O switcher, a sala de onde se controla tudo o que vai ao ar: o dono da CNN, Rubens Menin, também é austero em casa. Ele e a família têm um grupo de WhatsApp para discutir cortes nos gastos domésticos. O grupo chama-se Tesoura CREDITO: RICARDO FROTA_2020
O que move a CNN Brasil
Com dois sócios que sempre estiveram ao lado do poder, a nova emissora tenta mostrar que pode ser independente
Fabio Victor | Edição 164, Maio 2020
Com luzes vermelhas projetadas sobre toda a circunferência da sua cúpula de concreto, a Oca parecia uma nave futurista de seriado antigo. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer como uma homenagem modernista à habitação indígena que lhe empresta o nome, o prédio, localizado dentro do Parque do Ibirapuera em São Paulo, estava em festa na noite de 9 de março passado. Na entrada, um enorme letreiro, também vermelho, berrava o nome do anfitrião: CNN. Lá dentro, havia mais de 1 300 pessoas, às quais ao final da noite garçons ofereceram espumante francês La Roche Brut (40 reais a garrafa), canapés, porções de massa e cuscuz marroquino, enquanto um saxofonista que recorria ao auxílio do playback tocava músicas de elevador. Estavam ali políticos, empresários, banqueiros, publicitários, jornalistas, cinco governadores de estado e a elite dos três poderes da República.
A noite de celebração tentava abrandar um dia de pânico nos mercados ao redor do mundo. No Brasil, a Bolsa despencara 12,17%, a maior queda desde 1998. A guerra em torno do preço do petróleo travada entre Arábia Saudita e Rússia era um dos motivos para o pandemônio global, mas por trás dessa crise pontual se escondia uma outra, infinitamente maior, que crescia desde o começo do ano: a do novo coronavírus. Àquela altura, o Brasil contabilizava apenas trinta casos de Covid-19 e nenhuma morte. Dois dias depois da festa, em 11 de março, a onu classificou a contaminação como pandemia. Quatro dias depois da festa, o governo de São Paulo determinou a suspensão de eventos públicos com mais de quinhentas pessoas. Oito dias depois da festa, morreu o primeiro brasileiro com a doença. Os mais de 1 300 convidados da CNN Brasil que lotavam a Oca não sabiam, mas aquela era a última reunião social que frequentariam por muito tempo.
No subsolo da Oca, a plateia, distribuída em cadeiras provisórias, ficou diante de um imenso painel com cinco monitores gigantes de tevê. Nas telas, apareceram os executivos Randall Stephenson, presidente mundial da AT&T, a gigante norte-americana de telefonia e dona da WarnerMedia, e Jeff Zucker, presidente mundial da CNN, dando boas-vindas à nova parceira. Stephenson disse que o Brasil “é um mercado muito importante para o setor de mídia e entretenimento da AT&T” e que o “arcabouço regulatório do Brasil parece estar indo na direção certa”. Ambos tinham sido impedidos de vir ao país por causa das restrições impostas pela pandemia do coronavírus. No palco em frente ao painel, todos os apresentadores do canal foram mestres de cerimônia, a começar por William Waack e Monalisa Perrone, dois jornalistas com passagem pela TV Globo. Coube a ela chamar ao palco o grande nome da noite, o empresário mineiro Rubens Menin, principal investidor da CNN Brasil, cujo discurso durou onze minutos e tentou responder uma questão recorrente desde o anúncio do projeto, há quase um ano e meio.
“Muitas pessoas me perguntam”, começou Menin. “Mas por que CNN?” Em seguida, desfiou a resposta. “Muito simples, pessoal. Eu sou brasileiro, moro no Brasil, amo esse país, minha família toda mora aqui, meus filhos, meus netos, temos negócios neste país. E o que a gente mais quer é que este país vá para a frente. Só isso já seria suficiente para levar este projeto adiante.” Menin listou então as três razões que o levaram a abrir a CNN Brasil. Disse que, com sua emissora, quer ajudar a melhorar o ambiente de negócios no Brasil, reverter o êxodo de brasileiros para outros países e, por fim, estimular a filantropia, coisa que a imprensa, na sua avaliação, deveria fazer e pouco faz.
Horas antes de Menin subir ao palco, seus principais negócios, uma construtora e um banco, estavam derretendo na Bolsa de Valores. A MRV é a maior empreiteira residencial do Brasil. Teve lucro de 690 milhões de reais no ano passado e gera cerca de 25 mil empregos diretos e indiretos. Fundada em 1979, deu seu grande salto durante os governos do PT, quando passou a ser a estrela do programa habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV). Em onze anos, desde a criação do MCMV até fevereiro passado, a construtora recebeu 33,98 bilhões de reais, recursos da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). No dia da festa, ao final do pregão, as ações da MRV caíram 11,27%. O Banco Inter, joia do patrimônio de Menin, é um dos cinco maiores bancos digitais do país. Tem 5 milhões de correntistas e lucrou 81,6 milhões de reais no ano passado, quando seu valor de mercado estava estimado em 16 bilhões de reais. Mas, naquela segunda-feira, as ações do banco caíram 22,71%. Mesmo assim, Menin discursou sem abalo. Como que para frisar a seriedade do seu compromisso filantrópico, afirmou: “Eu, pessoalmente, não tenho vergonha de falar, nos últimos cinco anos investi 50 milhões de reais em filantropia.” A plateia aplaudiu. “E nos próximos cinco anos resolvemos investir 100 milhões de reais.” A plateia voltou a aplaudir.
A notícia de que Menin se associara ao jornalista Douglas Tavolaro para trazer ao Brasil a franquia da CNN veio a público em 14 de janeiro de 2019. Até então, Tavolaro ocupara o cargo de vice-presidente de Jornalismo da TV Record, emissora do bispo Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Deixava a empresa, na qual trabalhara por dezessete anos, para liderar a implantação do novo canal de notícias na tevê paga brasileira.
Douglas Tavolaro de Oliveira, 42 anos, vem de uma família de classe média do Tatuapé, bairro da Zona Leste de São Paulo. O pai, que ele define como “metalúrgico”, tinha uma pequena firma de ferro e aço, e a mãe era dona de casa. Tavolaro se formou em jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Em 2001, publicou na revista IstoÉ seu relato sobre as 24 horas em que ficou como refém de presos rebelados na antiga Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, onde fora fazer uma reportagem a respeito do trabalho de evangélicos nas prisões. No ano seguinte, publicou em livro seu trabalho de conclusão de curso, A Casa do Delírio: Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. No mesmo ano, chegou à TV Record para ser produtor e editor. Três anos depois, virou diretor do Departamento de Jornalismo e, em seguida, vice-presidente. Sob seu comando, o jornalismo ganhou mais espaço na emissora. Ele apostou em programação ao vivo e reportagens investigativas, e reforçou a rede de afiliadas.
Em quase duas décadas na Record, Tavolaro conquistou a confiança do bispo Edir Macedo. Assumiu um papel mais institucional e tornou-se um articulador político da emissora, servindo como elo entre o dono do canal e os governantes. Um grampo revelado pelo site BuzzFeed News em 2017 sugere que Tavolaro cobrou um patrocínio em troca de uma entrevista para a emissora – um desvio ético inadmissível no bom jornalismo. Na gravação, Tavolaro conversa com o então senador Aécio Neves (PSDB-MG) sobre o interesse do Palácio do Planalto em que a emissora entrevistasse o então presidente Michel Temer. A certa altura, Tavolaro afirma: “Só tem um jeito de sair. Se tiver uma coisa, entendeu?” Na ocasião, o ministro Moreira Franco, que pleiteava a entrevista com Temer, solicitara à Caixa Econômica Federal “uma avaliação a respeito da possibilidade de patrocínio ao Grupo Record”. O patrocínio não saiu, nem a entrevista. Na época, a Record negou que, na conversa com Aécio Neves, Tavolaro estivesse negociando uma entrevista. Justificou que, no diálogo, o executivo “trabalhava com suas fontes para conseguir as informações e a primazia” e disse que a entrevista com Temer não foi feita porque a emissora pediu exclusividade, o que não foi atendido. O Palácio do Planalto deu uma versão distinta: declarou que nem sequer houve pedido de entrevista. Indagado hoje sobre o assunto, Tavolaro reitera a resposta dada pela emissora na época. “Foi aquilo que a Record publicou mesmo”, disse.
A Igreja Universal e a TV Record apoiaram todos os governos desde a redemocratização. Demonizaram o PT e seus candidatos até aderirem a Luiz Inácio Lula da Silva às vésperas da vitória do candidato na eleição de 2002. Mantiveram uma relação fraternal com Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff, mas apoiaram o impeachment dela na primeira hora, assim como endossaram o seu sucessor, Michel Temer. Em 2018, Edir Macedo anunciou pelo Facebook ainda no primeiro turno seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, quando o atual presidente liderava as pesquisas. Coube ao então vice-presidente de Jornalismo adequar a linha editorial da emissora à preferência do seu dono.
Na campanha presidencial, Tavolaro frequentou a casa do empresário Paulo Marinho no Rio, onde funcionou o quartel-general de Bolsonaro. Como mandachuva do jornalismo da Record, liderou uma das coberturas mais enviesadas da história recente da tevê brasileira. Quando um simpatizante bolsonarista matou a facadas um simpatizante do petista Fernando Haddad em Salvador, o mestre de capoeira Moa do Katendê, a emissora nem sequer noticiou o assassinato, relegando o caso a um breve registro no portal do grupo na internet, o R7. O crime rendeu a Bolsonaro acusações de que a intolerância do candidato contaminava seus seguidores. Uma semana antes do segundo turno, o Domingo Espetacular, programa de notícias e variedades da emissora, divulgou as manifestações de rua a favor de Bolsonaro e de Haddad. Segundo a Folha de S. Paulo, deu 1 minuto e 40 segundos para as manifestações pró-Bolsonaro e 20 segundos para as pró-Haddad. Jornalistas da emissora chegaram a procurar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo para se queixar do desequilíbrio editorial da emissora. Incomodada com a orientação para preservar Bolsonaro no noticiário, a chefe de redação do Jornal da Record, Luciana Barcellos, pediu demissão.
Na Record, Tavolaro tinha rendimentos de alto executivo, na faixa dos 200 mil reais mensais. Tornou-se um homem rico, mora numa casa de alto padrão no bairro paulistano dos Jardins e ganhou muito dinheiro com a participação nas vendas de livros e filmes sobre o chefe. Além de ter escrito, em 2007, com Christina Lemos, uma biografia do líder religioso (O Bispo – A História Revelada de Edir Macedo), ele foi coautor dos três volumes de Nada a Perder, memórias de Macedo, que venderam, segundo anúncio da editora Planeta, “mais de 7 milhões de exemplares em todo o mundo”. Tavolaro foi também coautor de A Dama da Fé, memórias da mulher do bispo, Ester Bezerra, e de Morri para Viver, que conta a história da ex-modelo Andressa Urach, que se converteu à Igreja Universal. Calcula-se que, com os seis títulos, Tavolaro pode ter recebido mais de 30 milhões de reais em direitos autorais.
No cinema, uma indústria bem mais lucrativa, Tavolaro produziu dois filmes baseados na trilogia biográfica do bispo Macedo, que renderam algo em torno de 180 milhões de reais – neste caso, ele diz ter recebido valores fixos pelo trabalho, sem revelar quanto. Nada a Perder 1, lançado em 2018, entrou para a história como a maior bilheteria do cinema nacional, com 12 milhões de ingressos vendidos. A sequência, Nada a Perder 2, que chegou às telas em agosto de 2019, vendeu 6,1 milhões de ingressos. Antes, em 2016, também havia produzido Os Dez Mandamentos: O Filme, uma adaptação da novela homônima apresentada pela Record, que vendeu 11,2 milhões de ingressos. Nenhum desses números, porém, deve ser tomado pelo seu valor de face. Afinal, como foi noticiado pela imprensa na época, a igreja distribuiu ingressos entre os fiéis, fazendo com que os filmes fossem exibidos com lotação esgotada, mas muitas vezes com plateias vazias. No caso dos livros, bispos da Universal compravam vastas quantidades de exemplares para distribuí-los nas igrejas.
Em 2017, deu-se uma breve confluência de interesses. A CNN International Commercial, responsável pelas parcerias da empresa norte-americana, há muito desejava abrir uma franquia no Brasil, nos moldes do que já ocorria em países como Turquia, Japão, Índia, Indonésia e Filipinas. Naquele ano, a TV Record considerava abrir mão da Record News, o seu canal de notícias que jamais vingou, para ter no lugar uma licenciada da CNN. Tavolaro participou da negociação, que acabou terminando sem nenhum acordo. A Record diz que a CNN exigia controle editorial e a maior parte do faturamento. “Era muito para eles e nada para nós”, diz um executivo da Record, que pede para não ser identificado para não se indispor com seus superiores. Procurada pela piauí, a CNN International Commercial declarou que não comenta o assunto. Nos bastidores da CNN Brasil, corre uma única versão: a de que a empresa norte-americana não quis selar uma parceria com a emissora do bispo em função de seus vínculos religiosos e políticos – a Igreja Universal é ligada ao Republicanos, partido que sucedeu o antigo PRB.
Como a negociação não prosperou, Tavolaro começou um voo solo ao ser, segundo ele, procurado por executivos da CNN International Commercial. Entabulou as conversações em nome próprio, embora ainda fosse vice-presidente da Record. Nos Estados Unidos, em Nova York e na cidade de Atlanta, onde fica a sede da CNN, Tavolaro passou a tratar dos aspectos editoriais de um possível contrato. Com o escritório de Londres, base da CNN International Commercial, discutia sobre a questão comercial. Como as conversas evoluíam bem, um grupo de representantes da CNN veio ao Brasil para sabatiná-lo. Durante quase um ano, o jornalista empenhou-se em viabilizar a parceria. Contratou uma consultoria para auxiliá-lo a elaborar um plano de negócios e montou, com auxílio dos norte-americanos, um plano editorial cujos detalhes discutia, discretamente, com funcionários de sua confiança na Record – alguns desses profissionais, posteriormente, foram contratados para trabalhar na cnn Brasil.
“Eu tinha o sonho de empreender”, disse Tavolaro. “Pensava no meu futuro. O que iria fazer da minha vida, da minha carreira, como poderia crescer? Poder me tornar sócio de um projeto como o da CNN é o sonho da minha vida”, completou ele, na sala de reuniões da sede da emissora em São Paulo, de cuja janela pode-se avistar o prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e uma banca de revista que se chamava Terceiro Milênio e, agora, patrocinada pelo novo vizinho, mudou o nome para Banca CNN Brasil. Quando examinava sua trajetória na Record, o jornalista não via futuro para crescer. Os presidentes da emissora sempre tiveram uma condição que lhe faltava: eram todos bispos da Universal. Tavolaro se diz cristão, mas não informa se é adepto de alguma religião ou igreja. (Em dezembro de 2017, ele casou com Raissa Caroline Lima, numa cerimônia celebrada pelo bispo Macedo. Raissa é ex-assessora do partido do bispo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Deixou o cargo depois que uma reportagem do site The Intercept Brasil mostrou indícios de que ela era funcionária-fantasma. Responde a uma ação por enriquecimento ilícito e improbidade administrativa, na qual teve 164 mil reais bloqueados pela Justiça. Ela sempre negou a acusação e disse que exercia efetivamente as atividades do cargo.)
Na negociação com a CNN, Tavolaro precisava de um investidor – e sacou da manga um nome: Rubens Menin. “Eu disse: conheço um empresário que tem gestão de excelência, está bem capitalizado, tem uma construtora que é um sucesso, um banco que é um sucesso, é uma pessoa séria e é um amigo.” A construtora MRV era anunciante na Record e fora uma das patrocinadoras das cinebiografias do bispo Edir Macedo, mas quem aproximou Tavolaro e Menin foi um amigo em comum: o empresário Flávio Carneiro, ex-sócio do Grupo Bel, dono de uma afiliada da TV Record em Varginha, no interior de Minas Gerais. Em 2013, o Grupo Bel comprou da Record o jornal mineiro Hoje em Dia, um negócio que rendeu a Flávio Carneiro uma investigação do Ministério Público. Junto a Aécio Neves e a irmã dele, Andréa Neves, Carneiro é investigado por suspeita de desvio de recursos públicos e pagamento de propina na compra do jornal.
Tavolaro foi apresentar o projeto a Menin na sede do Banco Inter em São Paulo, no oitavo andar de um prédio empresarial na Avenida Juscelino Kubitschek, bairro do Itaim Bibi. Na conversa de duas horas, em que o anfitrião lhe serviu pão de queijo, Tavolaro exibiu o plano de negócios e o projeto editorial que havia bolado com a CNN. Martelou que a marca norte-americana era um símbolo mundial e que, bem trabalhada, poderia ser um bom investimento. Ressaltou seu currículo na Record e lembrou que tinha expertise em se contrapor à TV Globo, o que poderia ser um trunfo, já que a CNN Brasil competiria com a GloboNews, o canal pago de notícias do grupo carioca. No dia seguinte, Menin telefonou para Tavolaro: “Estou dentro.”
Os dois foram então à sede da CNN em Atlanta, onde Menin conheceu a empresa e foi aprovado como investidor. Quando o contrato de licenciamento da marca estava prestes a ser assinado, Tavolaro procurou o bispo Edir Macedo para avisar sobre sua saída da Record. Era o Natal de 2018. O bispo estava em Lisboa e pediu que o executivo fosse até lá. No dia 25 de dezembro, Tavolaro pegou um voo da Latam e partiu ao encontro de Macedo. Chegou na manhã do dia 26 e, à tarde, se dirigiu ao local onde o bispo estava hospedado, um apartamento dentro do Templo Maior, sede da Igreja Universal na capital portuguesa, no bairro de Chelas. Pela versão do jornalista, confirmada por fontes ligadas ao bispo, Macedo aceitou bem a saída de Tavolaro, em consideração à sua lealdade durante quase duas décadas. O líder religioso encorajou o interlocutor a “seguir seu sonho”, mas fez três pedidos. Que Tavolaro esperasse quinze dias para anunciar sua saída, que sugerisse um sucessor (o indicado foi Antonio Guerreiro) e que a CNN não contratasse nenhum apresentador da Record. Tavolaro prometeu cumprir as três exigências. No dia seguinte, 27 de dezembro, embarcou num avião da United Airlines para Nova York, onde se encontrou com seus futuros parceiros para acertar detalhes finais. Procurado pela piauí, o bispo Macedo não quis dar entrevista.
A saída de Tavolaro da Record pode ter sido amigável, mas fomentou uma versão prejudicial para seu novo negócio – a de que o bispo Edir Macedo seria, na verdade, sócio oculto da CNN Brasil, e Tavolaro, seu testa de ferro na nova emissora. A suspeita é tão incômoda que os representantes da CNN introduzem o assunto sem que o interlocutor o mencione. Argumentam que um empresário do porte de Menin não precisaria de investidor oculto, e nem uma empresa do porte da WarnerMedia toleraria um negócio dessa natureza.
O rumor ganhou mais tração quando se soube que a cúpula do jornalismo da Record estava se transferindo em peso para a CNN. Leandro Cipoloni, diretor da Record, virou vice-presidente de Jornalismo da nova emissora. Virgílio Abranches, outro diretor da Record, é agora vice-presidente de Programação e Multiplataforma da CNN. Outros quatro integrantes da linha de frente do jornalismo da Record – André Ramos, Fabiano Falsi, Givanildo Menezes e Roberto Munhoz – foram contratados como diretores do novo canal. Marcus Vinicius Chisco, ex-marido de uma sobrinha de Edir Macedo e também egresso da Record, é o responsável pela área comercial da CNN.
Em setembro do ano passado, os rumores de uma aliança clandestina entre a CNN e o bispo tomaram outra direção. A CNN Brasil anunciou a contratação do apresentador Reinaldo Gottino, que na Record comandava o Balanço Geral, um programa extravagante, com notícia, crime e humor, cujo pico de audiência se dava num quadro de fofocas sobre celebridades. Era um dos raríssimos programas a superar a Globo no Ibope. A contratação violava o acordo que Tavolaro e o bispo haviam selado em Lisboa. Irritada com a traição e a perda de uma de suas principais estrelas do vídeo, a Record passou a exibir em seus telejornais reportagens críticas à MRV de Rubens Menin. Uma delas mostrava que milhares de moradores de imóveis construídos pela empreiteira processaram a empresa pela má qualidade das habitações. Outra rememorava que a MRV chegara a ser condenada por manter em seus canteiros de obras trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Numa conversa com amigos no Templo de Salomão, sede da Igreja Universal no bairro do Brás, em São Paulo, o bispo Macedo afirmou que já considerara Tavolaro “como um filho”, mas que passara a vê-lo “como um inimigo”. Os ataques a Menin e à MRV foram sua maneira de dizê-lo. Ao mesmo tempo, bispos com cargo na cúpula da Record, que nunca toleraram a presença destacada de Tavolaro e travavam com ele disputas de poder, ajudaram a corroer a imagem que Macedo tinha de seu ex-braço direito. Por fim, fizeram com que o dono da Record percebesse o enorme potencial do negócio criado por seu ex-subordinado, que, na CNN Brasil, passou a ter ao seu lado gigantes como a AT&T e a WarnerMedia – empresas excepcionalmente bem posicionadas para a guerra global da era do streaming e que deverão ter atuação mais ativa no Brasil a partir de agora.
Apesar de sócios gigantes e tarimbados, nem tudo na CNN Brasil saiu conforme as práticas mais ortodoxas do mercado, a começar pelo seu nascimento formal. A pessoa jurídica da nova empresa, no início, era uma certa NK 047 Empreendimentos e Participações S.A., uma “empresa de prateleira”, como são chamadas as pessoas jurídicas que estão devidamente constituídas mas não têm qualquer atividade. Quem as adquire costuma ter pressa e quer evitar a burocracia embutida na abertura de um novo negócio. É uma prática comum, mas não é das mais recomendáveis, uma vez que os sócios-fundadores da pessoa jurídica podem, por exemplo, ter problemas judiciais que respinguem nos compradores. No dia em que anunciaram o projeto, os novos donos da NK 047 trocaram o nome da empresa. Passou a chamar-se Novus Mídia S.A. e sua composição acionária ficou assim: Menin tinha 99% das ações e Tavolaro, 1%. O quadro acionário foi alterado logo depois. Menin ficou com 64% e Tavolaro, com 35%, por ter idealizado e implantado o negócio. Leonardo Guimarães Corrêa, diretor financeiro da MRV, ficou com 1%. A mudança na divisão das ações, segundo os sócios, decorreu da situação de Tavolaro: na primeira composição, quando tinha apenas 1% das ações, ele ainda não havia se desligado da Record, onde era funcionário estatutário e, nessa condição, não podia ter participação expressiva em outra empresa. Menin foi apontado como presidente do Conselho de Administração da Novus Mídia.
Os sócios – brasileiros e norte-americanos – não revelam detalhes do negócio, mas nos bastidores os executivos locais dizem que o contrato entre a CNN IC e a CNN Brasil tem duração de 35 anos, renováveis por mais vinte anos, e uma cláusula que garante Tavolaro como presidente durante dez anos. O tamanho do investimento tampouco foi divulgado. Ao apresentar a nova emissora ao mercado publicitário, representantes da CNN Brasil informaram que serão investidos 800 milhões de reais no projeto, mas não especificaram em quanto tempo. Interlocutores de Menin dizem que a cifra gira em torno de 600 milhões de reais nos dois primeiros anos, período em que os sócios têm a expectativa de recuperar pouco mais de 100 milhões de reais. Em conversas com executivos da cnn, Menin chegou a dizer que estava disposto a bancar até cinco anos da operação.
É um prognóstico otimista. Nos tempos que correm, televisão não é exatamente um bom negócio. As emissoras abertas, mesmo gigantes como a Globo, passam por dificuldades e têm feito cortes pesados de despesas. Na tevê paga, o cenário também é ruim, com os canais registrando queda de assinantes, de audiência e de receita publicitária. Rubens Menin é um empresário conhecido pelo pragmatismo e pela austeridade. Em suas empresas, já impôs uma cultura de corte de despesas com projetos batizados de Brigada de Custos e Projeto Canivete. Até em casa, o empresário pensa em meios de economizar. Já revelou que mantém, com a mulher e os filhos, um grupo de WhatsApp em que trocam sugestões sobre como reduzir os gastos domésticos. O grupo chama-se Tesoura. Por que então um empresário com esse perfil resolveu colocar tanto dinheiro num negócio de alto risco – para além dos motivos apontados em seu discurso na Oca?
Nascido em Belo Horizonte em 12 de março de 1956, filho de um casal de engenheiros civis, Rubens Menin Teixeira de Souza, 64 anos, formou-se na mesma carreira dos pais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Junto com os primos Mário Lúcio Pinheiro Menin e Homero Mattos de Andrade e Silva, montou a MRV (M de Mário, R de Rubens e V de Vega Engenharia, a firma de Andrade e Silva), em 1979. Dois anos depois, Andrade e Silva deixou a sociedade. Em 2006, foi a vez de Mário Lúcio Pinheiro sair, e Rubens Menin ficou como único dono.
A MRV começou erguendo casas de alvenaria no bairro de Vila Clóris, periferia de Belo Horizonte. Nos anos 1990, expandiu suas atividades para o Triângulo Mineiro e chegou ao interior de São Paulo. Em seguida, ainda na década de 1990, ampliou os negócios para o Sul do país e, no início dos anos 2000, entrou no mercado das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Já era uma empresa de porte, que construía 4 mil apartamentos por ano, quando, em 2007, abriu seu capital na Bolsa de Valores. E, dois anos depois, entrou no melhor negócio de sua vida – o Minha Casa Minha Vida, o programa de habitações populares implantado no final do segundo mandato de Lula. Formatado por Menin e outros empreiteiros, em conjunto com o governo federal, o programa tornou-se a principal fonte de receita da MRV (cerca de 80%), e a MRV, por sua vez, tornou-se a principal construtora do programa. Em 2012, a empreiteira já estava entregando 40 mil unidades habitacionais por ano, num salto estratosférico em relação ao que tinha cinco anos antes. Especializou-se em construir imóveis padronizados – um apartamento em Belo Horizonte é idêntico a um de Campinas –, com uma técnica conhecida como alvenaria estrutural, que dispensa vigas e pilares e se assemelha à montagem de um Lego. O sistema reduz custos e prazos, aumentando a margem de lucro.
Em 2011, depois de já ter sido notificada dezenas de vezes por descumprir normas de saúde e segurança no trabalho, a MRV foi autuada pelo Ministério do Trabalho por submeter seus trabalhadores a condições análogas à escravidão – coisa que a Record fez questão de lembrar quando quis atacar Menin. A empresa foi punida por aliciar operários de outros estados, promover servidão por dívida e oferecer condições degradantes de trabalho. Acabou sendo autuada pela mesma infração em outras quatro oportunidades e, em 2012, chegou a ser incluída na “lista suja do trabalho escravo”, o que punha em risco seus contratos com o governo federal, mas obteve liminares derrubando a medida. Condenada em primeira instância na Justiça do Trabalho, a empresa fez um acordo com o Ministério Público do Trabalho pelo qual pagou 6,8 milhões de reais e prometeu adequar-se à lei. Alegando que a fiscalização era arbitrária, Menin, na condição de presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), liderou uma campanha pelo fim da publicação da “lista suja” – conseguiu barrar a divulgação e deflagrou uma longa guerra jurídica em torno do assunto, mas a lista acabou voltando a ser publicada.
Os negócios de Menin incluem ainda uma empresa de construção e aluguel de galpões industriais, loteamentos urbanos, lojas de material de construção e uma empreiteira nos Estados Unidos, além do Banco Inter, criado para oferecer crédito imobiliário e consignado. Desde 2008, o Banco Inter está autorizado pelo Banco Central a operar como banco múltiplo, ou seja, com carteira comercial e de investimentos. Por sugestão do caçula do empresário, João Vitor, hoje presidente da instituição, o Inter em seguida se transformou em banco digital, eliminando as agências físicas e concedendo isenção de tarifas. Assim como fizera a MRV, popularizou sua marca ao patrocinar clubes de futebol, no caso o São Paulo, do qual é o maior anunciante. Em 2018, tornou-se a primeira fintech – como são chamadas as empresas de tecnologia voltadas para o setor financeiro – a abrir capital na Bolsa de Valores.
Dono de uma fortuna avaliada em 1,1 bilhão de dólares, Menin integra a lista mais recente de bilionários da revista Forbes, de 2019. Em Belo Horizonte, não frequenta festas nem cerimônias públicas, mas é um homem vaidoso que gosta de atrair a atenção. Desde 2010, tem uma conta no Twitter (quase 400 mil seguidores). Já teve um blog e saiu duas vezes na capa da revista Encontro, uma publicação dirigida para os ricos da capital mineira. Na primeira vez, em outubro de 2015, a manchete dizia: “Ele está no auge.” A segunda, no final do ano passado, estampava: “O filantropo.” Rubão, como o tratam os mais chegados (ele mede 1,91 metro), é patrocinador generoso e torcedor apaixonado do Atlético Mineiro, gosta de vinhos e de jogar tênis. Organiza um torneio para os amigos, o Rubão Closed, uma brincadeira com os grandes torneios chamados de “Abertos”, como o US Open e o Australian Open.
Apegado à família, Menin e a mulher Beatriz, casados há mais de quarenta anos, moram perto dos três filhos, e todos atuam nas empresas da holding, a Conedi. Além do caçula João Vitor à frente do Banco Inter, a primogênita Maria Fernanda é diretora executiva jurídica da MRV, e o filho do meio, Rafael, é copresidente da construtora. Como de praxe, Menin ouviu a família antes de aderir ao projeto da CNN Brasil. A emissora de tevê será o primeiro negócio em que o empresário não atuará diretamente e no qual não colocou familiares ou nomes de sua confiança em posições estratégicas. A única exceção é a diretora financeira, Jercineide Castro, considerada os olhos do investidor na sede da CNN Brasil.
Menin é um governista contumaz. Em 2010, apoiou a eleição de Dilma Rousseff e até apareceu no programa eleitoral elogiando a candidata: “O que me impressionou muito na ministra Dilma, quando eu trabalhei junto com ela no programa Minha Casa Minha Vida, foi o quanto ela conhece do Brasil, o quanto ela conhece dos problemas brasileiros.” Quando Dilma começou a balançar no cargo de presidente em 2015, Menin subiu no muro (“Nós não temos interesse em defender governo, mas também não temos interesse em atacar”), mas chegou a sugerir um “acordão” que evitasse o trauma do impeachment. Em julho de 2017, com Michel Temer no lugar de Dilma, elogiou a diretriz econômica do novo presidente. Em dezembro de 2018, quando Jair Bolsonaro já estava eleito, Menin deu uma entrevista ao Correio Braziliense dizendo que ele e outros tantos empresários estavam “eufóricos” com as perspectivas do novo governo. Entre os aspectos que lhe deixavam tão otimista, estavam os três filhos do presidente. “Alguns gostam de criticar os filhos do Bolsonaro. Poxa, os caras apresentam comportamento 100% ético […] Foram eleitos e têm demonstrado grande capacidade de ajudar […] Vamos parar de criticar.” Um dia depois de Menin dar essa declaração, o jornal O Estado de S. Paulo, publicou a notícia sobre as suspeitas de rachadinha no gabinete de Flavio Bolsonaro. Mas, antes disso, Eduardo Bolsonaro já tinha provocado uma torrente de críticas ao dizer que, para fechar o STF, bastavam um soldado e um cabo.
Até a festa da Oca, e portanto antes do desempenho vexaminoso do presidente na pandemia, Menin continuava empolgado com Bolsonaro. Em seu discurso, ele não exaltou a liberdade de expressão e de imprensa como pilar da democracia, tema caro à boa parte dos convidados à festa. Menin encerrou sua fala dizendo o seguinte: “Em 2013, a população foi às ruas e deixou uma mensagem. Muitos não sabiam o que falar, mas precisavam falar alguma coisa. A mensagem foi dada, muita coisa aconteceu depois de 2013. Mas o que eu quero dizer é que eu sou otimista. Eu vejo a política hoje muito melhor do que ela era no passado. Ainda não é a ideal, estamos evoluindo, passamos por dificuldades conjunturais, estamos melhorando, mas precisamos melhorar mais.”
Os elogios de Menin ao novo governo causaram perplexidade entre os petistas que viram aMRV florescer no Minha Casa Minha Vida. Gilberto Carvalho, que ocupou cargos de alto escalão nos dois governos do PT, conviveu bastante com Menin. Quando sua empresa foi flagrada com trabalho escravo, Menin procurou o Palácio do Planalto. “Chegou meio desesperado”, disse Carvalho, ao relembrar que, com a introdução de novas medidas no âmbito de um acordo nacional com empresários da construção civil, os canteiros de obras da MRV chegaram a ser referência, com melhorias como salas de aula para os operários.
“Rubão é um cara muito simples, decente, tivemos uma relação muito interessante, de camaradagem, eu me dava muito bem com ele, é um sujeito hiperagradável”, disse Carvalho. “Mas confesso a minha surpresa quando o vi aderir ao Bolsonaro de malas e bagagens. Como é que pode um cara que não se cansava de elogiar nosso governo apoiar essa política contrária aos direitos dos trabalhadores?”, disse. “Senti uma espécie de traição, tanto do ponto de vista pessoal quanto em relação ao governo em que ele fez sua fortuna. E agora aparece com a CNN, que, ao que tudo indica, será uma linha auxiliar do bolsonarismo. Fez uma fortuna espetacular nas gestões do PT para agora investir nesse brinquedinho…”
A aproximação da família Bolsonaro com os sócios da CNN Brasil e com a AT&T, proprietária da CNN norte-americana, alimentou a suspeita de que a nova emissora seria um canal chapa-branca. Bolsonaro é simpático à ideia de mudar a lei brasileira segundo a qual empresas de telecomunicação e empresas de produção de conteúdo não podem ter mais de 30% do capital uma da outra. Em 2016, a AT&T comprou a Time Warner, conglomerado de mídia que engloba HBO, TNT, Cartoon Network e, claro, CNN, consumando assim uma fusão acima dos percentuais que a lei brasileira permite para empresas que operam em território nacional. Atendendo pedido do seu colega Donald Trump, Bolsonaro vem tentando destravar o negócio desde o ano passado. Eduardo, seu filho, gravou um vídeo criticando as restrições da lei brasileira, concebida para evitar a concentração de mercado na indústria audiovisual. Em outubro de 2017, a fusão foi aprovada pelo Cade, a autarquia responsável pela defesa da concorrência*. Depois, em parte graças ao lobby da família do presidente, a operação passou pela Anatel, a agência que regula o setor de telecomunicações. Mas ainda depende de uma terceira aprovação (Ancine, agência que cuida da área de cinema e audiovisual) e, finalmente, da alteração da lei pelo Congresso. Se Bolsonaro conseguir de fato mudar a lei, será um benefício inesquecível para a AT&T e a WarnerMedia – e, por extensão, à CNN de lá e daqui.
Acostumado a criticar a imprensa profissional, incitar boicotes a veículos e agredir verbalmente jornalistas, Bolsonaro saudou a chegada da nova emissora, numa das lives que faz às quintas-feiras no Facebook. “Está para ser inaugurada uma nova tevê no Brasil, a CNN Brasil. Pelo que eu tô sabendo, vai ser uma rede de televisão diferente aí da Globo, pelo que eu estou sabendo aí… Torço para que isso seja real realmente”, disse em 27 de fevereiro. Em 15 de março, dia da estreia do canal, Eduardo Bolsonaro demonstrou receio de que a CNN Brasil replicasse a CNN norte-americana, considerada pela direita como uma emissora “esquerdista”. Mas seu tuíte foi mais receptivo do que desconfiado: “Como todo novo empreendimento, é preciso dar 1 chance e desejar sucesso à @CNN Brasil.” E terminou dando a receita para o sucesso: praticar a “isenção verdadeira”, não a dos “isentões”.
Até aqui, Tavolaro tem sido tratado com distinção pelo governo. No ano passado, foi recebido três vezes por Bolsonaro no Palácio do Planalto e almoçou com Filipe Martins, um dos expoentes do “gabinete do ódio” que, naquela altura, ainda era assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais. Neste ano, Tavolaro já se reuniu com o vice-presidente Hamilton Mourão, que esteve na festa da Oca representando Bolsonaro. Menin, por sua vez, já foi recebido por Bolsonaro duas vezes – uma vez na companhia de Tavolaro, e outra junto com um empreiteiro que, tal como o próprio Menin, é contrário à liberação, pelo governo, dos saques no FGTS, de onde sai a verba para a construção de habitações populares. O encontro não figurava na agenda do presidente e só foi incluído quando a imprensa o revelou. Quando a Caixa anunciou em fevereiro sua primeira linha de crédito para a casa própria com taxa de juros fixa, Menin definiu a medida como “um sonho de consumo”. Esteve de novo no Planalto para o evento de lançamento.
Tavolaro afiança que não existe risco de que a CNN Brasil se torne porta-voz informal do governo. Ele faz menção ao contrato de licenciamento, pelo qual a franqueada se compromete a aderir às normas e práticas da franqueadora e a manter um Conselho Editorial “autônomo”. É um modo de dizer que o Conselho de Administração, presidido por Menin, não tem ingerência sobre o que vai ao ar, mas a autonomia parece duvidosa: dos oito integrantes do Conselho Editorial, sete são empregados da própria emissora. São seis jornalistas e um advogado – a oitava conselheira, Shasta Darlington, é uma jornalista norte-americana radicada no Brasil, que foi correspondente da CNN no país e hoje é consultora da CNN IC. Tavolaro aponta outra razão, essa mais pragmática, para fugir de uma cobertura favorável a um governo tão estridente. “O mercado privado que nos sustenta não gosta de radicalismos”, disse. “Querem o caminho do equilíbrio. É o que vamos buscar. Não é discurso. Tenho o apoio da CNN americana para isso”, disse, para arrematar com uma frase de efeito. “Governos e partidos passam. A CNN vai ficar.”
A supervisão da CNN norte-americana, porém, não é garantia de equilíbrio editorial. O caso da Turquia é exemplar. A CNN chegou ao país em 1999 e, com o tempo, começou a se aproximar do autocrata Recep Tayyip Erdoğan, primeiro-ministro desde 2003 e presidente desde 2014. Em 2018, a CNN Türk trocou de mãos e passou a adotar uma linha editorial francamente governista. “A venda mudou tudo”, disse o jornalista Emre Kızılkaya, dirigente do comitê turco do International Press Institute e ex-editor do Hürriyet, um dos principais jornais independentes até ser comprado pela Demirören Holding, a mesma que adquiriu a CNN Türk. “A família Demirören comprou o grupo de mídia para afagar o governo em troca de benefícios. Embora os veículos do grupo estejam deficitários, o governo concedeu-lhes contratos lucrativos em várias áreas, como energia, construção, na loteria nacional e em apostas de futebol”, contou Kızılkaya. Quando a guinada editorial da CNN Türk virou notícia mundial, sites turcos informaram que a CNN International Commercial estava analisando o caso, havia notificado a franqueada e poderia até romper o contrato de licenciamento. Kızılkaya disse que nada aconteceu. “A CNN IC deveria ter cancelado o contrato há muito tempo. Mas parece que eles gostam mais de dinheiro do que da segurança e credibilidade da sua marca.” Indagada pela piauí sobre sua inação, a CNN IC respondeu: “A CNN Türk nos deu garantias e evidências de que estão fazendo todos os esforços para realizar uma cobertura equilibrada, e estamos em contato regular com a CNN Türk em relação às práticas editoriais e de produção.”
Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, as emissoras abertas sempre dominaram o mercado no Brasil. A tevê por assinatura chegou no final da década de 1980, mas só se tornou amplamente acessível em meados dos anos 2000. A melhor fase durou dez anos, de 2005 a 2015. “O Brasil era o mercado mais pujante da tevê paga na América Latina, o crescimento foi explosivo. Nesse período, todo mundo veio bater na nossa porta em busca de parcerias”, lembrou Alberto Pecegueiro, que dirigiu por 25 anos a Globosat, unidade de tevê paga do Grupo Globo, até se aposentar, em fevereiro passado – ele permanece como consultor do grupo e seu representante em joint ventures. “Mas [os investidores estrangeiros] propunham: você pega minha marca, vende publicidade para mim e eu fico com o dinheiro. Então não deu negócio.”
A erosão do setor começou com a crise econômica de 2015 e foi agravada com a chegada do streaming. Disse Pecegueiro: “A Netflix entrou com um leque grande de opções e com um preço insustentavelmente baixo, que, quando se coteja com a tevê por assinatura, parece que a tevê é cara.” O mercado sofreu em toda a América Latina, mas a queda no Brasil foi maior, interpretou o executivo, porque a pirataria aqui é maior. Tudo somado, ele avalia que o momento para se montar uma emissora de tevê paga é amargo. “Para o mercado, acho que a chegada da CNN é boa, concorrência faz bem à pele. Mas tevê paga não é tevê aberta, é construção de marca, leva tempo. E a hora, que já era ruim, ficou pior com a crise da Covid-19. Do ponto de vista promocional, não poderia ter havido melhor momento para lançar o canal. Do ponto de vista comercial, não poderia haver pior momento, porque não vai ter dinheiro.”
Mesmo antes da pandemia, que levará a uma recessão inevitável, já predominava no mercado a avaliação de que o modelo da CNN parece inviável como negócio. A nova emissora conseguiu fechar parceria com todas as grandes operadoras de tevê por assinatura (Claro Net, Sky, Vivo e Oi). Depois de um mês de degustação para todos, o canal ficará disponível para uma base de aproximadamente 14 milhões de assinantes. Vai receber em torno de 2 centavos por assinante, o que, no mercado, não é mau negócio para uma iniciante, mas isso lhe rende 280 mil reais por mês.
O restante da receita vem de publicidade. A CNN estreou com dez patrocinadores de peso – Santander, Cielo, Volkswagen, 99, IBM, Magazine Luiza, Nestlé/Nescafé, Claro, Movida e Heineken/Eisenbahn. O preço oficial das cotas publicitárias variava entre 2 milhões e 10 milhões de reais por ano – o que lhe daria, na melhor das hipóteses, 100 milhões de reais anuais. Mas essas cotas costumam ser vendidas com descontos imensos, às vezes de até 90%. “Muitas vezes o veículo vende a cota a preços muito baixos para ter grandes patrocinadores como sinal de prestígio, um cartão de visitas para o mercado. Em tevê por assinatura, só se vende publicidade se for muito barato”, avaliou o jornalista Eduardo Correa, dono da editora Porto Palavra, especializada em publicações voltadas para a área de mídia do mercado publicitário. “Não tem como essa operação ser viável como negócio. Não sei qual é o outro objetivo, mas, do ponto de vista econômico-financeiro, não há dúvida de que a operação da CNN Brasil será deficitária pelos próximos mil anos. Ainda mais num mercado publicitário já devastado, no qual o Google caiu como um coronavírus.”
A estimativa de executivos do setor é que, num cenário otimista, a CNN Brasil terá uma receita publicitária de 50 milhões de reais por ano – metade do que seus sócios almejam. Numa conta menos otimista, 25 milhões de reais por ano. Ainda que venha a alcançar 50 milhões por ano com publicidade, somados aos quase 3,4 milhões com assinaturas, a receita corresponderá a cerca de 18% dos 300 milhões anuais que, na estimativa do mercado, serão investidos nos dois primeiros anos. No cenário mais realista projetado por analistas do mercado, a receita não chegará a 10% do investimento.
“Essa não é uma iniciativa empresarial. Se você faz um mínimo de conta, o que tem de receita recorrente garantida não paga o salário do William Waack”, disse Paulo Saad, vice-presidente de canais pagos do Grupo Bandeirantes, em sua sala no quarto andar da sede da emissora no bairro do Morumbi, em São Paulo. “Para mim uma coisa é clara: esse canal CNN é inviável se não tiver ligado a algum outro grupo de comunicação. A CNN isolada com capital nacional não roda como uma empresa. Outra opção é que seja um projeto político.”
Dada a empolgação de Menin com Bolsonaro, já se especulou até que empresários leais ao presidente pudessem garantir a receita publicitária da nova tevê em um gesto indireto de agrado ao governo. Luiz Lara, presidente do grupo Lew’Lara/tbwa, com experiência de 39 anos no mercado publicitário, duvidou: “Nunca vi no Brasil empresário colocar dinheiro em alguma coisa por ideologia, o que ele quer é resultado. Se não tiver audiência e resultado, não para de pé.” Com a crise trazida pela pandemia de Covid-19, mesmo quem via a situação da CNN Brasil com mais otimismo agora passou à cautela. Fernando Magalhães, diretor de Programação e Conteúdo da Claro, maior operadora de tevê paga do país, ponderou: “Eles fizeram um movimento corajoso, estão apostando tudo na receita de publicidade e patrocínio, e conseguiram estrear com grandes patrocinadores. O interessante não é ver o que acontece agora, mas o que vai ser daqui a três anos.” E a recessão que virá? “O problema é que não vai abater só a CNN, vai abater todo mundo.”
Para o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD) – que define Menin como “um amigo, um cara doce e sereno, apaziguador, que sempre quer fazer as pazes com todo mundo” –, o que move o empresário a investir na CNN é algo menos palpável. “Deixa eu te falar uma coisa: chega num ponto da vida da gente, cara… Eu sou prefeito de Belo Horizonte. Ganho 27 mil reais líquidos. Eu gosto de ser prefeito de Belo Horizonte. Chegou num ponto da minha vida que eu não quero mais porra nenhuma. O Rubens tá nesse ponto, cara. Você está achando que o Rubens quer ganhar dinheiro? Ele não tem onde pôr mais, não. Tem objetivos que vão mudando na idade da gente. Ele faz porque ele quer fazer”, disse Kalil, numa conversa por telefone. “Se você perguntar o que é a CNN, na minha opinião é uma maluquice de um cara que quer brincar com alguma coisa.”
Há leituras menos cândidas. “Televisão, no Brasil, só é um negócio-fim para a Globo”, diz um político que mantém boas relações com os dirigentes da Record e da CNN, e que pediu para não ser identificado para falar com mais liberdade. “A Record não é um negócio-fim, é um meio para alavancar a Igreja Universal. O SBT não é um negócio-fim, é um meio para o Silvio Santos vender Carnê do Baú, Tele Sena, Jequiti… Essa tevê para o Menin não vai ser um negócio-fim, vai ser um negócio-meio.”
Tavolaro rebate as previsões pessimistas sobre o futuro da empresa. Ele ressalta que a CNN Brasil está inaugurando um modelo de negócio distinto do que vigorou até agora no país. Ao contrário da maioria das concorrentes, sua emissora não tem sede própria (os escritórios e estúdios de São Paulo, Brasília e Rio são alugados), nem contratos com afiliadas, e parte da produção é terceirizada, com equipamentos e profissionais das produtoras Casablanca e Paris Filmes. Tavolaro diz que mudará a lógica da receita publicitária, aproveitando o diferencial de que sua emissora já nasceu na era digital. “Não vendemos uma tevê por assinatura, vendemos um produto multiplataforma. Nos Estados Unidos, quando uma empresa privada coloca xis milhões na
CNN, a tevê paga fica com 35%, 40% disso. O restante é espalhado por outras plataformas, em especial as digitais. Usamos o modelo americano de vendas, que não existe ainda com tanta força no Brasil.”
Menin não quis ser entrevistado para esta reportagem.
A CNN Brasil ocupa dois andares de um prédio empresarial na Avenida Paulista, a 200 metros do Masp, o Museu de Arte de São Paulo. O letreiro gigante que decorou a entrada da Oca fica no saguão do edifício – no dia da festa, foi transportado de caminhão – e virou ponto de selfies de quem passa no local. No primeiro andar, com uma decoração típica de ambientes corporativos compartilhados, estão a redação e os estúdios, também com janelas voltadas para a Paulista. Nos corredores, um painel instiga: The pen is mightier than the sword (A caneta é mais poderosa do que a espada). Outro reproduz um manifesto da CNN chamado Facts First (Fatos em primeiro lugar): “Fatos são fatos. […] Eles são indiscutíveis. Não há alternativa para um fato. […] Fatos não são interpretações. Uma vez que os fatos já estão estabelecidos, opiniões podem ser formadas. E, embora opiniões importem, elas não mudam os fatos. É por isso que, na CNN, nós começamos com os fatos primeiro.” Os dirigentes da área de jornalismo ficam próximos: as salas dos vice-presidentes são contíguas à redação, em cujo centro se sentam os diretores. No segundo andar, decorado com painéis fotográficos de coberturas históricas da CNN norte-americana, estão as ilhas de edição, os setores administrativos e de tecnologia, a principal sala de reuniões e a sala de Tavolaro. E, de novo, um painel com o manifesto Facts First.
Ao anunciar seu desembarque no Brasil, em janeiro de 2019, a CNN informou que contrataria 750 funcionários, dos quais 400 seriam jornalistas. Quando a emissora foi ao ar, um ano e dois meses depois, havia 450 funcionários – 160 jornalistas. A emissora afirma que não houve um redimensionamento radical do projeto original, mas um erro – brutal, neste caso – de comunicação. A maioria da equipe de jornalistas veio de veículos concorrentes, principalmente do Grupo Globo (incluindo a rádio cbn), da Record e da Band, mas um dos principais executivos do projeto, o vice-presidente de Conteúdo, Américo Martins, foi contratado da britânica BBC. O peso da CNN, sinônimo de notícia ao redor do mundo, e o fascínio que a marca exerce para jornalistas de televisão ajudaram a atrair alguns bons nomes – cujo profissionalismo, como ocorre nas boas redações, será a maior vacina contra uma cobertura chapa-branca.
Entre os 160 jornalistas, apenas os comentaristas são autorizados a dar opiniões. Ocasionalmente, os apresentadores ou âncoras podem arrematar um tema com algum comentário. Entre os principais nomes estão Monalisa Perrone, Reinaldo Gottino, Evaristo Costa, Daniela Lima e William Waack. Gottino, cuja contratação tanto irritou o bispo Macedo, comanda dois telejornais, um de manhã, outro à tarde. É o apresentador que passa mais tempo ao vivo na CNN, cinco horas e meia por dia. Waack é a principal contratação da emissora e apresenta o Jornal da CNN, às 21h30. Era apresentador do Jornal da Globo, de onde foi demitido em dezembro de 2017, depois que um microfone captou o jornalista fazendo um comentário racista. Waack se preparava para entrar ao vivo numa transmissão de Washington D.C., quando soou na rua uma buzina insistente. Incomodado, Waack virou-se para a janela e disse: “Está buzinando por quê, seu merda do cacete?” Em seguida, voltou-se para o convidado do programa, e arrematou: “É preto, é coisa de preto.”
A maior aposta da CNN para apresentador era o jornalista Ricardo Boechat, que morreu num desastre de helicóptero em fevereiro do ano passado. Havia meses que a nova emissora cercava o jornalista, então âncora do Jornal da Band. Boechat chegou a recusar as primeiras propostas, mas a CNN insistiu. As partes tiveram um jantar no restaurante Fasano, em São Paulo, e se falavam com frequência por mensagens (pelo celular de Veruska, mulher de Boechat, pois o jornalista não tinha WhatsApp no seu aparelho). Os emissários da CNN estavam confiantes de que chegariam a um acerto. A tragédia se atravessou na história. “É verdade que estavam conversando. Mas ele estava feliz na Band, tinha liberdade para fazer do jeito dele, e vivia uma fase da vida em que estava mais preocupado em ser grato. Então não sei no que ia dar”, disse Veruska.
A estreia da CNN foi adiada seguidas vezes. De início, os donos previram que o canal iria ao ar no início do segundo semestre de 2019. Depois, Menin disse que gostaria que a data fosse 7 de setembro. Em seguida, falou-se em novembro. Finalmente, definiu-se a estreia para março deste ano. A corrida para cumprir o prazo foi dolorosa. Os equipamentos importados atrasaram, as obras dos estúdios foram iniciadas só em dezembro, as jornadas de trabalho se tornaram exaustivas. Na última hora, para assegurar que os estúdios em São Paulo funcionariam bem na estreia, a CNN transferiu para a sede o diretor de Brasília, André Ramos, tido como um resolvedor de problemas. Para seu lugar na capital federal, foi contratado às pressas o jornalista Roberto Munhoz, outro egresso da Record.
A CNN Brasil foi ao ar às oito da noite de 15 de março. Naquele mesmo dia, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, ignorando a orientação de distanciamento social já em vigor por causa da Covid-19, saíram às ruas para apoiar o presidente e protestar contra o Congresso e o STF. Bolsonaro apareceu em frente ao Palácio do Planalto e apertou as mãos de manifestantes, contrariando a recomendação das autoridades da saúde. A CNN fez uma cobertura fria de um dia de noticiário quente. Priorizou se apresentar ao público e exibir material previamente gravado, mas conseguiu um pequeno trunfo: uma entrevista exclusiva com Bolsonaro, ao vivo, no Palácio da Alvorada. De surpresa, o presidente chamou Leandro Magalhães, o plantonista da CNN no palácio. Na entrevista, fez pouco caso da pandemia, disse que as medidas de precaução eram “histeria” e provocou os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre: “Gostaria que eles saíssem às ruas como eu.” O presidente falaria outras duas vezes com exclusividade à CNN. (Em uma coletiva improvisada no final de abril, com a presença de jornalistas de vários veículos, recusou-se a responder qualquer pergunta que não fosse da CNN Brasil.)
Preparada para enfrentar a estreia da rival, a GloboNews, primeira emissora de notícias da tevê paga do país, inaugurada em 1996, ampliou seu tempo de transmissão ao vivo – e deu um banho na concorrência. Levou ao ar uma cobertura especial de mais de seis horas ao vivo, focada na pandemia de Covid-19, com especialistas e serviço, e fez uma repercussão crítica à atitude de Bolsonaro. Para completar, a emissora do Grupo Globo, sob a justificativa de prestar um serviço à população, abriu o sinal para todos os assinantes da tevê paga, mesmo os que não têm pacotes que a incluam. Naquele domingo, a audiência média da GloboNews nas quinze principais regiões metropolitanas do país atingiu 1,1 ponto, contra 0,8 da CNN Brasil. Por enquanto, a liderança de audiência da GloboNews não foi ameaçada, e a CNN Brasil já assumiu a vice-liderança no nicho, que conta ainda com BandNews e Record News. A Grande São Paulo, principal mercado do país, é onde a novata se sai melhor, superando a líder em algumas ocasiões.
Com quase dois meses no ar, a CNN já deu informações exclusivas de grande repercussão, como o áudio de uma conversa em que o ministro Onyx Lorenzoni e o deputado Osmar Terra discutem a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde – ele seria demitido dias depois. Também foi pela CNN que Bolsonaro acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de conspirar para derrubá-lo. Entre os principais veículos do país, a TV Globo e a Globonews foram os únicos a ignorar os furos jornalísticos da CNN, que, por sua vez, se comportou com o devido profissionalismo: noticiou e deu crédito ao Jornal Nacional, quando o telejornal divulgou cópia de um diálogo via WhatsApp em que Bolsonaro diz ao então ministro da Justiça, Sergio Moro, que uma investigação policial contra “deputados bolsonaristas” era “mais um motivo” para trocar o diretor da Polícia Federal. A nova emissora enfrentou também momentos menos gloriosos. Seus telespectadores, por exemplo, não receberam nenhuma informação sobre o primeiro panelaço ocorrido em todo o Brasil contra o presidente, notícia que saiu apenas – e tardiamente – no site da emissora.
Nada se assemelha, porém, ao barulho causado pelo quadro “O Grande Debate”, do matinal CNN Novo Dia, em que dois comentaristas com visões ideológicas distintas são confrontados. A atração começou com a advogada Gabriela Prioli representando a vertente progressista, e o bacharel em direito Caio Coppolla como o contraponto conservador. Prioli deu alguns nocautes retóricos em Coppolla antes que ele precisasse se afastar do programa por motivos médicos – estava com Covid-19, soube-se depois. Em seu lugar, entrou o empresário Tomé Abduch, propagandista do governo Bolsonaro, que sofreu ainda mais nas mãos de Prioli, que, a essa altura, já era a maior estrela ascendente da nova emissora, com perfis nas redes que decuplicaram em seguidores. No dia 27 de março, no entanto, uma crise explodiu. Prioli irritou-se ao ser grosseiramente interrompida pelo apresentador Reinado Gottino, mediador do programa, e pediu demissão pelas redes sociais dois dias depois. Com um contrato de três anos e previsão de multa em caso de rescisão unilateral, acertou permanecer na CNN, que agora prepara uma nova atração para ela, com estreia prevista para maio.
“O Grande Debate” foi inspirado em quadros semelhantes da CNN norte-americana. O mais famoso deles era o “Cross-fire”, que acabou extinto em 2005, depois de ser impiedosamente desconstruído ao vivo pelo comediante Jon Stewart, ressuscitou em 2013, mas voltou a sair do ar no ano seguinte. Em que pesem as críticas sobre seu dualismo caricato, “O Grande Debate” fez sucesso com o público e levou a emissora a ampliar o espaço do formato em sua programação. Agora, além do duelo da manhã, do qual Prioli saiu, há um quadro semelhante no começo da noite, fixo, e outros ocasionais espalhados pela grade.
Lançada num momento econômico de profunda incerteza, a CNN Brasil teve a sorte de estrear num ambiente em que a imprensa em geral ganhou audiência, diante da avidez com que o público passou a buscar um noticiário confiável sobre a pandemia. A emissora adaptou sua programação à nova realidade. Criou um programa especial, batizado de O Mundo Pós-Pandemia, em que convida entrevistados para especular sobre o futuro. Na esteira da crise, também criou outro especial, o CNN Todos Juntos, em que exibe, como sintetizou uma nota da própria emissora, “notícias positivas do combate à pandemia”. Gestos de solidariedade (vizinhos fazem festa-surpresa em condomínio), filantropia (ONG distribui alimentos a crianças carentes) e superação (doentes vencem a Covid-19) inundaram a tela. Exatamente como pediu, dias depois, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, quando reclamou que a imprensa só noticiava mortes e caixões. Exatamente como queria Menin, o filantropo das boas notícias.
*
* Esse trecho foi corrigido. A versão anterior dava a entender que a fusão fora aprovada pelo Cade graças ao lobby da família do presidente, mas Bolsonaro nem havia sido eleito na época. A família do presidente operou na Anatel.