O retrato do artivista Omaid Sharifi: “Eu te vejo! Quem suborna é um infiel!”, diz o mural pintado em Cabul antes da chegada dos talibãs, que voltam a governar o país após vinte anos
O silêncio dos muros
Um artivista escapa do Afeganistão e do Talibã
Omaid Sharifi | Edição 181, Outubro 2021
Sair de Cabul, a capital do Afeganistão, foi uma das decisões mais difíceis da minha vida. Fui obrigado a deixar minha casa, meu trabalho, meus amigos, minha família e minhas raízes, levando comigo apenas uma mochila. Durante cinco dias tentei entrar no aeroporto da cidade, por diversos portões. Em vão. O local parecia um inferno na Terra. Milhares de mulheres, homens e crianças se amontoavam na frente dos portões, tentando entrar também. Talibãs espancavam as pessoas. Saraivadas de tiros eram disparadas de tempos em tempos. Granadas de fumaça estouravam aqui e ali, para espantar a multidão. Só consegui entrar no aeroporto graças à ajuda de representantes de alguns países e parceiros de trabalho. Passei doze horas sob o Sol até pegar o voo que me trouxe no dia 21 de agosto até Abu Dhabi, onde estou agora, em um campo de refugiados.
Sou artista visual e faço parte da Art-Lords, uma organização de artivismo que nasceu há sete anos e foi a primeira a pintar murais no Afeganistão. Em 12 de agosto, três dias antes da chegada dos talibãs a Cabul, nossa equipe havia realizado uma exposição comemorando, nos jardins de um parque da capital, o Dia Internacional da Juventude. Foi um momento de alegria e gentileza para as centenas de afegãos de diversas camadas sociais que acorreram ao local para apreciar as obras de arte, os murais, o teatro de rua, os desenhos animados e os documentários em vídeo. Os murais da ArtLords focavam na tolerância, na inclusão e na paz no Afeganistão.
O domingo seguinte, 15 de agosto, deveria ser um dia rotineiro para a Art-Lords. Num muro de Cabul, fizemos o esboço de um mural cujo tema era também a união e a empatia. Qualquer pessoa que passasse pela rua poderia nos ajudar no trabalho, se quisesse. Estávamos justamente pintando esse mural quando chegou a notícia de que o Talibã havia entrado em Cabul. Não esperávamos que chegasse tão rápido. Deixamos o mural inacabado e corremos à nossa galeria para esconder os trabalhos, antes que o Talibã os destruísse.
Ver o pânico no rosto dos meus compatriotas correndo para chegar em casa ou com o celular na mão tentando desesperadamente falar com os parentes – tudo isso parecia um pesadelo. Mas era a realidade. Tentei ligar para minhas três irmãs e para artistas que trabalhavam comigo e estavam na cidade. Levei uma hora para conseguir falar com eles e dizer que, caso estivessem fora de casa, voltassem a pé, imediatamente, pois havia ruas bloqueadas para a passagem de carros (e algumas até para as pessoas).
Assim começou o caos. Quando entraram em Cabul, os homens do Talibã pareciam alienígenas ou seres de séculos atrás. Como nós, eles estavam em choque. Tinham sofrido antes uma lavagem cerebral e acreditavam que os 4,5 milhões de habitantes da cidade eram infiéis e eram seus inimigos. Porém, quando chegaram, se depararam com numerosas mesquitas e perceberam que os moradores de Cabul são gentis e hospitaleiros. Não era o que esperavam, em absoluto. Eles não conseguiam sequer fixar os olhos nas pessoas.
A ArtLords, da qual sou presidente, tem sete escritórios no Afeganistão e um no estado da Virgínia, nos Estados Unidos. Congrega 53 artistas, funcionários e voluntários. Mais de 35% são mulheres. Criamos um espaço seguro para todos os gêneros. Não só heterossexuais cisgêneros, mas também os LGBTQIA+ eram bem recebidos e faziam parte de nossa equipe. Nosso grupo já pintou cerca de 2,2 mil murais no Afeganistão e até em outros países.
Nossa motivação é usar o poder da arte e da cultura para pavimentar o caminho da transformação social e da mudança comportamental. Pintamos muros erguidos em Cabul para conter explosões, buscando converter o impacto psicológico negativo que provocam numa experiência visual positiva. Ao pintar nesses muros os temas que preocupam os cidadãos, conseguimos criar um espaço onde questões sociais podiam ser expressas de maneira visual e discutidas nas ruas, em oficinas abertas de arte. Oferecemos, assim, uma plataforma para o diálogo entre diferentes pessoas do Afeganistão, dando uma “voz visual” àqueles que não têm voz – essa é a dinâmica e o intuito do nosso movimento.
A arte cria espaço para “emoções sem afiliação”, estimula o pensamento crítico e ajuda as pessoas a compreender que, se a guerra é uma experiência compartilhada, apenas um esforço também compartilhado, vindo de dentro da sociedade, pode trazer paz ao Afeganistão, ao Sul da Ásia e ao Oriente Médio.
A primeira coisa que o Talibã fez, antes mesmo de anunciar a formação do seu governo, foi destruir os murais da ArtLords. Isso, por si só, mostra o medo que eles têm da arte e da nossa atividade pública. Não existe arte nem cultura sob o domínio do Talibã.
Mas esse não é o fim da história do Afeganistão. Tenho 34 anos e já testemunhei quatro mudanças de regime. Os soviéticos invadiram meu país no final dos anos 1970. Depois que partiram, houve o governo de esquerda de Mohammad Najibullah (de 1986 a 1992), o regime dos mujahedin (de 1992 a 1996), o regime do Talibã (de 1996 a 2001) e a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan depois do Onze de Setembro. Ficaram vinte anos. Agora, vemos a volta do Talibã, com a ajuda do mundo inteiro. Um grupo designado como terrorista está, mais uma vez, no poder.
Vivi sob o primeiro governo do Talibã. Naquela época, eles proibiram qualquer expressão artística, destruíram obras de arte e instrumentos musicais, fecharam os cinemas e teatros e puniram os artistas. O Talibã de hoje é exatamente igual. Nada neles mudou. Tanto que os murais coloridos já começaram a ser pintados de branco, apagados, silenciados. Muitos afegãos, especialmente as mulheres e os artistas, estão agora escondidos e correm risco de vida. Não podem ter uma voz. Não podem continuar criando arte.
Agora, a maioria dos artistas se vê forçada a deixar sua pátria, sua casa, sua família e seus amigos para poder ter liberdade de expressão. Mas muitos ainda estão lá. Vivem com medo, esperando que um dia possam deixar o país e recuperar sua voz. Sejam os que saíram, sejam os que ficaram, todos perdemos nossa dignidade e nossa casa. Ainda levaremos muito tempo para processar tudo isso.
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