A raiva anda nas ruas: os chamados “apitos de cachorro” atiçam a bolha, falanges e milícias radicais que, assim como a presença dos militares no jogo político, também afetam o comportamento dos atores políticos institucionais ILUSTRAÇÃO: CRIS VECTOR_2020
O jogo dos dois erros
Por que Bolsonaro se equivoca ao minimizar a pandemia e ao tentar se eximir da crise econômica
Daniela Campello e Cesar Zucco | Edição 165, Junho 2020
Um evento tão singular como a pandemia de Covid-19 tem o potencial de reconfigurar os cenários políticos em direções inesperadas. Na Itália, país fortemente afetado pela pandemia, o primeiro-ministro Giuseppe Conte demorou a agir contra o novo coronavírus e, mesmo assim, conseguiu unir os italianos e viu sua popularidade saltar para impressionantes 71%. Na Argentina, o presidente Alberto Fernández implementou políticas bastante duras de isolamento social e, apesar de governar um país cuja polarização política é quase tão radical quanto a brasileira, obteve o apoio de todos os partidos políticos, dos governos estaduais e municipais, e até mesmo de seu antecessor, Mauricio Macri. Em Israel, depois de um ano e três eleições sem conseguir formar um governo, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu principal rival Benny Gantz colocaram suas diferenças de lado e montaram uma coalizão de emergência, em cuja liderança se revezarão nos próximos anos.
Nada indica que uma reconfiguração desse vulto esteja ocorrendo no Brasil. Desde o início da crise sanitária, o presidente Jair Bolsonaro vem radicalizando a estratégia do confronto, adotada em sua campanha presidencial e que reproduz, sem reservas ou constrangimentos, a linha de ação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No caso da pandemia, essa linha de ação consiste em contrapor saúde e economia, uma equação na qual o presidente minimiza as consequências de uma para posicionar-se como o grande defensor da outra. Seguindo o exemplo de Trump, e às vezes até radicalizando as posições do colega norte-americano, Bolsonaro apresentou-se como crítico do isolamento social e das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e alimentou o confronto com os governadores, para os quais tenta jogar a responsabilidade pela crise econômica que já se instalou.
Enquanto outros líderes vêm ganhando popularidade durante a crise, Bolsonaro é um dos poucos a perdê-la. Segundo os números do instituto Datafolha, divulgados no dia 28 de maio, sua taxa de rejeição alcançou 43%, o maior índice de seu mandato até aqui. Ainda assim, Bolsonaro não dá sinais de mudança de rumo. Cabe, então, perguntar qual seria a aposta do presidente e, sobretudo, quais as chances de vir a ser bem-sucedida. As respostas dependem de uma série de considerações sobre temas fundamentais da ciência política – como, por exemplo, a forma com que os eleitores atribuem responsabilidades a seus governantes e a relação entre desempenho econômico do país e sucesso político do dirigente. Com base no conhecimento acumulado sobre esses temas, entendemos que Bolsonaro erra duplamente – ao minimizar a pandemia e ao tentar eximir-se da crise econômica.
Antes mesmo da emergência da Covid-19, Bolsonaro enfrentava condições políticas e econômicas francamente desfavoráveis. Desde o início de seu governo, o presidente vinha sofrendo um processo de desgaste acelerado junto aos outros poderes. No Supremo Tribunal Federal (STF), perdeu interlocutores gradativamente até que, nas últimas semanas, aproximou-se de uma confrontação institucional. No Congresso, sem nunca ter formado uma base de apoio, declarou guerra ao PSL e terminou por abandonar a sigla pela qual se elegeu, mostrando-se posteriormente incapaz de criar seu próprio partido. Com a sucessão de negociações frustradas e as constantes investidas do “gabinete do ódio” contra deputados e senadores, Bolsonaro destruiu os últimos resquícios de confiança por parte das lideranças da Casa – e, mais recentemente, caiu nos braços do Centrão, o núcleo duro do fisiologismo no Parlamento brasileiro.
Na economia, a situação não era melhor. O pífio desempenho observado no ano passado, quando o PIB registrou um crescimento de 1,1%, lançara por terra as expectativas de que o país estava prestes a empreender uma retomada consistente em 2020. Havia ainda um fator mais importante: as condições econômicas externas, que são o melhor termômetro para antecipar o sucesso econômico e político de presidentes sul-americanos, como demonstra a nossa própria pesquisa acadêmica, já apontavam para um cenário adverso nos próximos anos.
O Brasil é um país inserido no mercado internacional como importador de capital (ou seja, com baixa poupança interna e dependente de investimentos vindos do exterior) e como exportador de commodities (tais como minério de ferro, soja ou petróleo, produtos que são comercializados em estado bruto ou numa forma pouco processada e que, portanto, têm características quase idênticas independentemente de quem os tenha produzido). Por essas duas características, o desempenho econômico do Brasil, assim como o de nossos vizinhos sul-americanos, está fortemente atrelado a duas variáveis que fogem ao controle de seus governos. São elas: os preços das commodities e as taxas de juros internacionais. Quando os preços das commodities estão em alta, nossa situação melhora porque há maior injeção de recursos na economia e aumentam as receitas fiscais. Quando os juros internacionais estão baixos ou em queda, nossa situação também melhora porque há um aumento na quantidade de recursos disponíveis para investimento e, historicamente, quando isso ocorre, parte desse capital se dirige para países emergentes.
Apesar de exógenos, esses dois fatores explicam, em grande medida, o sucesso dos presidentes da América do Sul, tanto em termos de sua popularidade quanto de perspectivas eleitorais.
Durante os anos 1980 e até o início dos 1990, quando as commodities estavam em baixa e as taxas de juros internacionais estavam em alta, os regimes militares caíram por toda a região e menos de 20% dos presidentes democráticos que governaram no período conseguiram se reeleger ou eleger seu sucessor. Foi uma época em que os presidentes terminaram seus mandatos muito impopulares, como José Sarney (Brasil), Alan García (Peru) e Rodrigo Borja (Equador), ou nem chegaram a concluí-los, como Raúl Alfonsín (Argentina) e Carlos Andrés Pérez (Venezuela). Já na primeira década deste século, com as commodities em alta e juros internacionais em baixa, a taxa de reeleição passou de 70%. Presidentes de todo o espectro ideológico atingiram níveis de popularidade raramente vistos, e quase de forma simultânea, como Hugo Chávez (Venezuela), Álvaro Uribe (Colômbia), Tabaré Vázquez (Uruguai) e Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil).
Em dezembro de 2019, as commodities já vinham em queda e sem perspectiva de melhoras em decorrência do desaquecimento da economia chinesa e das crescentes disputas comerciais entre a China e os Estados Unidos. A queda nos preços do petróleo que se seguiu à disputa entre Rússia e Arábia Saudita apenas reforçou essa tendência. Em um mundo tão incerto, nem mesmo as taxas de juros próximas de zero produziram o efeito usual de empurrar os investidores para os mercados emergentes.
Todos esses fatores apontavam para um período de deterioração econômica e, por conseguinte, de conturbação política. Nessa conjuntura adversa, não apenas Bolsonaro teria poucas chances de se reeleger em 2022, como haveria uma probabilidade nada desprezível de que ele não conseguisse terminar seu mandato. Nossa pesquisa acadêmica mostra que transições irregulares – golpes, impeachments e renúncias – são mais comuns na América do Sul durante cenários internacionais desfavoráveis. Nesses períodos, o baixo crescimento econômico local, aliado a uma limitação de recursos fiscais, acaba acirrando as tensões redistributivas, o que produz instabilidade política. Apenas metade dos governantes da América do Sul nos anos 1980, eleitos ou não, passaram o cargo para o sucessor na data prevista. Nos anos 2000, em contraste, mais de 80% dos governantes cumpriram seus mandatos. Chegamos a ter um período de dez anos com apenas uma interrupção (o impeachment de Fernando Lugo, no Paraguai), estabelecendo uma marca sem precedentes na região. Passado o pico do boom das commodities, no entanto, já tivemos três interrupções em quatro anos: Pedro Pablo Kuczynski (Peru), Evo Morales (Bolívia) e Dilma Rousseff (Brasil), além de protestos de rua significativos que balançaram os governos de diversos países.
Então veio a pandemia.
Desde que se registrou o primeiro caso oficial de Covid-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, Bolsonaro adotou à risca a mesma retórica de Trump estabelecendo uma dicotomia entre os que “defendem a economia”, como ele, e os que priorizam o “combate à pandemia”, como seus detratores. Na construção desse discurso, Bolsonaro deu declarações menosprezando a gravidade da doença, confrontando governadores que seguiam as orientações dos especialistas em saúde, propalando as virtudes curativas da cloroquina, lançando dúvidas a respeito das ações do governo chinês e desautorizando publicamente as principais autoridades em saúde do seu governo. Nem Trump, no entanto, ousou participar de protestos em meio à pandemia, circular em aglomerações, tocar, espirrar, ou tossir nos seus apoiadores.
Errático, o presidente às vezes parece reconhecer a gravidade da situação apenas para retornar à retórica negacionista no momento seguinte. Revela estar mais preocupado em confrontar adversários reais ou imaginários, próximos ou distantes, que em assumir a liderança no combate à pandemia. Sua principal proposta para enfrentar a crise sanitária foi o “isolamento vertical”, uma jabuticaba brasileira segundo a qual apenas idosos e portadores de comorbidades deveriam permanecer isolados.
O comportamento de Bolsonaro contrasta com o caminho adotado por quase todos os líderes democráticos do mundo, que reconhecem os impactos econômicos da pandemia, por óbvios que são, mas não sabotam os esforços de contenção da doença. O negacionismo ostensivo de Bolsonaro, que se mostra inclusive mais radical do que o de seu colega norte-americano, coloca-o na constrangedora companhia de líderes autoritários como Gurbanguly Berdymukhamedov (Turcomenistão), Alexander Lukashenko (Bielorrússia), e Hun Sen (Camboja).
A persistência de Bolsonaro em seguir uma estratégia oposta à da maior parte dos líderes democráticos apoia-se, consciente ou intuitivamente, em um dos fenômenos mais documentados da ciência política: o voto econômico. Não restam quaisquer dúvidas de que o Brasil enfrentará uma crise econômica sem precedentes em função da pandemia. As estatísticas vêm sendo revisadas todos os dias, mas, no momento em que escrevemos, as projeções oficiais do PIB brasileiro em 2020 passaram de crescimento de 2,4% para queda de 4,7%. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, no entanto, já admitiu mais recentemente que o país poderá ter desempenho ainda pior, próximo dos 5,3% de queda estimados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Por voto econômico, entende-se a relação positiva entre desempenho econômico e sucesso político. Em sistemas presidencialistas, como é o caso do Brasil, essa relação está centrada na figura do presidente, de tal modo que as eleições são um referendo sobre a economia. Não é surpreendente, portanto, que Bolsonaro, assim como qualquer outro líder neste momento, anseie por uma retomada da atividade econômica que favoreça suas ambições políticas.
A ciência, entretanto, indica que um afrouxamento prematuro do distanciamento social pode levar o país a um cenário de tragédia. Ao defender uma retomada rápida a qualquer custo, Bolsonaro arrisca ser inteiramente responsabilizado por mortes evitáveis e, muito provavelmente, indisfarçáveis.
Diversos fatores ajudam a compreender por que Bolsonaro pode estar disposto a correr esse risco. Para além da usual reprodução do comportamento de Trump, é preciso lembrar que um número relevante de pessoas próximas ao presidente testou positivo para o coronavírus sem que sua condição se agravasse substancialmente, ou mesmo que fosse necessária uma internação hospitalar. Bolsonaro já demonstrou, incontáveis vezes, que confia mais na experiência pessoal que em dados sistematizados pela ciência, seja por predisposição de caráter, seja por limitação cognitiva para operar de outro modo. Assim, não seria surpresa descobrir que o presidente sinceramente acredita que a atual pandemia é, de fato, apenas “uma gripezinha”, cujos efeitos são mínimos para quem tem “histórico de atleta” e cuja cura é mesmo a cloroquina fabricada pelo Exército brasileiro. Mais recentemente, Bolsonaro vem cedendo lugar à retórica fatalista de que mortes são inevitáveis, como se não houvesse nada que o governo pudesse fazer a respeito – uma posição que já tinha ficado clara quando o país ultrapassou a marca de 5 mil mortos, e o presidente, ao ser indagado sobre o número de vítimas, saiu-se com uma resposta infame: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”
Outro fator que ajuda a explicar o comportamento de Bolsonaro é que o discurso contra a “histeria”, destinado a minimizar os riscos da pandemia, combina com teorias conspiratórias segundo as quais o vírus foi deliberadamente produzido pela China, cujo objetivo seria expandir seu poder econômico e político. Corroboram essa interpretação da realidade as referências públicas ao “vírus chinês”, bem como as sistemáticas agressões àquele país por parte do deputado federal Eduardo Bolsonaro e dos ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e da Educação, Abraham Weintraub – sem falar nos trechos vetados no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Essa atitude, além de compatível com as fixações de Bolsonaro, que subia à tribuna da Câmara para discursar contra o interesse da China no nióbio brasileiro, vai ao encontro dos anseios de parte do empresariado exposto à concorrência chinesa e apoiador do presidente.
Por fim, sabe-se que Bolsonaro só atua na via do confronto, do conflito, do embate. Comportou-se assim em sua longa carreira como deputado e durante a campanha presidencial. Desde o discurso de vitória na noite da eleição, essa tem sido sua marca mais distinta como presidente. Assim, no momento em que se formou um consenso em torno das diretrizes da OMS – consenso que reúne governadores, parlamentares, magistrados –, não é de todo surpreendente que Bolsonaro caminhe na contramão. Afinal, é preciso inimigos para inflamar bolsonaristas radicais e para ter a quem culpar pelas consequências da crise.
Ao minimizar a pandemia e procurar eximir-se do desastre econômico, Bolsonaro comete dois erros. O primeiro consiste na resposta à economia. O presidente antecipa as consequências políticas de um PIB em queda vertiginosa, mas parece ignorar que, mais do que os efeitos imediatos da crise, o que determinará suas chances de reeleição serão as condições econômicas: não as de agora, nem as de daqui a doze meses, mas as do ano eleitoral de 2022.
É amplamente estabelecido na literatura acadêmica que os eleitores têm memória curta. Ao avaliar o desempenho econômico de um governo, o cidadão atribui um peso desproporcionalmente maior aos meses que antecedem as eleições. Não é uma decisão deliberada de privilegiar períodos mais recentes, nem falta de informação para avaliar o governo como um todo. Os estudos experimentais indicam que, mesmo de posse das informações necessárias, na hora de avaliar seus líderes, os indivíduos ainda se mostram mais influenciados pelo desempenho econômico recente que por todo histórico. A psicologia nos informa que a tendência de supervalorizar experiências recentes em relação ao passado é um viés geral da nossa espécie, que se espalha para outras áreas do comportamento humano.
A memória curta do eleitorado explica perfeitamente o comportamento de Donald Trump, que vai, ao fim das contas, tentar a reeleição em um pleito que ocorrerá dentro de apenas cinco meses. O calendário eleitoral ajuda a entender porque Trump, mais que outros líderes, está tão preocupado com o desempenho da economia norte-americana no curto prazo e com o apoio do empresariado, que vem pressionando por uma volta à “normalidade”. Não é o caso de Bolsonaro. Com um horizonte mais longo que o do colega norte-americano, Bolsonaro tinha a opção de defender um isolamento rígido (com apoio financeiro aos que precisam) capaz de abreviar a pandemia e reduzir o número de mortes. Em vez disso, preferiu embarcar na onda de Trump esquecendo-se que 2022 não é daqui a cinco meses.
Além do descompasso temporal, Bolsonaro certamente ignora que as chances de um presidente se eximir da responsabilidade pelo desempenho econômico são mínimas. Embora hoje a Covid-19 seja a principal causa da deterioração econômica, o mais provável é que em 2022 essa relação de causa e efeito já tenha se perdido na cabeça dos eleitores. Rememorando: nossa pesquisa mostra que uma parcela significativa dos eleitores brasileiros vota com base na economia, sem levar em conta se o desempenho é determinado por fatores que estão fora do controle do presidente. Ou seja: se está bom, está bom, e pouco importa se a causa veio de longe. O mesmo vale para quando está ruim.
São várias as razões que explicam a incapacidade dos eleitores de avaliarem seus governos fazendo o devido desconto a respeito de choques econômicos externos. Em parte, esse fenômeno acontece porque a relação entre economia e voto é mediada pela sensação de bem-estar proporcionada por um país em crescimento. Os eleitores felizes privilegiam o status quo e são mais propensos a apoiar seus governantes independentemente de qualquer outra consideração. Além disso, muito frequentemente os eleitores ignoram a ocorrência desses choques externos, uma situação muito comum entre o eleitorado brasileiro, que é pouco afeito a olhar para fora do país e desconhece até mesmo a realidade dos vizinhos sul-americanos.
Caso esteja na posição de tentar a reeleição em 2022, Bolsonaro dificilmente deixará de ser julgado com base no desempenho da economia, mesmo que os números sejam, em grande parte, resultado da pandemia. Nem mesmo o auxílio emergencial, pago às camadas mais pobres da população, lhe oferecerá dividendos eleitorais, pois é improvável que o benefício seja estendido nos termos atuais até a eleição e a memória do benefício tende a desaparecer com o tempo. Tudo considerado, a única hipótese redentora para o presidente é que a economia venha a demonstrar uma reação espetacular a partir de 2021, uma possibilidade remota, dado que a pandemia não tem data para acabar e que em crises graves anteriores, como em 1930 e 1980, a recuperação tardou a acontecer.
O segundo erro que Bolsonaro comete refere-se à gestão da pandemia. Embora seja também um choque exógeno, a Covid-19 se distingue de outros fatores externos que afetam a economia dos países sul-americanos porque é mais facilmente identificável e passível de comparação.
Se até mesmo alguns economistas mostram-se céticos quanto ao impacto das flutuações dos preços das commodities sobre o desempenho econômico (haja vista a retórica que prevaleceu de que a crise de 2011, por exemplo, foi fundamentalmente doméstica), há poucas razões para esperar que o eleitor comum compreenda esses efeitos. Já no caso da Covid-19, pela natureza do choque e pela cobertura exaustiva da mídia, é praticamente impossível que a população permaneça desinformada. Os brasileiros, hoje, sabem que há uma crise e que ela veio de fora.
Cabe notar que, em tempos normais, são escassas as informações na mídia brasileira sobre as economias vizinhas, o que torna mais difícil cotejar o desempenho do país diante de crises (ou bonanças) externas comuns. Se os brasileiros fossem bem informados sobre as economias vizinhas, saberiam que, assim como aqui, todos os países sul-americanos foram muito bem no período de 2003-08 e que a maioria se recuperou rapidamente do choque negativo de 2009 e assim permaneceu ao menos até 2011. Também saberiam que depois de 2011 nada foi o mesmo na região. Em maior ou menor grau, todas as economias se deterioraram em relação aos anos anteriores. Desde então, andam de lado. Um cidadão assim informado não se surpreenderia com o fato de que todos os presidentes depois de 2011 tenham sido menos populares do que seus antecessores, independentemente de sua agenda.
Com a Covid-19, a comparação é mais fácil. Não é apenas mais fácil, mas muito mais transparente do que em qualquer outro choque exógeno em tempos recentes e, possivelmente, do que qualquer outro choque já estudado na história econômica e política. Todos os dias os brasileiros são informados sobre a taxa de contágio e o número de mortos aqui e em outros países. Já sabemos que ultrapassamos a própria China em número de mortos. Sabemos que já somos o segundo país mais afetado pela pandemia em número de infectados. Também conhecemos os números dos diferentes estados e das diferentes cidades dentro do país.
As comparações, no entanto, vão além das estatísticas. É possível confrontar as respostas dos governos à pandemia, coisa que raramente ocorre com as políticas adotadas para lidar com choques econômicos externos. Quem hoje não sabe que Bolsonaro propõe o fim do isolamento social alegando que o Brasil não pode parar? Outros mais atentos sabem que Espanha e Itália, países dramaticamente afetados pela pandemia, demoraram a adotar o isolamento. A Coreia do Sul, Alemanha e alguns outros vêm sendo bem-sucedidos porque testaram massivamente sua população e usaram os dados para administrar a expansão da pandemia. É possível comparar lá fora e aqui dentro, já que muitos também entendem que, ao defender o fim do isolamento, Bolsonaro contraria a ampla maioria dos governadores que, mais próximos à realidade dramática que se avizinha, vêm tentando “achatar a curva” da doença.
Por tudo isso, com sua aposta diametralmente oposta ao consenso internacional, Bolsonaro tem mais a perder do que a ganhar. A psicologia experimental mostra que as pessoas são mais sensíveis a perdas do que a ganhos equivalentes. Portanto, será uma péssima notícia para o presidente se o brasileiro perceber que o país está perdendo mais vidas do que deveria em decorrência das políticas e do discurso adotados pelo governo federal. A sabotagem sistemática do isolamento por parte de Bolsonaro bem como sua insensibilidade ao sofrimento causado pela pandemia continuarão sendo apontadas por atores políticos e pela mídia. A bolha bolsonariana virtual, tão efetiva na campanha e mesmo durante o governo, dificilmente resistirá às valas comuns abertas para acomodar nossos mortos.
A estratégia de Bolsonaro o impede de se beneficiar de um efeito conhecido como o rally ‘round the flag. A expressão – um chamamento pela “união em torno da bandeira nacional” – refere-se àqueles momentos em que os líderes de um país, ao enfrentarem uma ameaça existencial, conseguem colocar de lado suas divergências políticas e reunir todos – governistas, opositores, independentes – no esforço coletivo de reerguer a nação. É um efeito conhecido durante as guerras, mas também observado em alguns tipos de desastres naturais e, agora, na pandemia. O fenômeno tende a ser ainda mais forte quanto mais dividido estiver o país e quanto mais impopular for sua liderança antes da chegada da crise. Portanto, o Brasil seria um caso de manual. No entanto, ao manter sua postura agressiva de buscar o confronto e o conflito, Bolsonaro desperdiçou a oportunidade única de unir o país em torno de si mesmo e contra o inimigo comum.
Com aparições diárias na televisão, empatia para com as vítimas, respostas diretas, ações e ordens claras, o democrata Andrew Cuomo, governador de Nova York, viu sua popularidade chegar a 77%, apesar de quase sempre trazer notícias muito ruins. Assim como Cuomo, grande parte dos líderes mundiais têm conduzido coletivas e briefings diários, e estão se beneficiando de tréguas da oposição e da simpatia dos cidadãos. No Brasil, julgando que se associar a notícias ruins fosse incinerar sua popularidade, Bolsonaro abdicou do papel de líder e ainda busca impedir que outros políticos (e potenciais concorrentes em 2022) o façam. Governadores que ganharam popularidade na crise têm sido hostilizados pelo presidente, como aconteceu com Luiz Henrique Mandetta, o primeiro ministro da Saúde a deixar o cargo em plena pandemia .
É possível que esse efeito seja transitório e que a avaliação e percepção da competência dos líderes sejam posteriormente revisadas em função dos números finais da epidemia. Andrew Cuomo, por exemplo, tem sido acusado de ter demorado demais para agir, e a comparação com o democrata Gavin Newsom, governador da Califórnia, não lhe é favorável. Seja lá o que o futuro reserva, Bolsonaro, ao contrapor saúde e economia, jogou fora a oportunidade política mais clara gerada pela pandemia, ainda que ninguém saiba por quanto tempo durariam seus dividendos.
Diante de erros tão evidentes na abordagem da pandemia e da economia, é possível que Bolsonaro não esteja mirando em 2022, mas sim na sobrevivência imediata de seu governo. Afinal, há quase um consenso entre juristas de que o presidente já cometeu inúmeros atos e declarações que podem ser caracterizados como crimes de responsabilidade. Mais recentemente, as condutas narradas pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, podem configurar crimes comuns. As condições políticas para afastá-lo do poder esbarrariam na inconveniência de se remover um presidente durante a pandemia e, acima de tudo, no apoio popular que, embora em queda, ainda se mantém em níveis razoáveis. Talvez esse último aspecto seja a melhor explicação para o fato de que Bolsonaro venha se posicionando – ao menos retoricamente – em defesa dos problemas imediatos de desemprego e renda.
Contudo, se o número de mortes ainda não chegou a ponto de sensibilizar a população para o alcance da pandemia, esse momento provavelmente chegará, como chegou em outros países antes do nosso. Se isso acontecer, o peso relativo imediato da economia ante a pandemia diminuirá e, com isso, a manutenção da aposta nas questões econômicas se mostrará progressivamente mais fútil. Embora a tática de Bolsonaro de desafiar a ciência e os demais atores políticos sirva para manter suas bases mais radicais inflamadas, ela tem o efeito colateral de aumentar também a reação de outros setores da sociedade e da política.
Em algum momento, o tamanho da pandemia tenderá a ampliar a queda de popularidade do presidente, ainda que siga apoiado por um grupo bastante vocal e radicalizado. Quando e se esse momento de enfraquecimento chegar, sua remoção do cargo se tornará mais viável, mesmo com o Congresso reunindo-se apenas virtualmente e com as ruas ainda sem protestos populares. Nesse sentido, a alternativa do processo criminal no STF diminuiria os custos para o Congresso e para a classe política, embora com o risco de gerar desgastes imediatos e de longo prazo ao próprio Poder Judiciário.
Chegando a esse ponto, não seria mais possível ignorar o papel central das Forças Armadas. Se poucos acreditam que haja uma possibilidade concreta de autogolpe com apoio militar, é preciso reconhecer que a simples consideração do posicionamento dos militares em um eventual impeachment muda a configuração de forças que determinarão as perspectivas de sua ocorrência. A vasta literatura acadêmica que aplica insights de teoria dos jogos à barganha política mostra que a mera existência de um recurso afeta a estratégia de todos os envolvidos e modifica o resultado do jogo. As bombas nucleares, por exemplo, afetam a barganha entre países mesmo que jamais sejam utilizadas. Por analogia, trazer militares para dentro do palácio num contexto onde a ideia de um regime militar foi razoavelmente normalizada muda, necessariamente, o cálculo do Congresso, do STF e dos demais atores políticos, mesmo que um golpe não venha a ocorrer. Na medida em que não colocam um ponto final nos ataques do presidente, as instituições se apequenam. Ainda que a democracia brasileira sobreviva a Bolsonaro – o que julgamos ser o cenário mais provável – ela terá saído enfraquecida pelo militarismo e pelas agressões sucessivas às instituições de governo e de controle.
É preciso reconhecer que o Brasil teve uma “sorte”: a eleição de um líder autoritário veio a coincidir com um período que não teria sido gentil com nenhum governante. Se Bolsonaro estivesse governando o país num momento de bonança econômica sem precedentes, como aconteceu, por exemplo, com Hugo Chávez na Venezuela, as consequências poderiam ser muito piores. Olhando à frente, precisamos nos perguntar o que podemos fazer para não dependermos da “sorte” quando se trata de evitar que um novo autocrata em potencial utilize a democracia para chegar ao poder e, uma vez eleito, tente destruí-la.
A tática bolsonarista de falar o impensável e depois alegar que foi mal interpretado é eficiente para naturalizar ideias antidemocráticas. Como as instituições “reagem” e “constrangem” o presidente, parece não haver um dano à democracia. Argumenta-se que, como as iniciativas do presidente vêm sendo bloqueadas e (ainda) não há censura, não há jornalistas presos, nem presos políticos, a democracia estaria funcionando plenamente. E, se está funcionando, não estaria em risco.
O raciocínio faz algum sentido descritivo, mas o último passo é tautológico. A sua principal deficiência é que não permite distinguir entre “risco à democracia” e “colapso da democracia”. Quando o principal ator político do país atenta contra a democracia de forma quase permanente, há um risco. Quando as instituições são testadas pelo presidente quase todos os dias enquanto hordas, ainda que virtuais, vilipendiam outros poderes, há um risco. Espalhar e naturalizar ideias antidemocráticas é um risco. Militarizar a política, particularmente num país com histórico de intervenções militares, é um risco. Militares no jogo político, como expusemos acima, desequilibram a harmonia entre os poderes mesmo na ausência de um golpe.
O sistema de freios e contrapesos típico das democracias é engenhoso porque limita a ambição de uns com a ambição dos outros. O caso brasileiro mostra, contudo, que tais freios e contrapesos não conseguem evitar que ideias antidemocráticas sejam propaladas. Foi de molecagem em molecagem presidencial que o golpe militar de 1º de abril de 1964 reapareceu na arena pública como um “movimento em defesa da democracia”. Em comparação com a afirmação de que a ditadura deixou o serviço incompleto e a única forma de arrematá-lo é “matando 30 mil”, a mentira de dizer que o golpe foi um “movimento em defesa da democracia” parece risível. Mas não é. Embora essas ideias possam parecer meras palavras ao vento num primeiro momento (como foram as palavras de Bolsonaro durante as décadas de 1990 e 2000), em outros momentos históricos – exatamente como o de agora – elas podem encontrar um terreno fértil. São os chamados “apitos de cachorro” que atiçam a bolha, falanges e milícias radicais que, assim como a presença dos militares no jogo político, também afetam o comportamento dos atores políticos institucionais.
Como temos observado, o trabalho de conter um presidente que espalha mensagens autoritárias e antidemocráticas é extremamente custoso. Mesmo se a contenção é bem-sucedida, a democracia sai enfraquecida pela mera naturalização da ideia de que esta é a única opção. Assim, o essencial é evitar a figura autoritária.
Na Alemanha, a experiência do nazismo levou a um banimento puro e simples do discurso, dos símbolos e dos partidos que apregoem a ideologia nazista. As regras alemãs são complexas, mas vêm sendo interpretadas pelas cortes ao longo das décadas para incluir também discursos e símbolos comunistas, racistas e terroristas e quaisquer outros que sejam considerados pela Justiça como “organizações com fins anticonstitucionais” e que tenham atitudes destrutivas em relação à democracia. A Alemanha, como diversos países europeus, proíbe também a negação do Holocausto. Nenhuma ação concreta precisa ocorrer. Apenas dizer o indizível é crime.
A doutrina da “democracia defensiva” implica a aceitação da restrição da livre expressão – uma medida claramente antiliberal – em prol da defesa da democracia e da manutenção da liberdade de todos. Defender a democracia com restrições à liberdade é, obviamente, paradoxal e controverso. O exemplo dos Estados Unidos contrasta com o da Alemanha. Os norte-americanos concedem uma prevalência quase absoluta ao direito à livre expressão. Eles não acham prudente permitir que o Estado decida o que pode e o que não pode ser dito, embora mentiras e discursos que incitem ou visem provocar violência não sejam protegidos. Nos Estados Unidos, pode-se fazer uma passeata com símbolos nazistas e clamar pela derrubada do sistema democrático de governo, desde que a passeata e a conclamação fiquem apenas no campo da retórica.
Como cientistas sociais, somos a favor de regras que afetem comportamentos por meio de incentivos, e não de dictats. No entanto, as múltiplas experiências brasileiras com intervenções militares colocam o país numa espécie de “grupo de risco democrático”, o que nos obriga a ser mais vigilantes do que outras sociedades. Nesse contexto, temos que considerar a hipótese de banir, pura e simplesmente, discursos antidemocráticos, incluindo a apologia ou a justificação de desaparecimentos e torturas por agentes do Estado sob qualquer pretexto, a defesa do AI-5, as conclamações para o fechamento do Congresso ou do Judiciário, a celebração do golpe de 1964 como um ato “em defesa da democracia” e a sugestão da tomada do Poder Executivo à força por militares que não tenham sido eleitos para tal. Todos esses discursos deveriam ser passíveis de punição, principalmente – mas não apenas – se proferidos por quem ocupa cargo público ou exerce função pública.
O ordenamento jurídico brasileiro já prevê a ilegalidade de qualquer ação contra a ordem constitucional e o Estado democrático. O problema é que, como Bolsonaro nos mostrou ao longo de sua longa carreira de ataques acintosos à democracia, tais preceitos são excessivamente condescendentes. São, portanto, permissivos também para outros que venham a querer trilhar o caminho bolsonariano no futuro. A adoção de maior rigidez contra esses abusos não seria uma política sem riscos. Mas cada sociedade precisa se preocupar com seus próprios demônios. Os norte-americanos não parecem, ainda, ter o que temer. A Alemanha, no entanto, teme seu passado nazista. O Brasil precisa temer a militarização da política e o saudosismo da ditadura.
Cientista política e professora da FGV/Ebape, autora de The Volatility Curse, a ser lançado pela Cambridge University Press
É professor na FGV, coautor de Partisans, antipartisans, and nonpartisans (Cambridge University Press)
Leia Mais