguar, a border collie Smoky, que frequentou os auditórios e a programação social do encontro de paleontólogos.
Ghilardi é a pesquisadora que lançou a hashtag #UbirajaraBelongsToBR, para exigir, nas redes sociais, a repatriação do Ubirajara jubatus, um dinossauro do Araripe que foi parar na coleção do Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. O movimento culminou com o anúncio, em julho do ano passado, de que o Ubirajara e outros fósseis retornariam ao Brasil. Ainda não há data prevista para a devolução. A professora da UFRN está entre os pesquisadores que gostariam de ver o Ubirajara em Santana do Cariri: “Ele deveria ficar no coração desse museu, não só porque é um fóssil cientificamente importante, mas porque virou símbolo de uma luta.”
Para o paleontólogo Juan Carlos Cisneros, que veio de Teresina com alunos da Universidade Federal do Piauí, o retorno do dinossauro estimularia o turismo, aquecendo a economia local. “Os turistas comem, bebem, abastecem o tanque de gasolina, compram lembrancinhas”, diz. “O fóssil tem que gerar renda no lugar em que foi encontrado, onde ela é mais necessária.”
Ao fim da visita, comprei, na lojinha do museu, a réplica de um fóssil de peixe de 110 milhões de anos da espécie Tharrhias araripis. Feita com rejeitos do próprio calcário laminado do Cariri, ela imita a cor, o peso e a textura de um fóssil de verdade. Na viagem de volta, fui impedido de embarcar porque o raio x do Aeroporto de Juazeiro do Norte flagrou a peça. Se fosse um fóssil, eu poderia ser multado e pegar até cinco anos de prisão. O avião já havia decolado quando uma agente da Polícia Federal chegou para examinar o objeto suspeito. Ela disse que se tratava claramente de uma réplica, mas precisaria mandá-la para a perícia em Fortaleza. Álamo Saraiva ficou feliz quando soube do episódio: “Não nos julgue. Isso significa que estamos fazendo réplicas com qualidade melhor.”
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