FOTO: REUTERS_SUKREE SUKPLANG
O lixo da Inglaterra é nosso!
Chegou ao Brasil em contêineres imundos a última palavra em comércio globalizado
Marcos Sá Corrêa | Edição 35, Agosto 2009
O lixo, em si, não tinha nada de mais. Era feio e repugnante como o de qualquer cidade brasileira. O tipo da coisa que o país já tem de sobra, despejando quase 100 mil toneladas por dia em vazadouros públicos, aterros sanitários, terrenos privados, barrancos, rios ou lagoas.
Mas estava embalado em quase 100 contêineres, espalhados do porto de Santos à Serra Gaúcha. E, quando as portas de seus cofres se escancararam no mês passado diante das câmeras de jornais e tevês, foi como se os brasileiros nunca tivessem visto aquilo.
Não tinham mesmo. Pelo menos, como artigo importado. Abria-se à sua frente com aquela cena uma nova era da globalização. A do lixo cosmopolita. E o país foi apanhado de surpresa. Não imaginava, para começo de conversa, que o lixo inglês fosse tão parecido com o similar nacional, vindo de um continente onde se presume que há muitos anos as pessoas se treinam para separar seus resíduos desde a porta da cozinha.
Nem por isso estavam revogadas, assim de repente, todas as diferenças culturais. Poucos dias depois de descobertas as 1 600 toneladas de sucata doméstica, refugo industrial, plásticos diversos, brinquedos imprestáveis, eletrodomésticos estripados, sobras de comida, detrito hospitalar, tampas de vaso sanitário, matéria orgânica em decomposição e vermes, havia três suspeitos presos na Inglaterra, por envolvimento com a exportação de tamanha porcaria para o Brasil. E nenhum aqui.
A Polícia Federal, a Secretaria da Receita, o Ibama e o Ministério Público farejaram pistas que devem ir longe. Mas tendem a se embaraçar nos rastros de outras investigações, ao cruzar no dia a dia com a Operação Satiagraha, a CPI da Petrobras ou a vida e obra do senador José Sarney.
Os ingleses, por enquanto, apenas ainda não sabem separar o lixo. O jornal The Times, por exemplo, não deixou escapar, pelo cheiro dos contêineres, que havia qualquer coisa de podre no comportamento ambiental dos patrícios. Dado que todo lixo acaba sendo um retrato da sociedade que o produz, em negativo, o que foi destinado ao Brasil é exemplar. Havia, por exemplo, caixas de DVDs com o rótulo do Conselho Nacional de Pesquisa sobre Meio Ambiente britânico, que deveriam conter documentários sobre a grande mudança climática.
Encontraram também caixas vazias de leite Tesco. A marca remete à cadeia de supermercados que vende um quarto de todos os alimentos consumidos no Reino Unido. Dois anos atrás, a empresa se comprometeu solenemente a zelar pelas suas emissões de carbono, passando a estampar em todos os seus 70 mil artigos quanto custou cada produto em danos à atmosfera terrestre e à temperatura do planeta. E lá estava a Tesco no monturo.
Toneladas de lixo dificilmente atravessam o Atlântico de cargueiro se não houver quem o despache de um lado e receba do outro. Mas, do lado de cá, trabalhou-se em princípio com a presunção de inocência dos importadores. Há razões históricas para a dúvida. Na abertura dos portos, as primeiras remessas de Londres para o Rio de Janeiro continham, entre outros supérfluos, patins de gelo. Mas isso foi há 201 anos. Hoje, ficou difícil acreditar que se embalem toneladas de lixo sujo sem prevenir o destinatário. “Ou será que ele não iria notar?”, pergunta o engenheiro mecânico José Henrique Penido, que há 32 anos foi contratado pela Comlurb, no Rio de Janeiro, e nunca mais, como ele diz, “saiu do lixo”.
Cinco empresas no Brasil participaram dessa operação, inclusive firmas de assessoria em marketing e comércio exterior. E todas alegam que comeram mosca. O gaúcho Enio Noronha Raffin não se convence. Ele dirigiu na década de 1980 o Departamento de Limpeza Pública de Porto Alegre. Fez um livro chamado Máfia do Lixo. E estranha que, sob a ameaça de multas que, somadas, ultrapassavam 2 milhões de reais, três parceiras do negócio simplesmente fechassem as portas depois da denúncia.
“Parece que não tinham outros clientes”, ele comenta. Raffin sugere que as autoridades investiguem qual seria o destino final do lixo inglês. “Aposto como iam enterrar aqui a 45 reais a tonelada”, diz Raffin. Mesmo incluindo o frete, seria alto negócio. No mercado europeu, isso pode custar 150 euros – ou cerca de dez vezes mais que no Brasil.
Na Inglaterra, a encomenda foi atendida pela UK Multiplas Recycling, do brasileiro Julio César Rando da Costa, registrada somente este ano em Wiltshire. De sua ficha no importers.com, um serviço de comércio internacional via internet, não constam o telefone nem o número de fax. A empresa declara que tem “de 6 a 10” funcionários, “de 1 a 5” escritórios e duas décadas de experiência em reciclagem–- contando, provavelmente, a vida pregressa, como Worldwide Biorecy-clables, uma sociedade de Costa com outro brasileiro, André Oliveira. A Biorecyclables fechou meses atrás. Antes, apesar do “bio” que carrega no nome, ela operava com a compra e venda de plásticos. E também se promovia como especialista em exportação de pneus usados.
O importers.com não põe as mãos no fogo pela UK Multiplas. Registra, no próprio site, que as informações prestadas pela UK Multiplas não puderam ser conferidas pela TradeSafe, uma certificadora on-line. Mas a Wordwide Biorecyclables tem pelo menos um detalhe verossímil. Sua existência coincide com o período em que o Brasil importou 466,6 toneladas de pneus, a maioria na última lona. O Supremo Tribunal Federal proibiu este ano a receptação desse tipo de sucata.
Com tanto lixo circulando pelo mundo, não falta candidato a viajar em sua companhia. Zhang Yin, a mulher mais rica da China, proprietária da Nine Dragons Paper e de uma fortuna avaliada em mais de 3 bilhões de dólares, subiu na vida vendendo o papel descartado nos Estados Unidos às recicladoras de Liaoning, Wuhan e Hebei. A Alemanha, por excesso de limpeza, há anos compra lixo da Itália, fornecido pela Camorra, que controla com mão de ferro a coleta na região de Campânia, para que o governo nem pense em acabar com a sujeira. Os alemães têm um déficit de 4 milhões de toneladas de lixo por ano, para alimentar suas usinas termelétricas, movidas a resíduos. Pagam até 250 euros por tonelada. E o Brasil se arrisca a entrar no jogo com o velho trunfo dos preços irresistíveis.
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