Tão rápido quanto mandava o BNDES apostar num determinador setor, o governo o relegava a segundo plano e mudava seu foco de ação, levando o banco a reboque de decisões erráticas e criando problemas para diversos setores da economia MONTAGEM DE PEDRO ZOLLI SOBRE ILUSTRAÇÃO DE HARRY CLARKE
O ralo
Desde 2008, o BNDES emprestou o equivalente a 10% do PIB para empresas escolhidas pelo governo acelerarem o crescimento. Onde foi parar esse dinheiro?
Consuelo Dieguez | Edição 109, Outubro 2015
A sede do sindicato dos metalúrgicos de Pernambuco fica numa arborizada rua de paralelepípedos próxima ao centro histórico do Recife. O movimento ali costumava ser igual ao de qualquer entidade de classe. Uma ou outra rescisão de contrato de trabalho, pedidos de informações, certa agitação em época de campanha salarial. Costumava ser assim. Desde janeiro, o sindicato vive outra rotina. Diariamente, por volta das oito da manhã, dezenas de homens de todas as idades, com expressões que vão da passividade ao desconsolo, chegam ao acanhado prédio de dois andares para homologar suas demissões.
Todos vêm de um único lugar: o Estaleiro Atlântico Sul, das empreiteiras Queiroz Galvão e Camargo Corrêa, em Ipojuca, a poucos quilômetros do Recife. São tantos os dispensados que o sindicato decidiu reuni-los no auditório da entidade não só para agilizar o processo, mas para evitar o constrangimento adicional de filas do lado de fora do prédio. No espaço de cerca de 60 metros quadrados, sentados em carteiras escolares, os metalúrgicos aguardam em silêncio o chamado de seus nomes.
O Atlântico Sul entrou em operação em 2008, com o objetivo de fabricar para a Petrobras navios e sondas que seriam utilizados na produção de petróleo na camada do pré-sal. O estaleiro atrasou as entregas e teve canceladas 16 das 22 encomendas de navios feitas pela Transpetro – o braço logístico da Petrobras –, embora já tivesse recebido boa parte dos recursos para tocar as obras.
A situação se complicou ainda mais no ano passado. Atolada numa crise financeira, a Petrobras cancelou encomendas futuras. Para piorar, tanto a estatal quanto as empreiteiras encarregadas das embarcações foram flagradas no escândalo da Operação Lava Jato. Com graves problemas de caixa, o Atlântico Sul reduziu o ritmo das obras e fez um drástico corte de pessoal. Dos 5 mil metalúrgicos que trabalhavam no estaleiro no final do ano passado, mais de 2 250 já haviam sido dispensados até setembro deste ano.
Na sede do sindicato dos metalúrgicos de Niterói, no estado do Rio, o quadro não é muito diferente. Numa terça-feira de setembro, postados atrás de um balcão de madeira, dois funcionários da entidade chamavam por ordem alfabética os trabalhadores demitidos do estaleiro Mauá Eisa Petro-Um. O estaleiro fechou as portas em julho, deixando de entregar para a Transpetro três navios em construção. Naquele dia, o sindicato fez 102 homologações de rescisão, só de metalúrgicos cujos nomes começavam pela letra R. Uma centena de Rafaéis, Reinaldos, Renans, Ricardos. Para o dia seguinte, outra leva com a letra R – de Robsons, Rodrigos, Ronaldos – também já estava agendada. Com o fechamento do estaleiro, 2 mil metalúrgicos perderam o emprego. A maioria ainda não recebeu nenhuma indenização. O dono do Mauá, o empresário Germán Efromovich, proprietário da companhia aérea colombiana Avianca, alega falta de recursos.
A indústria naval brasileira iniciou uma animadora revitalização no final dos anos 90 para atender às encomendas da Petrobras e de outras empresas da área que se instalaram no Brasil após a quebra do monopólio da estatal na exploração e produção, em 1998. Entusiasmado com a descoberta das reservas do pré-sal, em 2005, o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu apressar o desenvolvimento do setor. Para tanto, determinou que fossem construídos no Brasil navios, sondas e plataformas de que a Petrobras necessitaria para fazer frente ao esperado aumento de produção de petróleo. A intenção era boa: estimular a indústria nacional, gerar emprego e renda no país. Deu tudo errado.
Para viabilizar um programa tão ambicioso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, foi acionado. A partir de 2007, a instituição passou a repassar fartos recursos do Fundo da Marinha Mercante – constituído com taxas sobre o frete marítimo – e recursos próprios para que a Transpetro encomendasse as embarcações de que a Petrobras precisava. Os financiamentos se estenderam aos empresários que se dispusessem a construir ou renovar estaleiros. Com recursos a juros camaradas, logo as empreiteiras trataram de se aventurar no novo negócio. Assim, surgiram estaleiros como o Atlântico Sul, da Queiroz Galvão e Camargo Corrêa, em Pernambuco; o Enseada, da Odebrecht, na Bahia; e o Rio Grande, da Engevix, no Rio Grande do Sul, além do Mauá Eisa Petro-Um, do empresário Germán Efromovich.
Em parte por ser extremamente pretensioso, em parte porque foi executado de forma atabalhoada, o projeto de estímulo à construção naval – o BNDES liberou vários bilhões de reais ao setor – acabou se transformando num problema. Como não tinham experiência na construção de embarcações de porte titânico, os estaleiros não conseguiram entregar a maior parte do que lhes fora encomendado. Os prejuízos da Petrobras foram gigantescos. Atualmente, a maioria dos estaleiros responsáveis pelas encomendas da Transpetro está operando com dificuldades de caixa, ou, como no caso do Mauá, simplesmente quebrou.
A
indústria naval é apenas um dos tantos negócios estimulados pelo BNDES a partir de 2003 que estão desandando. Nos últimos anos, o banco fez pesados aportes em diversos setores: sucroalcooleiro, comunicações, energia elétrica, transporte e petróleo. Todos estão mergulhados numa crise abissal.
O que torna o quadro mais sombrio é o fato de todo esse desconcerto ter sido provocado pelo próprio governo.
Com a posse de Lula, o BNDES passou a ser o principal financiador de grandes projetos de indução do desenvolvimento econômico idealizados pelo Planalto. Houve, no entanto, muita inconsistência pelo caminho. Tão rápido quanto apostava em um determinado setor, o governo o relegava a segundo plano e mudava seu foco de ação, levando o banco a reboque de decisões um tanto erráticas.
A primeira dessas apostas foi o etanol. O setor começou a se desenvolver quando os carros flex chegaram ao mercado, permitindo o abastecimento com álcool ou gasolina. Com o preço do barril do petróleo nas alturas, os consumidores rapidamente migraram para o etanol, uma opção muito mais barata. Em pouco tempo, metade da frota de veículos brasileira passou a ser abastecida com o combustível. O boom se estendeu por toda a cadeia de produção – do plantio de cana até a fabricação de máquinas e equipamentos para atender às novas usinas. Empolgado com o crescimento acelerado do setor, Lula tratou de fazer o marketing do produto. Passou a chamá-lo de combustível verde-amarelo. Dizia que além de ser a oportunidade de livrar o Brasil da oscilação do preço da gasolina, o etanol era muito menos poluente. Vendeu-se a ideia de que seria o combustível do futuro. Até o começo de 2007, o banco já havia liberado mais de 800 milhões de reais em crédito para construção e renovação das usinas de açúcar e álcool.
Com a chegada de Luciano Coutinho à presidência da instituição, em abril de 2007, o estímulo se acelerou. Em maio de 2008, no lançamento da política industrial do banco, o economista fez um discurso garantindo que o etanol seria apoiado porque envolvia muita inovação para a fabricação de energia não poluente. Com crédito barato para quem se dispusesse a investir, os empresários acharam que o programa era para valer e trataram de buscar financiamento. De lá para cá, o banco colocou mais de 11 bilhões de reais no negócio. O saldo é desolador. Sem perspectivas de solução no curto prazo, o setor está mergulhado numa crise que começou a ser gestada justamente no ano em que presidente do banco traçava um quadro otimista para o combustível.
O entusiasmo de Lula com a energia limpa começou a se desfazer após as descobertas do pré-sal, em 2007. Além disso, quanto mais o preço do petróleo subia no mercado internacional, mais o governo temia que isso pressionasse a inflação. Na tentativa de contornar o problema, o Ministério da Fazenda decidiu congelar, artificialmente, o preço da gasolina na bomba. O impacto sobre o etanol foi imediato. Por ser menos eficiente em termos energéticos, o combustível só se torna vantajoso se custar, no máximo, 70% do valor da gasolina. Os usineiros se viram impossibilitados de reajustar seus preços, sob pena de perder mercado. As usinas passaram a ter prejuízo, e o setor se desestruturou.
Antonio de Pádua Rodrigues é diretor técnico da União da Indústria da Cana-de-Açúcar, a Unica, cuja sede fica no 9º andar de um prédio na avenida Faria Lima, em São Paulo. Em 2013, estive com ele na sede da entidade. À época, ele me passou dados alarmantes. Das 430 usinas que existiam no Brasil em 2007, 41 haviam fechado as portas ou sido incorporadas por outras, até aquele momento. As dificuldades tinham se espalhado por toda a cadeia, afetando também a maioria das indústrias que atendiam o setor. Em agosto deste ano, voltei a procurá-lo. Perguntei-lhe se o mercado havia apresentado alguma melhora nesses dois anos. Pelo tom de voz alterado, Pádua parecia mais revoltado do que naquela longínqua manhã de 2013. Contou que o número de usinas, de lá para cá, encolheu para 360. “Sabe quantas usinas já pararam de lá até agora?” Ele mesmo respondeu: “Setenta.” “E sabe quantas em recuperação judicial? Mais de 60. As usinas vão continuar fechando porque não há qualquer sinalização de que a situação irá melhorar.”
Pádua continuou sua peroração em tom de desabafo. Segundo ele, o índice de endividamento do setor é superior a 200% do faturamento líquido das usinas. “Os usineiros estão vendendo o produto abaixo do custo para conseguir pagar as dívidas”, disse. “O setor está 100% endividado, e 25% dessa dívida é com o BNDES.” Muitas, porém, não têm conseguido sair do atoleiro. A São Fernando, por exemplo, a maior usina de Dourados, no Mato Grosso do Sul, recebeu, em 2003, mais de 300 milhões de financiamento do BNDES para expandir sua produção. Em março deste ano, com uma dívida de 1,2 bilhão, a empresa entrou em concordata.
A explicação de Pádua para a situação é simples. Enquanto, de um lado, o BNDES dava dinheiro barato para as usinas, de outro, o governo comprometia a rentabilidade delas ao adotar uma política confusa para o setor de combustíveis.
O congelamento da gasolina não afetou apenas o etanol. Acabou também impactando duramente o balanço da Petrobras. Embora o petróleo estivesse em alta, as refinarias da estatal compravam o combustível a um preço alto e eram obrigadas a vender a gasolina que processavam a um preço menor do que pagavam pelo óleo cru. O prejuízo da empresa com essa política foi espetacular. Só em 2012, as perdas da companhia com o congelamento foram de 20 bilhões de reais.
A crise internacional de 2008 veio complicar ainda mais as coisas. Com as torneiras de crédito dos bancos internacionais fechadas, a estatal não tinha como se financiar no curto prazo. A Petrobras sofria, por um lado, com a queda de sua rentabilidade – causada, entre outros motivos, pelo congelamento do preço da gasolina. De outro, com a falta de crédito para financiar os novos gastos para acelerar a produção de petróleo no pré-sal, determinada pelo Planalto.
A solução do problema vislumbrada pelo governo foi jogar sobre o BNDES a responsabilidade de ser o grande provedor de crédito nacional. Não só para a Petrobras, como para diversas outras empresas privadas que ameaçavam ir à bancarrota por falta de crédito. Parecia uma solução mágica – e, de fato, o banco ajudou companhias brasileiras a se manter operantes no momento em que o dinheiro, com a crise de 2008, evaporou.
O que seria uma engenhosa solução emergencial acabou se estendendo no tempo, até se transformar em política estrutural do governo. Coube ao BNDES, a partir de 2010, a tarefa de fazer o país crescer a qualquer custo por meio de farta liberação de crédito.
Havia um senão para que o banco assumisse tantas responsabilidades: o BNDES não dispunha de dinheiro em caixa para atender a todas as demandas. O banco historicamente se financiava com os recursos do FGTS e do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, e do retorno dos empréstimos que fazia. Era uma operação equilibrada, já que a remuneração dos recursos do FAT e do FGTS era semelhante às taxas que a instituição emprestava. Essas operações geravam um caixa de cerca de 90 bilhões de reais.
Como reforço, o Tesouro costumava fazer uma suplementação de crédito aos bancos públicos – BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica – para bancar alguns dos empréstimos subsidiados previstos em lei, principalmente para o crédito agrícola. Esses repasses, contudo, não ultrapassavam a média de 14 bilhões de reais ao ano, o que equivalia a 0,5% do Produto Interno Bruto, o PIB. A suplementação era efetuada para que as instituições financeiras estatais não arcassem com o prejuízo de precisar captar a taxas altas no mercado de curto prazo para emprestar a juros baixos de longo prazo a fim de atender a programas específicos do governo.
Numa guinada na política de financiamento mantida até então, as operações do BNDES foram infladas num nível jamais visto em toda a história da instituição. Isso foi feito graças a um astronômico repasse de recursos do Tesouro para o banco. Entre 2008 a 2014, o governo emprestou 450 bilhões de reais ao BNDES para estimular o crescimento da economia, especialmente nos setores de petróleo, energia e infraestrutura. O problema é que toda essa dinheirama não estava prevista no orçamento da União. Isto é, os recursos repassados ao banco não eram obtidos por meio do aumento da arrecadação fiscal, e sim pelo endividamento público.
A estratégia era a seguinte: o Tesouro emitia títulos da dívida pública pagando juros de até 14,5% ao ano. Os reais obtidos com a venda desses papéis eram transferidos ao banco, que os emprestaria às empresas a juros subsidiados de até 3% ano. O resultado dessa política foi um aumento de quase meio trilhão de reais na dívida pública, que hoje chega a 3,2 trilhões. Foi uma das razões que levaram o Brasil a perder o selo de bom pagador, depois de ter seu grau de investimento rebaixado pela agência de risco Standard & Poor’s.
Os números vieram à tona justamente num momento em que a economia brasileira enfrenta uma penosa recessão que afeta o emprego e a renda dos brasileiros. Ou seja, nos últimos dez anos, com o objetivo de acelerar o crescimento, o BNDES desembolsou o equivalente a 10% do PIB, mas, no fim das contas, o país está afundado na pior crise econômica das últimas décadas, com dois anos seguidos de recessão.
Os primeiros repasses do Tesouro ao banco foram feitos em 2008 – os recursos seriam emprestados a companhias com dificuldades para obter crédito, dada a crise bancária internacional. Naquele ano, a instituição recebeu 100 bilhões de reais do Tesouro nacional, por meio do aumento do endividamento público. O socorro continuou em 2009, quando ficou claro que a crise seria mais profunda do que se imaginava de início.
José Roberto Afonso, do Instituto de Economia da Fundação Getulio Vargas, o Ibre, é um economista especializado em contas públicas e ligado ao PSDB. Sua opinião é de que, em 2008 e 2009, o BNDES fez “um brutal e correto” esforço de reestruturação das empresas brasileiras. “Se ele não salvasse a Aracruz, a Sadia, os bancos Votorantim e Safra, haveria uma quebradeira que contaminaria toda a economia”, disse. Além disso, houve um congelamento do crédito, e as empresas ficaram sem ter onde tomar empréstimos. “O erro veio a seguir, quando o governo decidiu continuar com a política de aumentar o endividamento público para forçar o crescimento da economia a qualquer custo.”
O economista Mansueto Almeida Júnior é um dos maiores críticos das operações do BNDES. Durante uma conversa em um café, em Brasília, em julho passado, Almeida, munido de seu laptop, mostrou um gráfico que retrata o descontrole nas operações do Tesouro com os bancos públicos. Em 2007, os repasses não ultrapassavam 14,1 bilhões de reais ao ano, ou 0,5% do PIB. Em 2009, haviam saltado para 140 bilhões, dez vezes mais. No ano seguinte, já sem a justificativa da crise, eram 250 bilhões de reais em repasses acumulados, passando para 406 bilhões em 2012, até atingir inacreditáveis 510 bilhões de reais, o equivalente a 10,6% do PIB no ano passado – desse total, o BNDES ficou com 450 bilhões.[vc_column]
A estratégia de induzir o crescimento por meio do endividamento público tinha o apoio do então ministro da Fazenda, Guido Mantega, do presidente do BNDES, Luciano Coutinho, apadrinhados por Lula e, a partir de 2010, pela presidente Dilma Rousseff. Mas entre os economistas de fora do governo havia quase um consenso de que a política levaria ao desastre.
Eduardo Giannetti da Fonseca, um dos coordenadores econômicos da campanha de Marina Silva à Presidência da República, era um dos que pensava dessa forma. Suas críticas à política de repasses do Tesouro ao BNDES são pesadas. Numa conversa em meados de setembro, ele me disse considerar as operações do Tesouro com o banco “o maior equívoco das últimas décadas”. E explicou. Apesar dos 450 bilhões despejados pelo Tesouro na instituição, por meio do aumento do endividamento público, a taxa de investimento do país – tudo o que é gasto pelo setor público e privado em compra de máquinas, equipamentos, em infraestrutura e construção civil – não saiu do lugar. “Toda essa política extravagante em nome do aumento do investimento não surtiu efeito”, disse.
Os próprios números do governo confirmam a tese. Em 2008, quando começaram os repasses do Tesouro para o banco, a taxa de investimento do país para a formação de capital bruto era de 19% do PIB. Na prática, não mudou desde então. Oscilou um pouco, alcançando 20% nos anos seguintes, e fechou em 19,7%, no ano passado. A taxa de investimento do país é tudo o que é feito agora para que se possa produzir e consumir mais no futuro: estradas, portos, hidrelétricas, ferrovias, plataformas de petróleo. No caso brasileiro, significa que muito pouco foi investido para o futuro, apesar de todo o endividamento do Tesouro nos últimos anos – e que levará quarenta anos para ser pago. “Qualquer país que cresce a taxas de 4 a 5% ao ano não pode investir menos do que 25% do PIB. A nossa taxa de investimento é baixa e caiu ainda mais no ano passado”, disse Giannetti.
Uma das explicações do economista para esse fenômeno é que as empresas tomaram crédito subsidiado do banco para fazer investimentos que já haviam programado, enquanto aplicavam os recursos próprios no mercado financeiro, a taxas muito maiores. Ou seja, o investimento que elas fariam com o dinheiro que tinham em caixa passou a ser feito com financiamento do banco. “As empresas não aumentaram seu investimento com o crédito que receberam do BNDES. Elas fizeram o mesmo investimento previsto, só que usando dinheiro público.”
Outro fator, mais grave, em sua opinião, foi a má aplicação dos recursos do banco. “O critério não foi de eficiência e rentabilidade, e sim um critério político de escolha de campeões nacionais”, afirmou. Deu um suspiro e reclamou. “É uma quantidade de obra parada ou atrasada ou sem sentido que dá tristeza. Quanto desperdício.”
O bem cuidado trecho de estrada que circunda o porto de Suape, em Ipojuca, Pernambuco, contrasta com o restante da esburacada rodovia federal, a BR 101, por onde se segue até o Recife. No complexo do porto, além do Estaleiro Atlântico Sul, fica uma das mais controversas obras tocadas pela Petrobras, a Refinaria Abreu e Lima, que começou a ser construída em 2007. O projeto, orçado inicialmente em 2,3 bilhões de dólares, deveria estar operando a pleno vapor em 2011. Quatro anos depois de estourado o prazo para sua conclusão, a refinaria já consumiu 20 bilhões de dólares, e a estimativa da Petrobras é de que ela só esteja finalizada em 2018. Até lá, a obra receberá mais um complemento de 1,4 bilhão. Do total dos recursos consumidos até agora, 9,4 bilhões de reais foram liberados pelo BNDES.
Considerando todos os empréstimos feitos pelo banco à Petrobras, não é de se estranhar que os financiamentos à petroleira sejam os que mais chamam a atenção nas operações do BNDES. Os repasses começaram a acontecer, em menor escala, em 2003. Naquele ano, o banco liberou 4,5 bilhões de reais para a Gasene – a subsidiária da área de logística de gás da Petrobras –, destinados à construção de dois gasodutos. Até então, a instituição, por força de uma norma interna, era proibida de conceder empréstimos para qualquer empresa estatal, sob pena de contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal. A lógica embutida nessa decisão era evitar que o controlador do banco (no caso, o governo) empregasse seus recursos para financiar suas próprias empresas. Foi essa prática que arruinou os bancos estaduais na década de 90 – quebrados por terem sido usados pelos governos dos estados, acabaram vendidos.
Com o objetivo de acelerar a produção no pré-sal, no entanto, o governo mandou a norma às favas, abrindo caminho para o BNDES emprestar dinheiro a rodo às empresas públicas, principalmente à Petrobras.
Contou mais uma vez com o apoio de Luciano Coutinho, um entusiasta das políticas desenvolvimentistas. A partir de 2008 os financiamentos para a petroleira dispararam. Em menos de dez anos, a companhia se transformou no maior cliente do BNDES, acumulando hoje uma dívida superior a 60 bilhões de reais.
Para permitir que a Petrobras recebesse esse estratosférico volume de recursos, afora o descaso com a norma interna, outra engenhosa operação foi montada. Como o Banco Central impede que as instituições financeiras comprometam mais de 25% de seu patrimônio com um único cliente, o BC, o Ministério da Fazenda e o BNDES fizeram um acordo: as subsidiárias das estatais passariam a ser consideradas companhias independentes. Dessa forma, o banco poderia liberar maior volume de recursos para a Petrobras, pois suas controladas seriam tomadas como outros clientes.
No caso do BNDES, o empréstimo a uma única empresa estava limitado a 24,1 bilhões de reais. No ano passado, no entanto, os financiamentos do banco à Petrobras e a suas controladas atingiram mais que o dobro do permitido. Isso sem contar com a participação acionária do banco na companhia, no total de 20 bilhões de reais. Com a chegada de Joaquim Levy ao comando da Fazenda, o BNDES foi proibido de fazer novos aportes à Petrobras e a suas controladas, e terá três anos para se enquadrar às regras do Banco Central. O estrago nas contas públicas, porém, já ocorreu.
O engenheiro Antônio Menezes ocupou as diretorias de Petróleo e Gás e de Engenharia e Serviços da Petrobras antes de se aposentar da estatal. Hoje ele tem uma consultoria no Rio de Janeiro. Numa manhã nublada de setembro, analisou os empréstimos do banco à petroleira, listados em várias páginas de folhas impressas, e se espantou com o volume. Menezes foi o responsável, em 1998, pelas obras de construção do gasoduto Bolívia–Brasil. Ele contou que, à época, a Petrobras penou para obter um empréstimo de 500 milhões de dólares junto ao BNDES, destinado a financiar o trecho boliviano do gasoduto. “Nós tivemos que buscar aporte no mercado e junto ao Banco Mundial, porque o BNDES não nos liberava dinheiro.” Segundo Menezes, o banco alegava que sua razão de ser era promover o desenvolvimento de empresas que, ao contrário da Petrobras – uma empresa grande e com crédito internacional –, não tinham acesso ao mercado.
Para a Transpetro, os aportes foram generosos e começaram a ser feitos a partir de 2007. Com encomendas garantidas pela Petrobras, o novato Atlântico Sul, por exemplo, foi aquinhoado, no dia 31 de janeiro daquele ano, com contratos no valor de 2,5 bilhões de reais. Os recursos, levantados junto ao Fundo da Marinha Mercante, foram repassados pelo banco para a Transpetro, para que ela pudesse encomendar ao novo estaleiro dez navios-tanque tipo Suezmax. Os Suezmax são navios gigantescos com capacidade de transportar 1,1 milhão de barris de petróleo, metade da produção diária de petróleo no Brasil. A falta de experiência do Atlântico Sul para tocar construções de tamanho porte logo se faria notar. Entregue com dois anos de atraso, o primeiro navio dessa leva de encomendas, o João Cândido, com 274 metros de comprimento, quase adernou na viagem inaugural, e teve que voltar ao estaleiro para reparos.
Cinco meses depois do primeiro empréstimo, o BNDES liberaria para a Transpetro mais 1,3 bilhão de reais, destinados a novas encomendas ao Atlântico Sul. Além disso, em julho daquele ano, o estaleiro receberia um financiamento direto: uma segunda suplementação de recursos, no valor de 513 milhões de reais, para as obras de sua construção. Ou seja, o financiamento dos navios foi aprovado antes mesmo de o estaleiro estar concluído.
Aproveitando-se da farta distribuição de crédito pelo banco, o empresário Germán Efromovich, também com pouca experiência no ramo, resolveu entrar no negócio. Foi prontamente atendido. Em maio de 2007, o BNDES liberaria quase 1 bilhão de reais para a Transpetro encomendar ao Mauá, que Efromovich acabara de arrendar, a construção de nove navios-tanque. Essas encomendas (e os recursos) depois acabaram sendo divididas com o Atlântico Sul. O Mauá Eisa receberia mais um financiamento de 532 milhões de reais do BNDES, em outubro daquele ano, dessa vez para a construção de quatro navios para transporte de gasolina. Em setembro de 2008, nova liberação, dessa vez de 263 milhões de reais.
Da ponte Rio–Niterói se avista um imenso navio azul e amarelo atracado no estaleiro Mauá. A obra está parada. Edson Rocha, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Niterói, contou que, das quatro embarcações encomendadas ao Mauá pela Transpetro, apenas uma foi entregue até agora. “O navio avistado da ponte está 94% concluído, mas o estaleiro diz que não tem dinheiro para terminar a obra, e a Transpetro não repassa novos recursos porque a construção está atrasada”, disse. Um segundo navio já está 80% concluído, e um terceiro ainda está pela metade, contou Rocha. A Transpetro, no entanto, já pagou 70% de tudo que devia. O banco liberou mais de 10 bilhões de reais para o setor naval construir navios e plataformas para a Petrobras, e o que se vê hoje são muitos estaleiros com encomendas da Transpetro paradas.
“Como fazemos? O Mauá diz que não tem dinheiro nem para continuar as obras nem para pagar as indenizações dos trabalhadores.” Edson Rocha levantou da sua mesa no 1º andar do sindicato, desceu até o pátio onde alguns metalúrgicos ainda esperavam pela homologação e disse, indignado: “Todos esses homens aí estão sendo vítimas de roubo. É isso.” Só neste ano a indústria naval já demitiu 14 mil trabalhadores. A maioria porque os estaleiros encarregados das encomendas para a Petrobras estão em dificuldades.
Ainda que parte dos recursos tenha sido repassada ao BNDES pelo Fundo da Marinha Mercante, a responsabilidade pela análise das operações e pela liberação dos recursos para a Transpetro e para os estaleiros é do BNDES. Em caso de calote, o prejuízo fica com o banco. “Será que ninguém percebeu o que estava acontecendo com esses navios?”, questionou Edson Rocha.
Num começo de tarde de setembro, Luciano Coutinho entrou numa das salas de reunião do banco, no 22º andar do prédio preto, envidraçado, no Centro do Rio. Há anos sua política para a instituição está na berlinda. Mas ele parecia tranquilo e relaxado. “Acho que falar mal do BNDES dá ibope. As pessoas aparecem na imprensa”, brincou.
Luciano Coutinho é um homem de modos e fala formais, que não esconde sua origem no patriciado pernambucano. Perguntei-lhe sobre o repasse de 450 bilhões do Tesouro para a instituição e a crítica de que, apesar do enorme endividamento público, o dinheiro não tem gerado impacto positivo na economia. Ele não se alterou. Tranquilamente, como se desse uma aula, começou a desmontar um bloco de papel na sua frente, enquanto enchia cada folha com riscos, traços para explicar a estratégia do banco sob o seu comando.
“Negar que os investimentos do banco tiveram impacto na economia é querer tapar o sol com a peneira”, disse. “Basta ver a taxa de formação de capital em relação ao PIB. Ela saiu de 16% em 2004 para 19% em 2014. Não acho que seja pouco. Acompanhou os desembolsos do banco.” Argumentei que os repasses do Tesouro haviam começado em 2008 e, de lá para cá, a taxa de investimento continuara estável. Ele juntou as mãos e respondeu. “Não fosse pela atuação do BNDES, a taxa de investimento seria muito menor.” E concluiu: “Além disso, o banco não pode ser responsável sozinho pelo crescimento do país.”
Coutinho fez novos rabiscos para explicar as informações de que o Tesouro terá um prejuízo de 38,6 bilhões de reais no ano que vem com os empréstimos que fez ao BNDES e com o Programa de Sustentação do Investimento (PSI), também tocado pela instituição, conforme havia sido divulgado pelo jornal Valor Econômico naquela semana. A soma é superior em 10 bilhões de reais ao que é pago ao Bolsa Família. Embora as informações estejam na proposta orçamentária encaminhada ao Congresso, o presidente afirma, ao interpretar esses números, que é preciso levar em conta não apenas o custo das operações, mas também os ganhos que elas trouxeram. E riscou o papel. “Essas operações geraram investimentos e emprego. Isso tudo retorna ao Tesouro em forma de arrecadação de impostos das empresas. O próprio banco paga imposto de renda, PIS, Cofins e dividendos para o Tesouro por causa do lucro com suas operações”, disse. “Isso não pode ser ignorado na conta.”
Os números previstos no Orçamento indicam que, do buraco nas contas do governo, 29,5 bilhões de reais se referem à diferença entre o custo com que o Tesouro capta o dinheiro no mercado, para repassá-lo ao BNDES, e o quanto o banco lhe paga. A taxa de captação do Tesouro tem ficado em torno de 14,5% contra uma remuneração do BNDES de 6,5%. Esse é o subsídio que o governo concede para que as empresas possam tomar empréstimos a juros mais baixos para investir.
“É preciso ficar claro para a sociedade que o banco é a única instituição que empresta a juros baixos no longo prazo. Os bancos privados não conseguem fazer isso porque tomam dinheiro no mercado a uma taxa mais alta e no curto prazo”, afirmou.
A situação, ele disse, só vai se alterar no dia em que as taxas de juros do Brasil começarem a cair. Nesse momento, as empresas poderão se financiar de outra maneira, inclusive no mercado de capitais. Comentei que ele havia me dito exatamente isso quando o entrevistei em 2010 e que, no entanto, as taxas de juros não haviam baixado para níveis civilizados, o mercado de capitais não havia se desenvolvido e o BNDES continuava sendo o único financiador importante de longo prazo. Coutinho puxou mais um pedaço de papel e rabiscou. “Nós temos o desafio de fazer as reformas tanto no plano fiscal como no financeiro, a fim de que se possa caminhar para um sistema de taxas de juros normal”, disse. E lamentou que o ajuste fiscal que o governo tentou fazer no começo do ano tenha demorado bem mais do que o previsto, o que adia a estabilização da economia.
Pediu licença para atender a um chamado do ministro do Desenvolvimento. Ao voltar, repetiu que os juros “não vão ficar nesse patamar para sempre”. “Eles irão cair em algum momento, e aí o próprio BNDES poderá captar no mercado.”
No começo de maio, a Procuradoria de Contas entrou com representação no Tribunal de Contas da União para que fossem analisadas essas operações do Tesouro com os bancos federais, especialmente o BNDES. Embora ligada ao TCU, a Procuradoria é um órgão à parte, cuja função é dar parecer sobre todos os processos e também iniciá-los, caso haja indícios de irregularidades, encaminhando-os ao TCU.
O procurador Júlio Marcelo de Oliveira é o responsável pela análise desses repasses. Encontrei-o em seu espaçoso gabinete na sede do Tribunal, em Brasília, numa tarde quente de agosto. Ele é um homem jovem, alto, magro, de cabelos escuros e fala mansa. Acomodado numa poltrona preta de couro, fez uma avaliação das operações do Tesouro com o BNDES.
Para ele, esses repasses são muito mais graves do que qualquer outra operação feita pelo governo. “O BNDES foi usado como se fosse um orçamento paralelo. Como se o banco tivesse um dinheiro infinito, um saco sem fundo, quando, na verdade, isso foi feito à custa do endividamento público”, disse. “Pior ainda, de maneira autoritária, sem passar pelo crivo do Congresso.” E continuou, sem alterar o tom de voz. “O que ocorreu ali foi uma fraude. Essas operações violam a Lei de Responsabilidade Fiscal. Como a União não tinha dinheiro, ela fez uma dívida gigantesca e jogou para cima do BNDES.”
Para o procurador, essas práticas já arruinaram as contas públicas no passado – e o país levou anos para consertar o erro, a um custo muito grande para toda a sociedade. “A Lei da Responsabilidade Fiscal veio para impedir esse tipo de manobra. E agora ela foi escancaradamente desrespeitada”, opinou.
Ao repassar os títulos do Tesouro para o banco a uma taxa de 14% e mandar o banco emprestar a 3%, o Tesouro se comprometia a devolver essa diferença para o banco – algo que, no jargão do mercado, se chama equalização das taxas de juros – no mesmo ano em que a operação fosse realizada. Esse também é um dos questionamentos do procurador Oliveira.
“Para não ter que desembolsar o dinheiro no exercício devido, o governo editou um decreto dizendo que pagaria ao banco dentro de 24 meses. Como isso é possível?”, reclamou. “Com que direito o governo se arvora em dizer que pode pagar quando quiser o que é devido?” Ao adiar o pagamento ao banco, a intenção do governo, segundo ele, era melhorar artificialmente o resultado das contas públicas. Tratava-se, disse o procurador, de mais uma “pedalada fiscal”.
A fim de evitar o risco de ser processado pelo Tribunal de Contas, o atual ministro da Fazenda, Joaquim Levy, determinou que parte dos atrasados fosse paga ao banco. No começo do ano a conta era de 7,5 bilhões de reais. Essa é uma das razões para os prejuízos do Tesouro terem sido maiores na proposta orçamentária enviada ao Congresso neste ano.
O uso do banco pelo governo, no entanto, não se esgotou aí. Além de servir para direcionar investimentos sem precisar do aval do Congresso, o BNDES também foi usado para tapar rombos no Orçamento. De um lado, o banco recebia dinheiro do Tesouro para ampliar o crédito oferecido às empresas. De outro, repassava dinheiro de volta ao Tesouro, a fim de que o governo pudesse apresentar bons resultados contábeis. As duas operações, aparentemente capazes de resolver num passe de mágica os problemas tanto da economia real quanto das contas públicas no país, dependiam na verdade de malabarismos contábeis.
O mais impressionante deles foi feito em 2010, e envolveu a Petrobras. Havia sido acertado com o Congresso que, para acelerar o desenvolvimento das áreas do pré-sal, a União poderia fazer um aumento de capital na petroleira. Isso ocorreria da seguinte forma: o governo daria para a estatal o equivalente a 5 bilhões de barris de petróleo pertencentes à União – barris que, na verdade, ainda estavam no fundo do mar, sem terem sido explorados. Em troca, a Petrobras pagaria esse petróleo ao governo com o equivalente em ações da companhia.
No dia do fechamento da operação, no entanto, o negócio foi alterado. Em vez de dar os 5 bilhões de reais em ações para o governo, a Petrobras deu 2,5 bilhões. A outra metade foi paga em dinheiro. Como a petroleira não tinha esse montante em caixa, a estratégia foi fazer o BNDES comprar metade das ações da empresa, entregar o dinheiro para a Petrobras, que, em seguida, o repassou para o Tesouro. Com essa manobra, o governo conseguiu arrecadar mais de 30 bilhões de reais, que foram repassados ao Tesouro. Assim, o governo obteve um superávit em suas contas naquele ano equivalente a 1% do PIB. Mais ou menos correspondente ao esforço fiscal que o ministro Levy anunciava ser necessário fazer neste ano.
À época, o economista-chefe do Banco Santander, Alexandre Schwartsman, chamou a atenção para a manobra durante um debate na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, onde estava presente o então presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, que discordou das críticas. Houve um bate-boca e, três semanas depois, o executivo foi demitido do Santander. “Esse foi o primeiro truque fiscal feito entre o Tesouro e o BNDES”, disse-me Mansueto Almeida, enquanto bebia o seu café. “O banco não precisava ter comprado essas ações, mas fez o negócio apenas para que o governo registrasse um superávit em suas contas.”
Depois disso, segundo ele, o uso do banco pelo governo para melhorar o caixa do Tesouro ficou escancarado. Um dos artifícios foi exigir o pagamento de dividendos do BNDES para o Tesouro. Como a União é a controladora do banco, ela tem direito de receber pelo menos parte do lucro gerado por ele. Esses recursos passaram a ser “turbinados”. Funcionava assim: o Tesouro repassava dinheiro para o BNDES, que, com os novos recursos, aumentava a sua carteira de empréstimos. Uma carteira de empréstimos maior significa lucro maior, ainda que no futuro. Assim, ao mesmo tempo que o governo aumentava o volume de créditos oferecidos pelo banco, ele tornava o banco, do ponto de vista contábil, mais “lucrativo”.
Com lucro supostamente maior, o BNDES pagava mais dividendos ao Tesouro. E pagava tudo que podia. Embora as normas do Banco Central permitissem que a instituição repassasse apenas 25% de seu lucro para o Tesouro, entre 2009 e 2013 o BNDES repassou quase tudo que era contabilmente possível. “O BNDES, em vez de reter parte dos dividendos para investir, como lhe era facultado, repassou 100% do seu lucro para o Tesouro também com o objetivo de melhorar as contas do governo”, disse Almeida. Entre 2008 e 2014, a instituição pagou quase 50 bilhões de reais de dividendos ao Tesouro.
O governo, com todos esses recursos, apresentava melhores resultados de superávit fiscal. Mais grave ainda. Ao inflar seu resultado com os repasses do Tesouro, o banco passou a fazer uma generosa distribuição de lucro a seus funcionários, que chegaram a receber, a cada ano, o equivalente a três salários extras.
Desde sua criação, em 1952, o objetivo primordial do BNDES tem sido financiar projetos de longo prazo, principalmente na área de infraestrutura, como construção de estradas, portos, hidrelétricas. Para tanto, o banco se propõe a oferecer, às empresas que quiserem investir, taxas de juros mais baixas do que as cobradas pelo mercado. No começo da década de 50, o Brasil ainda engatinhava na infraestrutura, e o banco foi o principal responsável por desenvolver esses projetos. No governo Juscelino Kubitschek, o BNDES, à época ainda chamado de BNDE, teve papel fundamental na adoção do Plano de Metas para os anos de 1956 a 60, que ajudou a desenvolver os setores de energia e transportes, além de ter impulsionado a indústria de base e a agricultura.
Em sua tese de doutorado na Universidade Johns Hopkins, Seth Stevens Colby, funcionário do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), fez um alentado estudo sobre o BNDES. No texto ele relata algumas histórias curiosas, que ilustram o espírito de corpo de uma equipe técnica desde o início considerada a elite do funcionalismo brasileiro. Em 1961, por exemplo, o então presidente Jânio Quadros enviou um de seus famosos bilhetinhos ao presidente do banco, com a instrução de liberar dinheiro para as vítimas de uma enchente no Nordeste. A diretoria do banco se recusou a fazer o repasse, alegando que não era esse o papel da instituição, e sim do Tesouro.
A equipe técnica do BNDES também tentou resistir a algumas investidas do presidente João Goulart. Em 1963, seu cunhado, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, pressionou o banco a aprovar um empréstimo para uma cooperativa agrícola do estado. A diretoria do banco negou, mas o presidente da instituição, Leocádio Antunes, fazendo prevalecer o seu voto, liberou os recursos.
Nessa mesma época, o então governador da Bahia, Lomanto Júnior, queixou-se a Goulart de que o BNDES estava favorecendo o Sul e o Sudeste, em detrimento do Nordeste. Para agradá-lo, Jango decidiu nomear Lelivaldo Brito, um fazendeiro com vastas extensões de terra na Bahia, cunhado de Lomanto, para a presidência do banco. O então ministro da Fazenda, San Tiago Dantas,reagiu e proibiu a indicação, justificando que ele não tinha competência técnica para o cargo. Dantas acabou deixando o posto, e o novo ministro aprovou a indicação de Brito. A reação foi imediata. Tanto a imprensa quanto o corpo técnico do banco protestaram. A pressão pela recusa a seu nome chegou ao Senado, que vetou a nomeação. Assim, pela única vez na história, o banco ficou sem presidente, entre junho de 1963 e julho de 1964.
De modo geral, é claro, o competente corpo técnico do banco sempre cumpriu diligentemente as missões passadas pelo controlador, fosse para coordenar as privatizações, nos anos 90, ou para fazer política desenvolvimentista, a partir de 2003.
As reações mais recentes contra a política do BNDES partiram do Legislativo e do Judiciário, que neste ano exigiram maior transparência na divulgação dos crescentes desembolsos da instituição. Ainda que a pressão do Congresso tenha um viés muito mais político do que técnico, pela primeira vez em décadas cobrou-se esclarecimento das operações do banco. A pressão funcionou: o BNDES decidiu divulgar parte dos contratos em seu site. De posse dos dados, especialistas puseram-se a examinar os empréstimos.
O engenheiro Adriano Pires, dono do Centro Brasileiro de Infraestrutura, uma consultoria especializada em petróleo e energia, foi um dos que analisaram os números divulgados pelo site do banco. Entre 2003 e 2007, o BNDES liberou 25,1 bilhões de reais para o setor energético. Os maiores financiamentos foram para a Eletrobras e a Petrobras. Entre 2008 e março deste ano, no entanto, as liberações do banco para o setor foram quase dez vezes maiores: 245,2 bilhões. Pires reconhece que houve investimentos na geração de energia, mas o que chama sua atenção é que, apesar do enorme volume de recursos desembolsado, o impacto geral sobre o setor foi muito pequeno.
“O que me assusta mais não é o desembolso de 270 bilhões para o setor. O que me surpreende é que, apesar de todo esse dinheiro gasto, não se vê melhora significativa. Não aumentamos a produtividade, não estamos cheios de dutos, nossos terminais de petróleo estão uma porcaria, e estamos discutindo o risco de apagão caso a economia se recupere daqui a três, quatro anos”, afirmou. “Só não houve apagão porque estamos em recessão. Para onde foi todo esse dinheiro?”, ele questionou.
Pires respirou fundo antes de continuar sua análise. “Veja a que ponto chegamos”, ele disse. “Em 2017 nós teremos problemas de abastecimento de gasolina porque não temos infraestrutura para receber uma quantidade grande do combustível que terá que ser importado. Aliás, teremos que importar gasolina porque faltam refinarias no país, apesar dos 20 bilhões de dólares gastos na Abreu e Lima.”
Claudio Frischtak, dono da consultoria Inter.B, no Rio de Janeiro, é um dos maiores especialistas em análise de infraestrutura. Ele se debruçou sobre a evolução da infraestrutura no Brasil e constatou que, em relação ao PIB, os investimentos no setor não variaram muito da década de 90 para cá, mantendo-se inferiores, por exemplo, dos do Chile e do Peru.
“Minha dúvida”, disse Frischtak, “é até que ponto esses investimentos cresceriam sem a ajuda do BNDES”. Para ele, o custo do endividamento do banco talvez tenha sido muito alto para o resultado alcançado. “Veja o caso das concessões das rodovias”, ele disse. “Será que o BNDES precisava ter financiado os consórcios privados com taxas de juros subsidiadas para que eles cobrassem um pedágio mais baixo no futuro? Não teria sido melhor se os consórcios tivessem buscado recursos no mercado, ainda que fossem cobrar pedágios mais altos?”
Seu raciocínio é de que, ao final, a população é quem acaba pagando do mesmo jeito: seja pelo subsídio dado pelo banco ou pelo pedágio. “A diferença, nesse caso, é que, com o dinheiro barato do BNDES, toda a sociedade paga, e não apenas o usuário do serviço. Mas, me diga, por que um cidadão pobre do interior do Piauí tem que pagar a conta pela construção de uma estrada no Sudeste?”, provocou.
O mais correto, em sua opinião, seria o usuário do serviço pagar por ele, e não toda a população, como ocorre quando há concessão de crédito subsidiado pelo BNDES. “É lógico que para as empresas é muito mais confortável pegar dinheiro barato no banco do que arriscar seu próprio capital no negócio.”
Frischtak também é crítico da qualidade de muitos investimentos, como as arenas construídas para a Copa do Mundo. Por orientação do governo, o BNDES liberou até 400 milhões para cada uma delas. Hoje a maioria está praticamente abandonada por falta de uso. O prejuízo da Arena da Amazônia aos cofres estaduais é de cerca de 3,4 milhões de reais; a escassez de eventos realizados impede uma gestão autossustentável. Em 2015, os dez eventos realizados no estádio renderam cerca de 500 mil reais, enquanto os custos de manutenção chegaram a 3,9 milhões. A situação não é muito diferente nas arenas de Natal, Recife, Cuiabá, todas praticamente sem eventos de peso para bancar seus gastos. “Não me parece que financiar arenas de futebol seja papel de um banco de desenvolvimento. Para um país carente de recursos para a infraestrutura, as arenas estavam longe de ser uma prioridade”, disse.
No 2º andar do prédio do BNDES funciona a área de Planejamento, cujo superintendente é Cláudio Leal, um técnico com vinte anos de carreira na instituição. Leal é um gaúcho jovial, de sorriso largo e fala entusiasmada. Em seu andar estão distribuídas as baias onde trabalha uma centena de técnicos da área de planejamento. São eles, junto com Leal, os responsáveis pelas análises dos projetos que chegam ao banco em busca de financiamento. Com um movimento de cabeça, ele indicou as baias antes de falar. “Aqui neste andar ficam os técnicos responsáveis por aprovar os projetos”, explicou. “São várias equipes responsáveis pelos mais diversos setores.” E enumerou-os: infraestrutura, energia, gás e petróleo, indústria, comércio, serviços, pequenas, médias e microempresas.
Cada solicitação de investimento, ele disse, é submetida a uma análise profunda. Cada projeto é analisado por cinquenta pessoas. Depois disso, mais dez técnicos emitem um parecer sobre a análise de crédito. Em seguida, as avaliações seguem para um comitê de enquadramento até chegar à diretoria. “Você acha que há algum risco de uma equipe tão grande de pessoas aprovar um empréstimo que seria prejudicial para o banco?”, ele perguntou.
Citei alguns frigoríficos que quebraram, como o Independência, e também o Marfrig e o Bertin, que a despeito de terem recebido mais de 3 bilhões de reais do banco só não quebraram porque foram absorvidos pela JBS. Outro caso de insucesso foram as empresas de Eike Batista, que receberam 6 bilhões de reais de financiamento. Leal defendeu a instituição. “Nós não temos nada a ver com a empresa de petróleo do Eike que quebrou. Nosso empréstimo foi para outros negócios do grupo que acabaram sendo incorporados por outras empresas, como o porto, e estão sendo pagos, pois os novos acionistas assumiram a dívida.”
Em seguida, falou da operação com o frigorífico Independência, ao qual o banco repassou quase 250 milhões de reais – apenas poucos dias antes de a empresa quebrar. “É claro que às vezes acontece de um negócio não dar certo. Isso é comum no sistema financeiro. Mas a grande maioria das nossas operações é bem-sucedida. Sabe qual é a inadimplência do banco?”, perguntou. E ele mesmo respondeu. “Zero. É a menor inadimplência de todo o sistema financeiro. Isso é um sinal do profundo zelo que temos com o dinheiro da instituição.”
Qual seria a razão, então, para a economia só ter encolhido mesmo com os 450 bilhões que o banco recebeu do Tesouro? “A retomada do nacional desenvolvimentismo foi feita de forma pouco cuidadosa”, avalia Marcos Lisboa, que foi secretário de Política Econômica no primeiro governo Lula e hoje dirige o Insper, em São Paulo, uma das mais prestigiosas escolas de economia e administração. “Os desembolsos foram feitos sem metas de desempenho e sem avaliar se os setores beneficiados poderiam se tornar competitivos. Achar que a simples distribuição do dinheiro barato faz a economia crescer é um equívoco.”
Além disso, os maiores empréstimos para o setor elétrico em 2013 e 2014, por exemplo, que somaram mais de 5 bilhões, não foram usados para o desenvolvimento de negócios – na verdade, serviram para pagar a conta do setor, descapitalizado após a presidente Dilma ter forçado uma redução de tarifas. Como as empresas geradoras não conseguiram dar conta dos aumentos de custos que vieram em seguida, em razão da falta de água nos reservatórios, elas precisaram comprar energia das usinas térmicas a gás, muito mais cara, para honrar os compromissos já acertados com as distribuidoras. Resultado: sem dinheiro, as geradoras tiveram que ser socorridas pelo governo, que escalou o BNDES para conceder os empréstimos subsidiados.
“O que é isso? Não foi para esse tipo de operação que o banco foi feito”, disse-me um ex-diretor do banco. O pior de tudo, disse ele, é que, ao final, os consumidores tiveram que arcar com aumentos em suas contas de luz de mais de 75%, como foi o caso de São Paulo.
O físico Luiz Pinguelli Rosa, diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, a Coppe, foi presidente da Eletrobras no primeiro mandato de Lula. Para ele, o ponto positivo na política do governo para o setor elétrico tinha sido a volta do planejamento. Mas admite que agora, por uma gestão equivocada, o setor elétrico vive sérios problemas. Os 5,7 bilhões de reais que o BNDES repassou às empresas elétricas como capital de giro de curto prazo não surtiram grandes resultados. “As distribuidoras estão atoladas em dívidas. Temos um problema muito sério com o setor elétrico. A dívida da Eletrobras hoje, por causa de políticas erradas, é de 70 bilhões de reais.”
João Roberto Pinto é um cientista político, responsável pelo Instituto Mais Democracia, que acompanha as contas do BNDES. Os levantamentos da organização mostram que os setores que mais receberam recursos do banco entre 2008 e 2013 foram petróleo e energia elétrica. Juntos, somaram mais da metade dos desembolsos da instituição. Em seguida vieram telecomunicações e mineração. Alimentos, bebidas papel e celulose e indústria naval ficaram com 21%. O restante da indústria, além de construção de rodovias, aeroportos, ferrovias e saneamento básico, recebeu parcelas insignificantes, que somaram pouco mais de 5% do total dos desembolsos do banco.
Sentado num banco de cimento no campus da PUC do Rio de Janeiro, onde dá aula, Roberto Pinto me entregou as tabelas que preparara. Sua preocupação é entender por que razão o BNDES colocou tanto dinheiro em algumas empresas específicas. O caso de Eike Batista é para ele um dos mais significativos. “Como se explica que o banco tenha aprovado empréstimos de 10,4 bilhões para a EBX, e já ter chegado a desembolsar 6 bilhões?” E opinou. “Mesmo que os novos acionistas tenham ficado com a dívida, como se explica o banco ter se exposto a tamanho risco com esse empresário?”
Outra a ser beneficiada com fartos recursos foi a empreiteira Odebrecht. Com várias empresas controladas, a empreiteira recebeu dinheiro para infraestrutura, petróleo e etanol, além de investimentos no exterior que somam mais de 10 bilhões de reais.
No começo de agosto, a Câmara dos Deputados aprovou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a atuação do BNDES de 2003 a 2015 – o que alcança os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os governos de Dilma Rousseff. Os termos do requerimento dos deputados para a abertura da CPI são pesados. Falam, por exemplo, em “empréstimos suspeitos de estarem eivados de corrupção, concedidos a empresas de fachada”.
Em um começo de noite de agosto, o relator da CPI, deputado José Rocha, do Partido da República da Bahia, me recebeu em seu gabinete, no prédio anexo da Câmara. Ele é um homem grisalho, de rosto amigável. Vestia terno escuro, camisa roxa e gravata. Passara o dia às voltas com assuntos relacionados à comissão, como as proposições dos deputados para convocação dos depoentes. Pediu a seu assessor que me trouxesse a lista dos nomes aprovada pela manhã. Entre os que deveriam ser convocados estavam o ex-presidente Lula e seu filho, Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha. Também constavam do pedido de convocação, entre tantos outros nomes, os do presidente do BNDES, Luciano Coutinho, e de alguns diretores do banco; os de dirigentes das construtoras envolvidas na Lava Jato, como o presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht; o do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, e o de Carolina de Oliveira Pereira, mulher do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel. Ela foi acusada de ter uma empresa de fachada que teria prestado serviços ao banco com o objetivo de obter recursos para a campanha de Pimentel ao governo mineiro.
Perguntei ao deputado se Lula e seu filho seriam mesmo convocados. Ele pareceu não levar os pedidos a sério. “Isso é bobagem”, me disse. “Não sabemos nada ainda desse caso e já estão chamando o Lula para depor.” Interrompeu a conversa para atender um telefonema do cerimonial do Palácio do Planalto. Ao desligar, explicou-me, visivelmente envaidecido, que viajaria no dia seguinte à Bahia, no jato presidencial, na companhia da presidente Dilma, para participar de uma cerimônia na Federação das Indústrias do estado. Em seguida continuou sua explanação. “Ao contrário de operações realizadas previamente pela Polícia Federal, a CPI do BNDES está começando do nada. Somos nós que teremos que iniciar a investigação. Ainda não temos nenhuma informação, nenhuma prova. Apenas o que saiu na imprensa. Temos que fazer tudo com muita prudência.”
Luciano Coutinho foi o primeiro a depor no Congresso, no começo de setembro. Perguntei-lhe como ele vira a criação da CPI. Ele me disse que fora com tranquilidade. “É uma oportunidade de mostrarmos ao Congresso como o banco opera e a lisura de todas as nossas operações.”
Outros executivos do banco também depuseram nas semanas seguintes. Um deles foi a superintendente da área internacional, Luciene Machado. Os empréstimos concedidos pelo banco, a partir de 2003, a países como Angola, Venezuela, Argentina, República Dominicana e Cuba – somando cerca de 12,6 bilhões de dólares – eram então um dos maiores motivos de ataques da oposição à política de concessão de financiamentos externos do banco por meio de uma linha criada com esse fim, a Exim, no governo Fernando Henrique Cardoso.
Encontrei-me com Luciene Machado numa grande sala de reuniões onde se lê, num cartaz emoldurado na parede: “Exim: Nós financiamos, você exporta, o Brasil cresce.” O departamento de Luciene Machado fica num prédio vizinho ao BNDES, a Torre Ventura. Ali o banco ocupa dezoito andares, pelos quais paga um aluguel anual de 6 milhões de reais.
Luciene Machado parecia cansada, mas estava tranquila. Ela tem os olhos azuis, a pele clara; fala baixo, de maneira suave. Mas é firme ao defender as operações do banco. Explicou que desde 1997 o BNDES foi autorizado a fazer operações de exportação de serviços, segundo ela mais difíceis de entender do que uma exportação de produto. Mas o que estaria embutido num negócio desse tipo seria bastante vantajoso para o país.
“Quando o banco faz um empréstimo para exportação de serviço, ele está financiando a exportação de máquinas e equipamentos produzidos no Brasil para fazer a obra no exterior, mão de obra especializada; ele paga o custo da empreiteira, que é brasileira e cujo retorno e impostos são recolhidos no Brasil, além de favorecer uma cadeia de mais de 2 mil empresas que fornecem todo o tipo de maquinário e equipamentos para a empreiteira que fará a obra lá fora”, ela disse. “Isso tem um efeito multiplicador na economia.”
Salta aos olhos, contudo, o rápido crescimento dessas operações a partir de 2003. Até aquele ano, as exportações de serviço eram incipientes, em torno de uma dezena. Do governo Lula até agora chegam a quase mil. Parte delas é alvo de denúncias de corrupção em seus países de origem, como a construção de gasodutos na Argentina e de linhas de metrô na Venezuela.
O empréstimo mais controvertido, porém, foi o que se concedeu para a construção do porto de Mariel, em Cuba – tocado pela Odebrecht, consumiu 800 milhões de dólares do banco. O porto levou cinco anos para ficar pronto, mas já está em operação. O banco foi acusado pelos políticos da oposição de favorecer Cuba com um empréstimo de 25 anos a taxas de juros bastante favoráveis. “Não é um financiamento longo para o tamanho do projeto”, explicou Machado, que garantiu que, embora o principal comece a ser pago daqui a cinco anos, Cuba vem honrando semestralmente os pagamentos de juros. As garantias dadas pelo governo cubano ao empréstimo foram as exportações de tabaco do país. O porto está em funcionamento e é controlado por uma empresa chinesa.
Luciene Machado também explicou as razões que levaram o ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Fernando Pimentel a ter pedido sigilo de informações relacionadas ao porto até 2027. “Era apenas uma questão estratégica. Nós não queríamos revelar publicamente as condições do contrato porque outros países podiam pedir as mesmas vantagens.” No caso brasileiro, as condições de pagamento, segundo ela, são, inclusive, mais duras até que a de outros países. “Não damos nenhuma vantagem”, assegurou. E acrescentou: o que ninguém leva em conta é que o banco já teve um retorno de mais de 2 bilhões nessas operações de empréstimos externos.
A polêmica surgiu depois que se acusou o banco de ser usado ideologicamente pelo governo do PT para emprestar a governos apenas por razões de afinidade política, e não comerciais. Isso se deu porque, logo no começo do governo Lula, o diretor da área internacional do BNDES, Luiz Melin, indicado pela economista Maria da Conceição Tavares para o cargo, era muito ligado ao secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães. Guimarães era abertamente favorável a um alinhamento do Brasil com a África e a América Latina, em detrimento da Europa e dos Estados Unidos. Outro que compartilhava das mesmas ideias era o ministro Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência para Assuntos Internacionais, que chegou a dar cursos para funcionários do banco explicando essa estratégia.
Machado, no entanto, se diz segura da importância dessas operações para o banco; segundo ela, são uma forma de o Brasil se tornar competitivo nas exportações de serviços. Também assegurou que o banco não corre nenhum risco: caso o devedor não pague, quem tem que assumir o prejuízo é o Tesouro, por meio de um seguro de crédito.
No final de setembro, pedi a Klaus Curt Müller, diretor de comércio exterior na Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, a Abimaq, que fizesse um comparativo entre as exportações para os países que receberam empréstimos do BNDES e a exportação de máquinas. Ele me disse que a conta era difícil porque as empresas não abrem essas operações por produto. Mas ao fazer um balanço do que foi exportado, disse-me que, pelo menos no que se refere a máquinas e equipamentos, o volume de vendas para os países beneficiados nem se mexeu. “Não quero criticar o banco, que é a única instituição que empresta a longo prazo. Sem esses recursos, a situação da indústria estaria muito pior”, disse ele. “Mas a verdade é que os empréstimos do banco para esses países não geraram nenhum aumento nas exportações brasileiras de máquinas e equipamentos.”
João Manoel Pinho de Mello, professor do Insper, é um crítico do programa. Sustenta que o banco já subsidiou esses países em mais de 4 bilhões de reais e acha uma falácia se dizer que o ônus em caso de calote não recai sobre a instituição. “Que importância tem isso? No fim, quem pagará a conta somos nós, os contribuintes brasileiros. Esses países todos oferecem risco de crédito, e o Brasil foi colocar dinheiro justamente neles. A conta em caso de calote pode não ir para o banco, mas vai para o Tesouro”, reclamou.
O temor em relação a essas operações tem a ver também com o fato de a presidente Dilma, há alguns anos, ter perdoado 900 milhões de dólares em dívidas de países africanos, entre eles o Congo, há décadas governado por um ditador. Não se tratava de empréstimos do BNDES, mas, após o perdão, o banco foi autorizado a fazer negócios com esses países. Para o ex-embaixador Rubens Barbosa, hoje presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), esse foi um caso escandaloso. “Sequer consultaram o Congresso se podiam dar esse perdão.” Para Barbosa, as operações feitas até agora pelo BNDES podem ter trazido vantagens para as empresas, inclusive para a Odebrecht, que foi beneficiada com mais de 70% dos contratos no valor de 12 bilhões de dólares, mas não geraram ganhos para o Brasil. “Sequer aumentamos a nossa influência nesses países. Até Cuba, agora, está mais próxima dos Estados Unidos do que da gente”, ironizou.
Nesse debate, chama a atenção o silêncio dos empresários. Apesar de todas as críticas que têm feito ao governo, as entidades empresariais até o momento se mantiveram caladas em relação às operações do banco com o Tesouro. Mansueto Almeida tem uma explicação. “No fundo, quem estava se beneficiando ficou calado. Nenhum empresário veio a público discutir o problema quando já se sabia que essas transferências para o BNDES causariam um impacto negativo nas contas públicas”, disse.
O fato é que há uma relação grande entre os recebimentos de empréstimos do governo federal, por parte das empresas, e as contribuições para campanhas eleitorais. Um estudo do cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Iuperj, fez uma correlação entre os maiores doadores de campanha e os recebimentos de empréstimos do BNDES. Na campanha presidencial de 2010, por exemplo, as empresas que fizeram as maiores doações receberam, entre 2011 e 2013, o maior volume de financiamento do governo. As dez maiores doações somaram 289 milhões de reais. Essas doadoras foram contempladas, segundo o estudo, com liberações do governo da ordem de 5,7 bilhões de reais em dois anos.
Entre as mais beneficiadas estavam a Andrade Gutierrez, que recebeu 888 milhões, seguida da Construtora Queiroz Galvão, da Camargo Corrêa, da OAS, da Gerdau e da Galvão Engenharia. Todas as construtoras estão envolvidas na Lava Jato. Na eleição de 2014, a JBS foi a maior doadora individual de campanha, desembolsando mais de 300 milhões de reais. Compensaram, e muito, os 10 bilhões de reais que o BNDES já havia aportado na empresa.
A ONG Contas Abertas é presidida por Francisco Gil Castello Branco Neto. A organização é pequena e funciona no apartamento do presidente, em Brasília. São apenas três funcionários além dele, mas o trabalho de pesquisa da empresa é primoroso. Castello Branco levantou recentemente dados sobre as 149 estatais brasileiras e chegou a uma conclusão impressionante: elas movimentam, por ano, 1,4 trilhão de reais. Apenas em investimentos, as estatais movimentaram106 bilhões de reais, o que significa 23 bilhões a mais que todo o investimento dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo juntos.
Ou seja, investiram muito além de tudo o que foi empregado em saúde, educação, saneamento e todas as obras desses poderes, disse ele. Por essa razão, Castello Branco afirma que a corrupção migrou para as estatais. “O corrupto vai aonde o dinheiro está, e as estatais viraram a Disneylândia dos corruptos”, disse. “Estamos assistindo a uma troca de favores entre o setor privado e as estatais, principalmente a Petrobras. Os empresários pegam obras em troca de dinheiro para a campanha. O pior é que o BNDES tem sido o financiador de todas elas.”
Cercado pelos jornais do dia que denunciavam as operações da Lava Jato e os repasses do BNDES para empresas que participaram do esquema, um banqueiro de investimento do Rio de Janeiro virou-se para mim, durante uma conversa em seu escritório, e concluiu: “Veja que triste. O BNDES gastou 450 bilhões de reais para, ao final, o Brasil estar afundado numa recessão, ameaçado de ficar sem energia e sem gasolina; sua maior empresa, a Petrobras, metida em escândalos e com problema de caixa”, disse, e continuou com sua lista de dissabores. “Mesmo com todo o dinheiro do BNDES para os países latino-americanos, perdemos o protagonismo no Mercosul. Nossas arenas de futebol estão vazias, e os estados que as construíram, falidos. E, pior de tudo, ainda por cima, perdemos de 7 a 1 para a Alemanha.”