Boulos sorri pouco e aparenta estar sempre cismado com o interlocutor. “Uma das coisas que mais me impressionaram após tanto tempo sem vê-lo foi notar como ele passou a usar trejeitos e expressões FOTO: TUCA VIEIRA_2018
O herdeiro
Líder dos sem-teto, o presidenciável Guilherme Boulos se aproxima de Lula e cria embaraços para o PSOL
Fabio Victor | Edição 140, Maio 2018
Às margens do Guaíba, em meio à massa vermelha de militantes, Guilherme Boulos caminhava pelo acampamento montado em apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele 24 de janeiro, uma quarta-feira, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, julgava o recurso do petista à condenação imposta em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro no caso do tríplex do Guarujá. “Parece que o babaca do Gebran já deixou claro que vai manter a condenação. Talvez o Lula tenha alguma chance com o Paulsen. Pelas informações que chegaram, é um cara mais técnico”, disse o coordenador nacional do MTST, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, logo que nos encontramos. Eram 9h25. O julgamento começara menos de uma hora antes, e o relator João Pedro Gebran Neto só havia lido um resumo da acusação e da sentença de Moro – mas dera pistas do que viria pela frente. Entre os três juízes da 8ª Turma do TRF-4, o revisor Leandro Paulsen seria o segundo a votar naquele dia.
Boulos, com uma mochila às costas, vestia calça jeans e camisa polo vermelha. Estava acompanhado da advogada Cláudia Ávila, coordenadora do MTST em Porto Alegre, e do marido dela. O trio avançava pelo passeio público nas proximidades do tribunal, onde partidários do PT e de movimentos sociais se aglomeravam entre carros de som. A cada minuto, Boulos era solicitado a interromper a marcha. Um senhor careca pediu uma foto: “Vou também tirar minha casquinha. É Lula lá. Senão… é você!”
O sol não dava trégua, e a sensação térmica justificava o apelido de Forno Alegre que a capital gaúcha recebe no verão. Incomodado com o calor e por não ter notícia do julgamento, Boulos pediu à colega que buscasse uma sombra onde pudessem sentar para acompanhar a sessão pelo celular. Os carros de som tocavam jingles políticos e canções populares. “Deviam estar transmitindo o julgamento, está passando em todas as rádios”, queixou-se o líder do MTST. A correligionária lhe ofereceu protetor solar, aceito de pronto, e partiu em busca da sombra. “Abaixa essa cabeça, senão a gente não consegue sair daqui”, aconselhou Ávila, em vão. Pedidos para uma foto ou uma palavrinha aumentaram. Um senhor grisalho que se identificou como “fundador do PT de Pelotas” tascou sua selfie, enquanto comentava: “Você faz a melhor análise de conjuntura do Brasil hoje.” Boulos comprou água mineral e matou a sede, mas continuava impaciente. “Vamos parar para ouvir esse julgamento, porra.”
A sofreguidão não era descabida. O veredicto, além de definir o futuro de Lula e da política brasileira, moldaria o destino de Boulos. Àquela altura, ele era cortejado pelo PSOL para disputar a Presidência da República nas eleições de outubro. Se Lula fosse condenado em segunda instância – e provavelmente impedido de concorrer, conforme a Lei da Ficha Limpa –, a chance de Boulos entrar no pleito seria muito maior.
O trio acabou encontrando refúgio no restaurante do Fórum de Porto Alegre. A leitura do voto de Gebran confirmou a suspeita de que o relator manteria a condenação de Lula. O casal amigo, em cuja residência Boulos dormira na véspera, se ofereceu para deixá-lo no aeroporto – o voo até São Paulo seria às 14 horas, quando o julgamento ainda estaria em curso. No trajeto, o rádio do carro transmitia o voto de Gebran. O coordenador do MTST não se conformava: “Quem é esse cara? De onde ele veio, o que ele fez? Lula é um dos maiores presidentes da história do Brasil…”
Por unanimidade, os três magistrados mantiveram a condenação do petista e estenderam a pena dada por Moro – de nove anos e seis meses para doze anos e um mês de prisão. No começo da noite, num ato na praça da República, em São Paulo, Boulos referiu-se a Moro como “xerifinho sem-vergonha”; aos juízes do TRF-4, reservou o epíteto de “três anões morais e jurídicos”. Ao lado de Lula no carro de som, discursou: “Chega do tempo de obediência. Agora é tempo de ir para cima. Conta com a gente, presidente Lula. Se eles quiserem, se ameaçarem, se tentarem botar o dedo no senhor, o bicho vai pegar neste país porque não vão prender porra nenhuma e nós vamos para cima.”
Lula repetiu que fora condenado injustamente e que não havia prova de ele ser o dono do tríplex. “Se me condenaram, me deem pelo menos o apartamento, aí justifica. Me deem pelo menos uma escritura. Eu até já pedi para o Guilherme Boulos mandar o pessoal dele ocupar aquele apartamento. Já que é meu, ocupem.” Três meses depois, o coordenador nacional atendeu ao pedido e militantes do MTST ocuparam por duas horas o imóvel no Guarujá. Boulos já era pré-candidato pelo PSOL, Lula já estava na cadeia.
A prisão do ex-presidente no início de abril reforçou os laços entre o petista e o líder do MTST. Quando Lula decidiu se refugiar no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, usando como bunker o lugar que quarenta anos antes o projetara para a política, Boulos marchou até lá com uma multidão de sem-tetos. Ao longo das 48 horas que o ex-presidente permaneceu no prédio, ele esteve ao lado de Lula a maior parte do tempo. No palanque em frente ao sindicato, defendeu a resistência à prisão: “A nossa orientação é garantir que uma decisão injusta não se efetive. A nossa disposição é não deixar prenderem o Lula.” Expressou a mesma posição nos grupos de debate que se formaram em torno do petista para definir se, e como ele se entregaria. Foi voto vencido.
Na manhã de sábado, 7 de abril, durante o discurso de despedida que proferiu antes de ir para a prisão, Lula tratou Boulos com deferência particular. Os petistas no alto do carro de som eram maioria – Dilma Rousseff, o ex-prefeito Fernando Haddad e os senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, entre outros. A presidenciável Manuela d’Ávila, do PCdoB, também estava lá e ganhou sua menção, mas ninguém foi tão citado e elogiado quanto o pré-candidato do PSOL. Das cinco passagens em que Lula falou do líder do MTST, uma chamou mais a atenção – quando o ex-presidente comparou a juventude do coordenador com a dele próprio ao despontar nacionalmente: “Vocês têm que levar em conta a seriedade desse menino. Eu digo menino porque ele só tem 35 anos de idade, e, quando eu fiz a greve de 1978, eu tinha 33 anos de idade e consegui, através da greve, chegar a criar um partido e virar presidente. Você tem futuro, meu irmão, é só não desistir nunca.”
Após o discurso, Lula se deixou conduzir no meio da multidão. Em vez de um metalúrgico ou um membro do PT, quem o carregou no ombro foi um militante do MTST, Luciano Nascimento, o Batoré, segurança de Boulos. No dia seguinte, dois filhos de Lula – Lurian e Marcos Cláudio – participaram de um ato dos sem-teto. Abraçada ao líder do movimento, Lurian disse vê-lo como um irmão. “Ele tem sido como um filho para o meu pai.”
Os afagos de Lula em Boulos dificilmente se traduzirão em apoio eleitoral do PT ao pré-candidato do PSOL. Mesmo assim, ficou claro que o ex-presidente enxerga no coordenador do MTST potencial para se tornar um jovem líder da esquerda brasileira. Boulos, que nunca foi filiado ao PT, criticou os governos de Lula e Dilma em vários momentos. No entanto, desde a deposição da presidente em 2016, com o avanço da agenda conservadora de Michel Temer e das ações judiciais contra Lula, o líder dos sem-teto foi se aproximando do petista. A ponto de parecer um aliado mais vigoroso que os mais apaixonados dos lulistas.
“Lula sabe das diferenças que temos, mas se deu conta de que elas não impedem uma relação de solidariedade. Fomos críticos da política econômica de Dilma e, ainda assim, estivemos na linha de frente contra o golpe. Quando o MBL [Movimento Brasil Livre] foi para a calçada da casa do Lula, quem apareceu lá foi o MTST”, me disse Boulos durante um voo de São Paulo a Lisboa. “Muitos que estavam ao lado dele na hora do poder e do prestígio sumiram na hora da dureza. Nós fizemos o contrário”, completou. Convidado por uma universidade portuguesa, Boulos participaria de atos em defesa de Lula e da democracia brasileira nos dias 12 e 13 de abril.
Quando ainda estávamos na sala de embarque do aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (SP), uma funcionária convocou alguns passageiros a comparecer ao guichê da companhia aérea. O nome de Boulos foi pronunciado no alto-falante, e apenas uma pessoa pareceu identificar de quem se tratava. Um homem na faixa dos 70 anos, vestido com uma camisa Lacoste, sussurrou para a mulher: “Guilherme Boulos, do MTST.” Enquanto o pré-candidato do PSOL se dirigia ao guichê, aproveitei para perguntar se o passageiro, um comerciante, pensava em votar nele. “Não. Eu conheço, respeito e admiro a luta do Boulos, porque ele é de luta, mas tenho outra filosofia.” Em outubro, revelou, iria de Jair Bolsonaro, o presidenciável do PSL.
Boulos voltou do guichê. A classe econômica, setor de seu bilhete, estava lotada, e a companhia lhe ofereceu um upgrade para a executiva. Ele declinou. “Executiva representa privilégio, não gosto disso, não é a minha”, respondeu, quando eu quis saber o motivo da recusa.
Numa poltrona da econômica, Boulos discorreu sobre seus vínculos com o fundador do PT. “Lula é uma liderança surgida das lutas sociais e, por isso, se diferencia dos políticos tradicionais. Ele tem bom discurso, propostas, ideias cativantes etc., mas no movimento social isso não basta – você precisa de resultado, de conquistas. Se o MTST não tiver conquista, acaba.”
Perguntei se Boulos havia esquecido os erros de Lula que apontara no passado – sob o lulismo, dizia, alianças fisiológicas e benevolência com a elite econômica produziram um modelo de conciliação esgotado. “De fato, tenho falado isso nos últimos dez anos. Mas há momentos em que você tem que escolher entre dar ênfase a uma questão ou a outra. Lula está preso, e a luta que tem que ser feita agora é por democracia.”
Chovia e fazia 10 graus quando desembarcamos em Lisboa, às 5h30. A caminho da alfândega, puxando uma mochila de rodinhas e vestindo uma blusa de malha fina sobre a camisa, Boulos acusou o frio. Não levara casaco. No setor de desembarque, o aguardava o jornalista brasileiro Ricardo Viel, assessor da Fundação José Saramago, apoiadora dos eventos de que o coordenador do MTST participaria. Viel se ofereceu para lhe emprestar um casaco, que poderia entregar poucas horas depois. Boulos aceitou.
O primeiro compromisso foi um debate com acadêmicos e políticos de esquerda brasileiros e portugueses. O Instituto Novos Paradigmas, criado pelo ex-ministro e ex-governador gaúcho Tarso Genro, petista próximo a Boulos, organizou o encontro. Na sala de reuniões de um hotel de luxo, a prisão de Lula, os tiros na caravana do ex-presidente em março, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e o avanço conservador foram analisados como peças de um fenômeno único que ameaça a democracia brasileira. Genro presidiu a mesa, ladeado pelo sociólogo e professor Boaventura de Sousa Santos, espécie de decano da esquerda portuguesa.
Ao fim de quatro horas e meia de discussões, numa rodinha à saída da sala, destacavam-se Boulos, Sousa Santos e a professora de direito Carol Proner, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os três traçavam planos para uma campanha internacional pela libertação de Lula. “A verdade é que as manifestações contra a prisão foram muito menores do que o esperado”, disse Boulos. Sousa Santos e Proner defenderam que, naquele momento, a melhor estratégia seria coletar assinaturas apoiando Lula para o Prêmio Nobel da Paz. O professor veterano ponderou que adotar a expressão “preso político”, como Boulos e o PT têm feito, é exagerado e poderia inibir a adesão de nomes de peso. “Também temos de pensar que o mote ‘Eleição sem Lula é fraude’ pode ser um tiro no pé. Até porque tu mesmo és candidato”, alertou ao brasileiro. “Aquilo foi uma maneira de pressão, que agora realmente não faz mais sentido”, admitiu Boulos.
Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Sousa Santos é o maior entusiasta, em Portugal, da candidatura do líder dos sem-teto. “Em quarenta anos, depois do Lula, o Boulos é a única liderança popular brasileira com carisma que conheci, e conheci muitas. O PT perdeu a juventude, não se renovou. Lula viu isso e apontou Boulos como herdeiro, mas não para ganhar essa eleição – afinal, o próprio Lula perdeu três antes de se eleger”, disse Sousa Santos no lobby do hotel.
No piso superior, ao lado de Tarso Genro, o presidenciável do PSOL dava entrevista ao jornal Público, uma das dez que concedeu em dois dias. Na manhã seguinte, acima de uma foto de Boulos e Genro, o diário publicou o título “Quem sabe se teremos uma ‘geringonça brasileira’?” A reportagem sugeria que a esquerda do Brasil poderia se mirar na portuguesa, reunida numa coalizão que hoje governa o país e que foi apelidada de “geringonça”. Indaguei se Boulos havia gostado da matéria. “Mais ou menos”, respondeu. “Deram muito pouco destaque ao Lula.”
Mal deixou o hotel para o evento seguinte, o coordenador do MTST se deu conta de que o casaco que pegara emprestado ficou apertado. Num átimo, um integrante do Mídia Ninja – grupo de ativistas que, entre outras ações, faz cobertura ao vivo pela internet de atividades dos sem-teto – ofereceu seu casaco e vestiu o menor. Mais tarde, eu quis saber se os dois Ninjas que estavam em Portugal eram subsidiados pela pré-campanha de Boulos. Ele negou. “O Mídia Ninja não recebeu nada de nós até aqui. Quando houver recurso, é natural que haja uma profissionalização. Mas eles nunca operaram numa lógica de troca. São militantes mesmo.” Pablo Capilé – fundador do Fora do Eixo, rede de coletivos culturais que deu origem ao Mídia Ninja – afirmou que, de fato, o grupo se identifica com a causa do MTST e trabalha para o movimento voluntariamente. O Mídia Ninja se sustenta prestando serviços audiovisuais e promovendo eventos culturais, além de receber doa-ções em campanhas de financiamento coletivo na internet, disse Capilé. O coletivo também já participou de projetos em parceria com as fundações Open Society, do investidor húngaro-americano George Soros, e Ford.
O ato em defesa da democracia brasileira ocorreu num cineteatro em estilo art déco, no Centro de Lisboa. Os 400 lugares estavam ocupados, e pelo menos metade da audiência era de brasileiros. O apoio a Lula deu o tom da noite. Subiram ao palco Sousa Santos, Boulos, Genro, a deputada portuguesa Catarina Martins – do partido Bloco de Esquerda – e o espanhol Pablo Iglesias, secretário-geral do partido-movimento Podemos. Último a discursar, Boulos disse que a prisão de Lula mostrava a parcialidade da Justiça brasileira: “No que se refere ao Michel Temer, tem provas, gravações, malas de dinheiro, e ele está no Palácio do Planalto; no que se refere ao Aécio Neves, tem gravações pedindo dinheiro, o país todo ouviu. Já com Lula, não há uma prova, uma conta, uma gravação, uma mala, e ele está preso em Curitiba. De um lado, temos condenação sem prova; do outro lado, prova sem condenação.” Boulos ainda pregou a necessidade de uma frente de esquerda no Brasil e, novamente, de uma campanha internacional pela liberdade do petista. Por fim, lembrou o assassinato de Marielle Franco, muito citada na noite. Ao término de sua fala, a plateia gritou: “Lula: livre; Marielle vive!”
No segundo e último dia em Lisboa, Boulos deu mais entrevistas a veículos portugueses, participou de outro debate, apresentou propostas de campanha, chamou Bolsonaro de criminoso e conheceu a Fundação José Saramago. A agenda mais formal foi uma visita em comitiva ao líder do Partido Socialista Português, Carlos César, na Assembleia da República, o Parlamento do país. Dos dez homens presentes no gabinete austero do deputado, Boulos era o único sem terno – estava em mangas de camisa. Liderando a comitiva, Genro apresentou o pré-candidato do PSOL e ambos se disseram inquietos com a prisão de Lula. César fez malabarismos retóricos para não opinar sobre o caso. À saída, já no elevador, Boulos enxovalhou o parlamentar: “Que covarde! Que posição de merda! O cara não falou nada do Lula…” Ponderei que a cautela talvez se devesse ao fato de o político integrar a coalizão que comanda o país. “Mas quem vira governo não precisa virar covarde”, ele respondeu.
Guilherme Boulos sorri pouco. Dono de uma voz rascante, dá a impressão de estar sempre desconfiado. Parece não abandonar o senso de urgência e praticidade nem mesmo em conversas prosaicas. Fuma cigarros Black sabor menta, que reconhece enjoativos. Consumi-los foi um expediente para diminuir o vício. A estratégia deu relativamente certo, já que agora um maço dura dois dias. O ativista exibe carisma no palanque e facilidade em se comunicar em público, valendo-se de linguagem direta, vocabulário enxuto e metáforas transparentes.
Usou barba fechada ou costeletas espessas, como os cantores dos anos 70, até se decidir pelo cavanhaque. O pescoço curto e os ombros arqueados lhe conferem mais idade do que de fato tem. Aos 35 anos, é o mais jovem pré-candidato à Presidência. Viciado em smartphone, consulta o aparelho o tempo inteiro, às vezes durante reuniões de trabalho ou debates. É ativo nas redes sociais e utiliza os áudios de WhatsApp como sua principal ferramenta de comunicação.
Aprimorou a retórica belicosa ao longo dos quase dezesseis anos em que milita no MTST. Para pressionar governos a construir moradias populares, a organização adota como tática principal a ocupação de terrenos sem uso nas grandes cidades. Com manifestações de rua, bloqueios de rodovias e invasões de prédios públicos, ganhou espaço na mídia. Hoje o MTST atua em catorze estados e tem cerca de 55 mil famílias cadastradas. Estima que, nas últimas duas décadas, 20 mil pessoas conseguiram moradia por meio de suas ações. Não à toa, tornou-se o mais relevante movimento social urbano brasileiro.
Nascido em São Paulo, em 19 de junho de 1982, Guilherme Castro Boulos é o caçula e único homem dos três filhos de um casal de infectologistas que se conheceu no Hospital das Clínicas, o HC. O pai, Marcos, dirigiu a Faculdade de Medicina da USP, da qual se aposentou há dois anos como professor titular. Atualmente, chefia a Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. A mãe, Maria Ivete, ainda trabalha no HC, onde coordena o Núcleo de Atendimento à Violência Sexual. A irmã mais velha, Renata, é mestre em relações internacionais pela Universidade de Essex, na Inglaterra, e presta consultoria em políticas públicas. A do meio, Fernanda, é neurologista e mora nos Estados Unidos, onde coordena um departamento do laboratório Novartis.
Filho de um libanês que migrou para o Brasil, Marcos Boulos tem 72 anos, olhos fundos e a fala mansa. Alto e magro, dedicou a vida a estudar doenças tropicais em populações pobres – como a malária e a febre amarela. Passou temporadas na Amazônia e prestou consultorias a países africanos. A opção profissional moldou sua orientação política. “Quem trabalha com saúde pública não tem como não ser socialista ou não se preocupar com justiça social”, me disse. No entanto, não há notícia de que suas escolhas políticas tenham se sobreposto a suas atribuições profissionais – nos últimos sete anos, por exemplo, serviu a governos do PSDB em São Paulo.
Boulos pai chegou a ganhar dinheiro entre as décadas de 1980 e 2000, quando, ao lado de Vicente Amato Neto e David Uip, foi sócio de uma clínica de imunologia nos Jardins, bairro abastado da capital paulista. Na época, a família morava numa cobertura. Mais tarde, o infectologista largou a clínica para se dedicar exclusivamente à universidade e à saúde pública. “Chegou um momento em que comecei a ficar incomodado. Aquilo estava em contradição com o tipo de medicina que eu havia escolhido praticar.”
De modo mais extremo, o caçula da família também viria a abrir mão de privilégios da classe média alta. Quando garoto, era introspectivo e seu único interesse parecia ser o Corinthians. Ia a todos os jogos do time na capital e viajava com o pai para acompanhar confrontos no interior do estado. Em 1997, quando o MTST surgiu na periferia de Campinas como uma espécie de braço urbano do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Boulos tinha 15 anos e começava a fazer política estudantil na Juventude Comunista do PCB. Não muito depois, num primeiro ato de repúdio aos valores capitalistas, o adolescente pediu permissão aos pais para sair do colégio particular em que estudava, o Equipe, e encarar o ensino público. Transferiu-se para a Escola Estadual Fernão Dias Paes, onde cursou os dois últimos anos do ensino médio.
A seguir, ingressou em filosofia na USP. Lia muita literatura marxista – Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Ruy Mauro Marini, Milton Santos –, mas também ficção – Machado, Clarice, Balzac, Dostoiévski, García Márquez. “Ele vivia com um dicionário de etimologia e questionava a razão de eu estar usando essa ou aquela palavra. A toda hora ia a sebos. Ainda hoje tem uma boa biblioteca”, contou o pai.
O caçula costumava levar grupos de amigos militantes para dormir no apartamento da família. “Às vezes eram sete ou oito barbudos”, relembrou o infectologista. O rapaz aprendeu o Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos e resolveu dar aula em favelas. Doou suas roupas de grife e abandonou a Juventude Comunista. “Comecei a ver aquilo como insuficiente. Passou a me incomodar muito que todo mundo falasse em nome do trabalhador, mas na realidade não estivesse junto dele.” Aproximou-se do MST, arrecadando alimentos para doar em acampamentos do movimento. Pouco depois, saiu de casa e foi morar com uma namorada no Centro de São Paulo. Aos 20 anos, em 2002, começou a frequentar uma ocupação do MTST em Osasco, até decidir viver no local. Morou em acampamentos por quase dois anos.
“Eu ingressei no movimento com a cabeça de um militante quadrado, que tinha lido um monte de livro e se achava sabichão”, recordou. “Um dia, o pessoal de uma igreja foi fazer uma celebração num acampamento e eu bati o pé. Disse que ali havia muitas religiões e não era espaço para aquilo. Meses depois, fui preso numa desocupação, e a primeira pessoa a me visitar foi o padre que eu tinha criticado. Nos acampamentos, a realidade é maior que as teorias. As pessoas pedem licença para chegar perto de você porque não possuem nada e estão aviltadas. Aí tem a cozinha coletiva, a fogueira à noite, uma noção de comunidade que se perdeu. Por causa dessa experiência, quem entrou pedindo licença sai de lá erguendo o punho e cobrando dos governantes. Isso é mais socialismo que as obras completas de Marx.”
No início de 2002, pouco antes de se incorporar ao MTST, Boulos passou cerca de dois meses em Buenos Aires e acompanhou o rescaldo do “Argentinazo”, a revolta popular que derrubou o governo de Fernando de la Rúa. Impressionado com o trabalho de psicanalistas que atuavam em movimentos sociais, ele se interessou pelo assunto. Tempos depois, concluiria dois cursos de formação em psicanálise. Chegou a clinicar por um ano e meio.
Em 2016, com uma bolsa federal, fez um mestrado em psiquiatria na Faculdade de Medicina da USP. Estudou os efeitos da militância no MTST em pacientes com depressão. A partir de questionários e entrevistas com moradores de acampamentos, estabeleceu uma “relação entre a participação nas ocupações de sem-teto estudadas e a redução do índice de sintomas depressivos e ansiosos, medidos pela EHAD [Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão]”. Perguntei-lhe se a escolha do universo de pesquisa – o movi-mento do qual é o mais conhecido líder – não poderia ter distorcido o resultado. “A maioria dos questionários não foi aplicada por mim, mas por pessoas de fora do MTST”, respondeu. “Fiz no movimento porque vivenciei aquilo por anos. Não foi uma ideia que surgiu do nada.”
Boulos também recorre à psicanálise nas aulas que dá no curso de aperfeiçoamento em liderança, oferecido pela Escola de Educação Permanente do Hospital das Clínicas. Criado por Boulos pai, o curso reúne professores de diversas áreas, que ensinam a “melhorar a qualidade da liderança nas relações de trabalho”.
O pré-candidato do PSOL deverá abrir mão das aulas, uma de suas fontes de renda, por causa da campanha eleitoral. Ele também é remunerado pelos artigos que escreve para a revista Carta Capital e outros veículos ou instituições (foi colunista da Folha de S.Paulo entre 2014 e 2017). Nos últimos anos, diz que ganhou uma média de 3,2 mil reais por mês. “Isso é plenamente compatível com meu padrão de vida. Moro na periferia de São Paulo e tenho um Celtinha velho”, explicou numa recente entrevista coletiva pelo Twitter, quando um eleitor perguntou do que o militante vivia.
Os pais o ajudaram a comprar o sobrado de três cômodos em que mora, no bairro de Campo Limpo, no extremo sul de São Paulo. Boulos chegou a mencionar a possibilidade de me chamar para um café em sua casa, mas, quando o lembrei do convite, ele já estava mergulhado na agenda de pré-candidato e afirmou que não teria tempo para me receber. Os pais do ativista também pagam a escola de todos os netos. “Fazemos isso por iniciativa própria. Nenhum de nossos filhos nos pediu nada”, frisou o infectologista.
Ele e o caçula se encontram pelo menos uma vez por semana e conversam muito. Na véspera de minha entrevista com Boulos pai, haviam passado duas horas juntos. É nesses momentos que o médico aconselha o filho a maneirar o ritmo de vida. Adepto da meditação, gostaria que o líder dos sem-teto se dedicasse à prática. O caçula já tentou, mas não conseguiu.
O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha frequentou a casa dos Boulos quando o ativista era adolescente. Colega do infectologista no Hospital das Clínicas, lembra do garoto como muito acanhado e algo depressivo. “Ele era muito contido, tímido, quieto mesmo. Até nos jogos do Corinthians, a que gostava de assistir do alambrado do Pacaembu com o pai, falava pouco”, disse Padilha na sede do diretório nacional do PT, partido do qual é um dos vice-presidentes. Boulos depois me contou, sem entrar em detalhes, que já teve fases de depressão, tratadas com medicamentos, mas que há muitos anos não sofre mais com a doença.
Padilha ficou muito tempo sem ver o filho do amigo e o reencontrou, no fim dos anos 2000, como uma liderança do MTST. “O Guilherme não vai gostar que eu diga isso, mas uma das coisas que mais me impressionaram foi notar como ele passou a usar trejeitos e expressões do Lula, a adotar um discurso com termos e gírias populares. Ele viveu uma transformação.”
Em 2009, quando era ministro das Relações Institucionais, Padilha participou de uma reunião sobre o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que se tornaria vitrine dos governos petistas na política habitacional. Além do então presidente Lula, estavam presentes técnicos federais em habitação e representantes de movimentos por moradia – Boulos participava pelo MTST. Os militantes pressionavam o governo a criar uma modalidade do programa que não impedisse que os próprios movimentos construíssem moradias populares via cooperativas ou associações sem fins lucrativos. Os técnicos argumentavam que as regras do MCMV não permitiam isso. “O Lula se virou para os técnicos e disse: ‘Pois danem-se as regras, vocês vão ter que inventar outras, porque esse pessoal vai criar moradia para o povo’.” Naquele mesmo ano, surgiu o Minha Casa Minha Vida – Entidades.
Como não é pessoa jurídica, o MTST não recebe recursos diretamente do programa e, por isso, recorre a grupos criados por ativistas. Em São Paulo, base do movimento, o principal deles é a Associação de Moradores do Acampamento Esperança de um Novo Milênio. Segundo dados do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal, o governo transferiu 63,5 milhões de reais à entidade, entre 2013 e 2015. A verba é usada na compra de terrenos e na construção dos conjuntos habitacionais. No governo Temer, não houve repasses do programa para a associação.
Boulos costuma se gabar de que os conjuntos construídos até agora pelo MTST em dois municípios da Grande São Paulo, Taboão da Serra e Santo André, têm apartamentos maiores e com melhor acabamento que os erguidos pelo MCMV. Quando o movimento entregou o primeiro desses conjuntos, no Taboão, em 2014, Lula estava lá. Foi a primeira vez que o ex-presidente apareceu com destaque ao lado de Boulos, e a primeira vez que os dois conversaram com calma. Estabeleceram a partir dali uma relação de proximidade. Naquele mesmo ano, Boulos ganhara projeção nacional ao liderar atos do MTST críticos aos gastos do Brasil com a Copa do Mundo. Além de moradia, os protestos cobravam do governo federal melhorias em saúde, educação e transporte.
“A liderança de Boulos sobressai quando ele amplia a pauta dos movimentos populares”, analisou Padilha. “Mais do que habitação, ele assume outras bandeiras progressistas de hoje – transporte, cultura na periferia, agenda feminista e LGBT. Os governos do PT demoraram para perceber essa pauta.”
O mais recente estudo sobre déficit habitacional brasileiro – relativo a 2015 e divulgado este ano pela Fundação João Pinheiro – aponta uma carência de 6,35 milhões de domicílios no país. O documento também informa que há 7,9 milhões de imóveis vagos no Brasil, 80,3% dos quais localizados em áreas urbanas. “Um fator que se destaca a cada nova atualização do estudo”, diz um trecho do relatório, “é o grande montante dos domicílios vagos. A aparente contradição entre um déficit de moradias ao lado de um enorme número de imóveis vagos é sempre uma fonte de questionamento.”
Em seu livro Por Que Ocupamos?, Boulos reflete sobre o assunto. O líder do MTST aponta a grilagem como método sistemático de invasão de terras públicas urbanas por grandes proprietários. Denuncia as “discretas invasões da burguesia” paulistana – shopping centers, agências bancárias, supermercados e clubes sociais de elite localizados em áreas do Estado e com cessão de uso irregular. Também defende a legalidade das ocupações do MTST, com base em artigos da Constituição segundo os quais toda propriedade tem de cumprir função social. “Ocupar não é crime, é um direito”, escreve.
No livro, as políticas de habitação dos governos federais petistas são alvo de duras críticas. Sobre o Minha Casa Minha Vida, Boulos afirma que o programa “foi desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital imobiliário, injetando, em sua primeira fase, 34 bilhões de reais em recursos públicos na iniciativa privada”. Estima que “cerca de 75% dos recursos e 60% das habitações do programa foram destinados a famílias com renda maior do que três salários mínimos, exatamente porque – em se tratando de imóveis mais caros – as empreiteiras ganham mais”. Um pouco adiante, dispara: “Lula não conseguiu conciliar o capital com o trabalho. Assim como nem o mais hábil desenhista pode fazer um círculo quadrado. Mas conseguiu outra conciliação, a que realmente pretendia com o programa: conciliou a garantia de impressionantes doações de campanha das empreiteiras para a sua sucessora nas eleições de 2010, com milhões de votos de trabalhadores, que acreditaram na propaganda de que seria sua vez de morar dignamente.”
Apesar das críticas, é fato que o MTST se aproximou cada vez mais de Lula e Dilma e obteve ganhos de suas administrações. Mas o movimento também conseguiu conquistas com governantes a quem se opõe mais abertamente, como o tucano Geraldo Alckmin, em São Paulo. A mais recente veio na esteira de uma ruidosa ocupação em São Bernardo do Campo, berço do PT, hoje administrado pelo PSDB. Batizado de Povo Sem Medo, o acampamento permaneceu por sete meses num terreno de aproximadamente 70 mil metros quadrados que pertence à construtora MZM. Cerca de 8 mil famílias cadastradas ergueram barracos de plástico e lona no local.
Como sempre nesses casos, o MTST reivindicava a desapropriação do terreno. A Justiça determinou a reintegração de posse, e a estratégia passou a ser conquistar outras áreas para realocar as famílias. Boulos transformou a negociação num caso nacional. Dezenas de políticos passaram pela ocupação, entre os quais Lula e Dilma. Caetano Veloso liderou uma trupe de artistas que faria um show no local. A apresentação terminou barrada pela Justiça, mas acabou ocorrendo em outro dia e local. Paula Lavigne, empresária e mulher de Caetano, havia levado Boulos a uma das famosas reuniões com artistas em seu apartamento. Na visita que fez ao acampamento, ela – que é filha de um dos mais bem-sucedidos advogados criminalistas do Rio, Arthur Lavigne – virou “quase uma sem-teto aqui na nossa ocupação”, conforme discursou Boulos.
A Prefeitura de São Bernardo se recusou a negociar, e o MTST abriu um canal de interlocução com o governo paulista. Realizou uma marcha de 23 quilômetros, do ABC ao Palácio dos Bandeirantes, a sede do Executivo estadual, com milhares de manifestantes – 20 mil, segundo o MTST; 3,5 mil, na estimativa da PM. Como em outros atos do movimento, a alta frequência de ativistas se deu graças a um rigoroso controle de participação, num sistema ao mesmo tempo rudimentar (porque manual) e engenhoso (porque dá certo). Funciona assim: na saída para as manifestações, cada sem-teto assina uma ata; durante o percurso, recebe uma senha; ao fim da marcha, entrega a senha e torna a assinar a ata. Só tem direito a pleitear moradia quem participa dos atos até o fim. A prática consta no regimento interno do MTST, segundo o qual “o critério principal para a conquista de moradia é a participação nas lutas e assembleias”.
Em frente ao Bandeirantes, os sem-teto ecoaram seus costumeiros gritos de guerra: “Aqui está/o povo sem medo/sem medo de lutar”; “Pisa ligeiro/pisa ligeiro/quem não pode com a formiga/não atiça o formigueiro”; “Criar/criar/o poder popular”; e “Revolucionários do Brasil/fogo no pavio”. Uma comissão composta por dirigentes do MTST, Boulos à frente, e parlamentares de esquerda entrou no palácio para negociar com a equipe de Alckmin.
Os primeiros a deixar o edifício foram os parlamentares, que, algo desolados, anunciaram à imprensa avanços tímidos na negociação. Boulos saiu por último, três horas depois de entrar. A PM fez um cordão para que ele conseguisse chegar ao carro de som, levando consigo o então secretário estadual de Habitação, Rodrigo Garcia. Primeiro a falar, Garcia informou que o governo se comprometera a cadastrar as famílias da ocupação e a tentar buscar modos de realocá-las, não sem antes elogiar a boa interlocução com Boulos. O tom do líder do MTST era de vitória. Disse aos “guerreiros e guerreiras” – como se dirige aos militantes – que aquele era um “dia histórico”, pois, diante da intransigência da Prefeitura de São Bernardo, a abertura de uma negociação concreta com o governo paulista representava um avanço. “Somos realistas, temos de nos manter vigilantes. Mas foi um passo importante. A gente volta para casa com menos peso no ombro, com a sensação do dever cumprido.” Eram quase nove da noite. Os militantes estavam de pé havia catorze horas, caminhando na maior parte do tempo. Boulos encerrou “pedindo uma salva de palmas para cada guerreiro e cada guerreira que dedicou o seu dia a essa luta”.
“Ele é um negociador muito habilidoso, que não faz nada impensado. Conhece política habitacional, sabe o que demandar do poder e tem sempre foco no objetivo, não se dispersa”, me disse Rodrigo Garcia. “Pede tudo para sair com alguma coisa. Quando tem alguma conquista, pega aquilo e já passa para outra demanda. E é muito correto nos acordos.” Depois de três anos como secretário, Garcia deixou o cargo recentemente para disputar a eleição pelo dem – não sabe ainda a qual cargo.
Apesar do incômodo que suscita no establishment por seus métodos de pressão, o MTST não tem histórico de ações violentas. No dia da marcha ao Palácio dos Bandeirantes, o número de policiais no local era relativamente pequeno. O oficial da PM à frente do esquema de segurança, major Marcelo Tasso, contou que se programara para uma manifestação pacífica. “Eles são ordeiros.”
Ainda assim, Boulos já foi preso cinco vezes durante cumprimentos de mandados de reintegração de posse (só dormiu na prisão uma vez). É possível ver na internet o vídeo de uma de suas mais rumorosas detenções, ocorrida em 2012, no bairro Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). O militante foi algemado e puxado pelos cabelos por integrantes da Guarda Civil municipal. Ele responde a processos por descumprimento de ordem judicial, incitação à violência, dano qualificado e lesão corporal. Também é réu numa ação por acidente de trânsito. O carro de Boulos atingiu uma moto que, por sua vez, bateu num automóvel.
Segundo o líder, o MTST se mantém com doações de pessoas físicas e entidades, que somam em média 7 mil reais por mês. Há projetos específicos financiados por instituições estrangeiras, como a Oxfam e a Fundação Rosa Luxemburgo. O movimento tem uma organização horizontal, com 28 coordenadores nacionais. Em tese, portanto, Boulos dispõe do mesmo poder que os outros 27. Nenhum deles é remunerado.
O grupo de coordenadores agrega tanto sem-tetos de origem pobre quanto gente bem-nascida. Josué Rocha, por exemplo, médico de 29 anos formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é hoje um dos dirigentes mais ativos, espécie de braço direito de Boulos.
Entre os coordenadores nacionais, também está Natalia Szermeta, mulher do líder e mãe de suas duas filhas. Ela é um dos principais rostos públicos do MTST. Discursa em manifestações e faz mediação de debates. Seu pai, o ativista Stanislaw Szermeta, de origem polonesa e ucraniana, nasceu num campo de prisioneiros na Alemanha, em 1945, durante a Segunda Guerra. Veio criança para o Brasil e se profissionalizou como metalúrgico. Preso e torturado na ditadura, filiou-se ao PT, mas deixou a sigla por rejeitar o mensalão. Acabou se juntando ao PSOL. Em 2016, foi candidato a prefeito de Taboão da Serra e teve 2 758 votos ou 2,19% do total. Terminou o pleito em quarto lugar. A mãe de Natalia Szermeta, ex-operária da Sharp, ainda é filiada ao PT; o irmão militou no partido.
Boulos conheceu a mulher em 2005, no movimento, e começou a namorá-la em 2009. A primeira filha do casal, Sofia, tem 8 anos. A caçula, Laura, tem 6. “O que nos uniu foi a vontade de dividir os mesmos sonhos e projetos. A militância não é um momento à parte nas nossas trajetórias, um delírio juvenil. É uma escolha de vida. Não estamos no mundo para nos conformar com as coisas como elas são, mas para tentar transformá-las”, me disse Natalia Szermeta.
Aos 30 anos, ela cursa direito numa faculdade privada. Começou e largou o curso de geografia na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Presidente Prudente. Nascida e criada na periferia de São Paulo, sempre usou serviços públicos de educação e saúde. Fuma muito. Como Boulos, é sóbria no vestir-se e sisuda a maior parte do tempo. Também como o marido, que viu de terno uma única vez, quando foram padrinhos de um casamento, se diz alheia ao consumismo. Ajuda-o a comprar roupas, atentando para que a marca não apareça. “Os vendedores sempre estranham”, contou.
Segundo a militante, as tarefas domésticas são divididas. Mas ela, por ficar um tempo maior em casa, acaba cuidando mais das crianças e cozinhando mais do que ele – cuja especialidade é macarrão à carbonara. Considera-se feminista?, perguntei. “Sim, mas sou crítica de um tipo de feminismo que ganha força no Brasil, meio burguês e acadêmico, que se preocupa mais com questões de comportamento e com o politicamente correto do que com mudanças efetivas, sobretudo para mulheres trabalhadoras e da periferia.”
Na hipótese, hoje quase impossível, de Boulos chegar à Presidência, o que Natália Szermeta gostaria de fazer em Brasília? “Ia querer a Casa Civil, mas não pode”, disse, às gargalhadas. “Brincadeira à parte, mulher de presidente não precisa desse papel [social] que tem hoje… Eu ia querer continuar a fazer o que faço.”
Quando o líder dos sem-teto voltou de Lisboa, Marcelo Freixo foi buscá-lo às seis da manhã no aeroporto do Galeão, no Rio. O deputado estadual pelo PSOL dirigia seu carro blindado, seguido por outro com três policiais. Era a escolta que o acompanha desde as ameaças que sofreu quando presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias na Assembleia Legislativa fluminense, em 2008.
Naquele sábado, completava-se um mês do assassinato de Marielle Franco. O deputado, de camiseta preta com a inscrição “Lute como uma Marielle”, comentou que na véspera o Jornal Nacional dera uma cobertura extensa e correta sobre o caso. Falou também da blindagem que a Polícia Civil havia imposto às investigações, sem vazamentos à imprensa – o que, a seu ver, era positivo. Para marcar a data, naquela manhã haveria uma série de atos em praças do Rio, batizados de “Amanhecer com Marielle”. Fomos a um no Largo do Machado. Emissoras de tevê que cobriam o evento cercaram Freixo e Boulos, mas somente o deputado respondeu às questões sobre Marielle. No final, surgiu uma pergunta específica para o presidenciável, sobre a campanha política. Antes mesmo que ele respondesse, as equipes desligaram as câmeras e deixaram o local.
Freixo foi um dos principais articuladores da pré-candidatura de Boulos. O deputado contou que teve a ideia de convidar o coordenador do MTST numa conversa com sua mulher, a roteirista Antonia Pellegrino. Ele falava da necessidade de o PSOL se integrar a movimentos sociais na defesa dos direitos humanos – que considera o novo paradigma da esquerda brasileira. “O brilho no olho da Antonia é, para mim, um termômetro. A gente estava em casa no café da manhã, eu disse que um nome forte do movimento social como candidato do PSOL faria bem para os dois lados e contei que vinha pensando em Guilherme Boulos. Quando disse isso, o olho dela dilatou”, me contou Freixo em dezembro, num bar no Largo da Batata, em São Paulo. Logo depois da conversa com sua mulher, o deputado marcou um encontro com Boulos. “Na hora em que mencionei a ideia, ele também arregalou o olho e quase caiu da cadeira.”
A versão do parlamentar sobre a gênese da pré-candidatura chegou à imprensa e incomodou Boulos, que a julgou exagerada. Segundo o líder do MTST, o processo que o levou à decisão foi mais complexo e envolveu outros políticos do PSOL, como o deputado federal Ivan Valente e o ex-deputado Milton Temer. Em meados do ano passado, Boulos começou a articular uma frente alternativa de esquerda no país. Reuniu representantes de partidos, sindicatos e movimentos sociais e lançou um ciclo de debates, o Vamos, a fim de formular um programa para o Brasil. O PSOL fazia parte da articulação. Àquela altura, o pré-candidato do partido seria o deputado federal Chico Alencar. Mas a Unidade Socialista, a tendência que domina a direção do PSOL, embarcou na solução Boulos. Alencar desistiu e anunciou que disputará uma vaga ao Senado pelo Rio de Janeiro.
O namoro entre Boulos e o PSOL chamou a atenção do PT. Dirigentes petistas, inclusive Lula e Dilma, já haviam convidado o líder do MTST a se filiar ao partido, sempre sem sucesso. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, entre outros, o procuraram para demovê-lo da ideia de sair candidato. Se tivesse pa-ciência, diziam, ele poderia ser o nome das esquerdas na eleição de 2022. Segundo conta Lula no recém-lançado livro de entrevistas A Verdade Vencerá, Boulos “estava inquieto” com a indefinição e conversou algumas vezes com o ex-presidente e com Dilma sobre o assunto. “Falei: ‘Boulos, deixa eu te dizer uma coisa, querido. Eu sou o único cara com quem você não tem que conversar. Primeiro, porque não vou dizer uma palavra para você não ser candidato. A única coisa que lamento é que você, com o sonho que tem na cabeça de um partido político, tenha entrado no PSOL. Não deveria. Você deveria construir uma coisa nova. (…) Se quiser ser candidato, seja candidato. De minha parte, você não terá um milímetro de contestação. Sou seu companheiro.’” Logo em seguida, Lula reconheceu: “Ele tem sido muito solidário comigo.”
Em dezembro, o PSOL elegeu seu novo presidente, o historiador Juliano Medeiros, que abraçou a opção Boulos. Em fevereiro, o líder sem-teto consultou uma última instância, que dizia ser a mais importante, sobre o tema: a coordenação do MTST. Seus colegas aprovaram por unanimidade a pré-candidatura. Ele, então, foi foi até o Instituto Lula comunicar ao ex-presidente sua decisão. Lula o aconselhou a entrar na campanha com a firme convicção de que poderia vencer, mas alertou sobre as dificuldades. “Vai ser bom pro Boulos, porque é um aprendizado legal. Ele vai perceber que as pessoas não gostam tanto da gente como a gente pensa que gostam, vai perceber que nem todo mundo que dá tchauzinho pra gente vota na gente…”, afirmou no livro.
Em 3 de março, num evento em São Paulo com políticos, artistas e ativistas, Boulos lançou seu nome à corrida presidencial, tendo como vice a líder indígena Sônia Guajajara, também do PSOL. Lula enviou uma mensagem por vídeo, exibida num telão, agradecendo o apoio que recebeu do líder do MTST e lhe desejando boa sorte. “Eu jamais vou pedir para você não ser candidato, porque, se não fosse minha ousadia em 1982 e 1989, eu não teria sido presidente da República”, declarou. Dois dias depois, Boulos assinou a ficha de filiação ao seu novo partido.
OPSOL é uma dissidência do PT e resultou da crítica aos caminhos que o partido seguiu depois de chegar à Presidência da República. Parlamentares que votaram contra a reforma da Previdência proposta no primeiro governo Lula – a senadora Heloísa Helena e os deputados Babá, João Fontes e Luciana Genro –, ignorando a orientação da direção nacional, foram expulsos do PT no final de 2003. No ano seguinte, fundaram o PSOL, que obteve registro no Tribunal Superior Eleitoral em 2005 – época em que Boulos começava a despontar como liderança no MTST.
A irrupção de Boulos, ainda mais sob as bênçãos de Lula, provocou mal-estar numa ala do PSOL e criou fissuras no partido. Integrantes da esquerda da sigla consideraram autoritário o processo de escolha do pré-candidato – não houve prévias, mas uma Conferência Nacional Eleitoral, na qual Boulos obteve 69% dos votos. O segundo colocado, com 21%, foi Plinio de Arruda Sampaio Jr., conhecido como Plininho, filho do candidato à Presidência pela legenda em 2010. Plininho reclama que o modelo de escolha deu muito poder à direção nacional do partido e esvaziou sua base. O envolvimento de Boulos na linha de frente da campanha pela libertação de Lula mantém as feridas abertas. “Estou louco para votar no Boulos, mas ele precisa permitir. É preciso que ele se distancie do PT e do Lula. A movimentação atual do Boulos cria muita dificuldade para que se consiga perceber a diferença entre ele e o lulismo”, me disse Sampaio Jr.
Agora a pré-campanha de Boulos busca montar um programa, que começa a ser debatido por grupos temáticos. Entre os colaboradores, estão os professores Laura Carvalho (economia), Vladimir Safatle (poder/política) e Gilberto Maringoni (relações exteriores). O soció-logo Luiz Eduardo Soares e o delegado Orlando Zaccone (segurança pública) também participam das discussões, além da cartunista Laerte e do deputado Jean Wyllys (LGBT). O pai do presidenciável, Marcos Boulos, contribui na área de saúde.
Muitos dos planos em pauta surgiram dos resultados colhidos no ciclo de debates do Vamos. Uma das bandeiras da campanha é a realização de um plebiscito para revogar medidas do governo Temer como a reforma trabalhista, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita o crescimento dos gastos públicos e a lei que desobrigou a Petrobras de explorar o pré-sal. Boulos também defende um modelo de democracia direta, com a instituição de orçamentos participativos e a realização de plebiscitos e referendos sobre grandes temas do país.
Na economia, o presidenciável do PSOL propõe reforma tributária progressiva – com taxação de lucros e dividendos, de heranças e grandes fortunas, e diminuição do imposto sobre consumo –, além de uma reforma da Previdência que incida sobre os militares e a cúpula do funcionalismo e que cobre dívidas previdenciárias de grandes empresas. Sugere ainda que ajustes no sistema financeiro, como a diminuição do spread bancário (diferença entre o que o banco paga de juros ao tomar um empréstimo e quanto cobra do consumidor final), aumentarão a margem para a concessão de crédito popular.
Sobre a Venezuela, um dos temas preferidos da grande imprensa ao entrevistar o pré-candidato, ele afirma ser “hipócrita que setores da mídia batam em Nicolás Maduro e não falem que a oposição queima alimentos para gerar desabastecimento. Tachar Maduro como ditador e a oposição como democrática é um equívoco”. O critério para a escolha da Assembleia Constituinte do país – as regras foram alteradas a fim de favorecer o governo – se revelou “questionável”, concede Boulos, mas ainda assim ele defende o respeito à soberania venezuelana.
O líder do MTST repete que seu governo priorizará os mais pobres e que “prometer governar para todos é mentir para alguém”. Numa entrevista recente à BBC Brasil, declarou: “O papel da minha campanha não é acalmar o mercado. O mercado que busque tomar Rivotril.” Provocações à parte, começa a perceber que terá de modular certas propostas que defendia à frente do MTST. Já não é tão assertivo quanto a uma auditoria da dívida pública, por exemplo. “Há gente na campanha que propõe a auditoria, mas é uma polêmica. Uma coisa é ser coordenador do MTST, outra é ser candidato a presidente da República.”
Com tempo exíguo na propaganda eleitoral gratuita (provavelmente alguns segundos), Boulos centrará a campanha nas redes sociais e nos atos de rua. Por enquanto, patina entre 0 e 1% nas pesquisas. Na última enquete do Datafolha, divulgada em 15 de abril, não pontuou nos cenários com Lula e atingiu 1% em quatro dos seis cenários sem o ex-presidente. No recorte por segmentos, seu melhor desempenho foi entre eleitores com nível superior de escolaridade e os que recebem de cinco a dez salários mínimos (2% em ambos os casos).
Tal desempenho a cinco meses da eleição permite ao candidato cogitar ser eleito? “Essa é a eleição mais incerta desde 1989”, avaliou Boulos. “Claro que as condições não são fáceis. Sou desconhecido fora de São Paulo, e o PSOL tem pouca estrutura. Mas não entrei para ser testemunha do processo eleitoral e marcar posição. Estou aqui para disputar.”
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