O Homem-Pássaro
Um gavião e seu dono na telona
Gisele Lobato | Edição 137, Fevereiro 2018
Foi um boxer babão quem deu as boas-vindas a Cláudia Varejão e Vasco Costa. Os dois cineastas tinham acabado de estacionar o carro numa pequena estrada na zona rural do município de Loures, na Grande Lisboa. Estavam ali para selecionar um personagem para o novo documentário de Varejão. Com o focinho colado no vidro, o cachorro bufava ruidosamente, intimidando os passageiros.
“Rusty! Rusty!”, gritou o dono do cão, correndo para resgatar seus visitantes. Era Duarte Lopes, um bancário franzino de 47 anos e fala educada que não entendia por que estava sendo considerado para o filme. “Ele acha que há pessoas mais interessantes por aí”, avisou Vasco Costa, o responsável pelo casting, antes de sair do carro. “Eu gosto disso”, respondeu a diretora portuguesa.
O ponto de partida do filme de Varejão é uma observação que a intriga desde a infância. “Sempre reparei que casais que vivem juntos há muitos anos começam a mimetizar alguns gestos e até a própria fisionomia se assemelha”, contou a cineasta, uma mulher alta e magra de 37 anos e rosto comprido. Dois anos atrás, ela resolveu fazer um filme que retratasse a força dos vínculos que os seres vivos – não só humanos – estabelecem entre si.
Com título provisório Amor Fati – uma expressão latina que significa “amor ao destino” –, o documentário terá doze quadros, cada um contando a história de uma dupla unida por traços físicos e laços afetivos. Para encontrar os personagens, Varejão recorreu a Costa, um rapaz baixo e inquieto que não aparenta os 35 anos que tem.
Foi imbuído do espírito de caçador de almas gêmeas que Costa compareceu a um encontro de falcoaria algumas semanas atrás. “Aquilo é uma das coisas mais estranhas que já vi, um monte de homem a olhar para cima sem ver nada”, ele disse à piauí. O rapaz não viu muita graça em nenhum daqueles personagens e estava resignado a sair dali de mãos vazias quando avistou um homem que o cativou de imediato. Ali estava um personagem inequívoco para o filme. Era Duarte Lopes.
Obancário guiou os visitantes para o fundo de seu sobrado branco, de onde se avistam um vale e uma serra. O quintal é o lar de Setembro, um gavião-asa-de-telha de penugem castanho-escura e manchas de um marrom-avermelhado nas asas. Lopes vestiu uma luva de couro e entrou na jaula onde o bicho repousava imponente sobre um arco de metal. O falcoeiro amarrou Setembro pelo pé, prendeu-o em outro poleiro – agora ao ar livre – e voltou a dar atenção aos visitantes.
“Quantos anos ele tem?”, quis saber a diretora. “O Setembro já vai com nove mudas”, respondeu Lopes, referindo-se à troca anual de penas das aves de rapina. O bancário passou, então, a descrever a rotina do gavião, gesticulando expansivamente. Ao ver o braço do dono esticado, Setembro julgou se tratar de um convite e, num ato inesperado, abriu as asas e saltou. “Oooohhhh!”, espantaram-se os cineastas. O falcoeiro tratou de explicar que não era uma demonstração de afeto ou conexão com o dono. “É a luva, ele acha que vai comer.”
Diante do bicho empoleirado no braço do dono, Varejão entendeu enfim por que Costa se empolgara com o personagem. As sobrancelhas sisudas do bancário e as entradas que emolduram seu rosto lembram a penugem da testa da ave. Criador e criatura têm o mesmo olhar profundo, como se Lopes estivesse a mirar uma presa ou Setembro ouvisse um interlocutor com atenção. Se não bastasse toda a semelhança, o bancário ainda tem nariz aquilino.
“O que ele come?”, perguntou Varejão, retomando a conversa. O falcoeiro dirigiu-se para uma edícula com passos curtos que mais pareciam pulinhos. Antes de seguir o anfitrião, Varejão sussurrou para Costa com o olhar incrédulo: “Eles são iguais!” Quando entraram no recinto, o bancário os aguardava balançando um camundongo congelado pelo rabo: “É isso aqui, ó!” Lopes ainda tirou do freezer uma codorna e um pintinho para mostrar aos visitantes. “Mas carne boa é a de mamífero, o resto é muito aguado”, explicou, antes de guardar os bichos. “O saco de ratos ficou para fora”, alertou a cineasta, apontando com o dedo.
Aedícula de chão rústico assemelha-se a um quarto de ferramentas. A parede da esquerda está coberta de gaiolas de canários barulhentos. O ambiente é quase todo tomado pelo material de falcoaria. As roupas de caça estão alinhadas em uma arara, enquanto um quadro na parede exibe uma coleção de caparões artesanais – pequenas carapuças de couro usadas para acalmar as aves de rapina enquanto são manuseadas. “Mas o Setembro não gosta de usá-los, esses eram do outro”, disse o anfitrião.
A conversa foi então interrompida por dois guinchos de gavião que o falcoeiro usa como toque de celular. “É o Setembro?”, indagou a cineasta. “Não, este era o meu Cartucho”, respondeu Lopes, em tom saudosista. “Gravei o som que ele fazia quando eu chegava em casa. É como se ele gritasse: ‘Duarte! Duarte! Tenho fome!’” Ao ouvir a imitação da ave, Costa precisou segurar o riso.
Foi em setembro do ano passado que Lopes viu Cartucho pela última vez. Como fazia quase todos os dias no verão havia quatro anos, o falcoeiro soltou a ave – um gavião-asa-de-telha, como Setembro – para se exercitar. Cartucho voou na direção das montanhas e nunca mais voltou. Naquele dia, o transmissor de localização por rádio que a ave levava não funcionou. Em tom emocionado, o bancário disse que não testara o equipamento. “Foi minha culpa”, penitenciou-se. “Gosto de pensar que ele se arrependeu, mas isso sou eu querendo humanizar as aves. Ele nem sentiu.”
Um mês depois, Lopes adotou Setembro, que pertencia a um amigo. “Mas este não é igual ao meu Cartucho.” O amor de Lopes por seu primeiro gavião passou a dominar a conversa enquanto o sol se punha atrás das montanhas. “Guardei toda a primeira muda dele, sabe?”, disse o criador, levantando-se para buscar a recordação numa prateleira. “Fiquei com muita pena quando ele se foi”, lamentou o falcoeiro. “E com muita pena”, completou, agarrado a um saco de plumas da ave que nunca voltou.