CRÉDITO: CAIO BORGES_2022
O pai eterno
O homem das cruzes se foi
Caio Barretto Briso | Edição 194, Novembro 2022
De vez em quando, a psicóloga Jane da Rocha Cruz não se contém e pega o celular do marido para matar a saudade. Pessoas que conviviam com ele ainda mandam mensagens como se Márcio Antonio do Nascimento Silva pudesse ler. Mas o funcionário público morreu no início de outubro, aos 58 anos. Era alegre e calmo até a pandemia do coronavírus chegar ao Brasil. Daí em diante, algo mudou nele. Há pouco tempo, durante um panelaço contra Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro, Márcio Silva viu o morador de um edifício vizinho defendendo o presidente aos berros na janela. Ele tomou aquilo como ofensa pessoal. Saiu de casa e gritou na frente do prédio onde o bolsonarista estava: “Desça aqui! Você precisa saber da minha dor!”
Um rompante parecido ocorreu em junho de 2020. Na manhã do dia 11, Silva andava pelo calçadão de Copacabana com a mulher. Precisava espairecer. O país já somava 40 mil vítimas da Covid, incluindo o filho dele, Hugo, fruto do primeiro casamento. O jovem morrera dois meses antes, depois de oito dias intubado. Enquanto caminhava, o casal passou por uma manifestação que homenageava os mortos da pandemia – cem cruzes tinham sido fincadas em covas rasas na areia da praia. Muitos pedestres se emocionaram com o ato da ONG Rio de Paz. Um aposentado de 78 anos, porém, achou que a cerimônia servia apenas para “criar pânico” e começou a derrubar as cruzes. Ao presenciar o vandalismo, Silva reagiu de imediato. “Meu filho morreu com 25 anos! Ele era saudável. Respeite a dor das pessoas!”, bradou, com uma máscara sobre a boca e o nariz. Em seguida, recolocou no lugar cada uma das cruzes que o sujeito removera. “Fiz sem pensar”, disse mais tarde. “Simplesmente aconteceu…”
A imagem do pai negro e solitário, fincando de volta as cruzes na areia, correu as mídias sociais, chegou à imprensa e se transformou num símbolo não só da luta contra o vírus como da resistência ao negacionismo de Bolsonaro e aliados. Quase um ano e meio depois, em outubro de 2021, Silva comoveu novamente o Brasil. “Minha dor não é mi-mi-mi. Não é, não é! Dói pra caramba mesmo. Dói, dói, entendeu?”, afirmou à CPI da Covid, no Senado. Sua mulher, Jane da Rocha, nunca quis que o companheiro aceitasse o convite para testemunhar na comissão. Também tinha receio quando o funcionário público dava entrevistas. Era ela, afinal, quem assistia de perto ao sofrimento do marido sempre que ele falava sobre Hugo. “O Márcio me prometeu que, depois da CPI, iria sair dos holofotes e viver para a família”, lembra a viúva de 59 anos, durante conversa com a piauí numa confeitaria de Copacabana, onde o casal festejou o último Dia dos Pais.
Márcio Silva cumpriu a promessa e buscou se reconstruir. Deixou de trabalhar como taxista e arranjou emprego como entregador de compras num supermercado de Botafogo, perto do Cemitério São João Batista. Foi ali que ele enterrou Hugo e outro filho, Gabriel, morto antes do parto, em 2004. Enquanto trabalhava como entregador, Silva prestou concurso no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Passou e se tornou coordenador censitário em Inhaúma, na Zona Norte carioca.
Ele adorava ver filmes de super-heróis com os dois filhos que lhe restaram e os quatro netos. Mas o que Silva mais gostava de fazer era dançar com a mulher em gafieiras. Aprendeu os primeiros passos na escola de Jaime Arôxa, célebre bailarino e coreógrafo recifense, que se mudou para o Rio na década de 1980. Como o pai, Hugo também apreciava danças de salão – tanto que virou um excelente DJ do gênero.
Quando decidiu voltar aos bailes, mais de um ano após a morte do filho, Silva viveu uma grande emoção. “A gente dançou Clube da Esquina nº 2, a canção preferida do Hugo, que nossos amigos botaram para tocar”, conta Jane da Rocha. Um vídeo no YouTube mostra a cena: no meio da música, Silva olha para cima, abraça a parceira e desanda a chorar. “Esse é o melhor lugar do mundo. Aqui não tem preconceito, somos todos dançarinos”, agradeceu, logo depois da homenagem.
O casal se conheceu no fim de 1996, justamente num salão de baile, o do Olympico Club, em Copacabana. Silva aproximou-se de um grupinho de moças e perguntou: “Quem quer dançar?” Jane da Rocha ergueu a mão. Os dois, que tinham saído machucados de relacionamentos recentes, consideravam-se tímidos antes de ingressarem na escola de Jaime Arôxa – ele em 1994, ela um ano depois. “A dança nos fez desabrochar”, diz a psicóloga. Com o tempo, a dupla se tornou conhecida na noite. “Quando dançávamos, eu me sentia leve. A música nos transportava para um estado de felicidade. O estilo do Márcio era romântico. Ele gostava de ficar juntinho, tinha uma delicadeza com a dama. Havia muita cumplicidade”, recorda, usando às vezes os verbos no presente. “O Márcio é muito desligado. Fala que me preocupo à toa, que preciso relaxar.”
Em 19 de setembro, o funcionário público sentiu certa indisposição. Nos três dias seguintes, fez teste de Covid, foi a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), recebeu diagnóstico de alergia, tomou corticoide. No quarto dia, sentindo dores no peito, recorreu a uma Clínica da Família, de onde acabou sendo encaminhado para um hospital privado. Foi atendido de graça, já que não tinha plano de saúde. Assustou-se ao saber que estava com problemas cardíacos. Nunca tivera qualquer transtorno do tipo até então. Rapidamente, acionou a Justiça e conseguiu uma liminar, que obrigou o Estado a lhe garantir uma vaga na rede pública. Foi levado de ambulância ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel. Passou um tempo na UTI coronariana e seguiu para a enfermaria. O pior parecia ter passado.
Em 3 de outubro, dez dias após os sintomas se iniciarem, Jane da Rocha recebeu uma ligação do Pedro Ernesto. Queriam que fosse ao hospital com alguns documentos do marido. “Eu trabalho numa unidade de saúde. Por isso, quando me telefonaram, sabia que o Márcio havia desencarnado.” Ela é adepta do kardecismo. “Primeiro, perdemos o Hugo. Depois, em julho de 2021, a minha mãe, com câncer no pâncreas. Agora o Márcio…”, lamenta a psicóloga, que pretende retornar à gafieira para agradecer o apoio dos amigos – para dançar, precisará de mais tempo.
Na véspera da morte de Hugo, o pai sonhou que ele e o filho estavam deitados numa mesma cama de hospital, um de frente para o outro, abraçados. Jane da Rocha acredita que os espíritos de ambos se encontraram. “Coração é o órgão do afeto, do amor, e o Márcio morrer do coração é muito simbólico. Ele era um paizão, o melhor do mundo, vivia para os filhos. Sei que vai cuidar do Hugo e do Gabriel novamente.”
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