Norman honrou a sua época. Como atleta e como homem foi grande sem ser celebridade ILUSTRAÇÃO: JOHN DOMINIS_TIME & LIFE PICTURES_GETTY IMAGES
O terceiro homem
Peter Norman, o branco solidário com o protesto negro
Dorrit Harazim | Edição 2, Novembro 2006
Ele nunca mais conseguiu correr a prova dos 200 metros em apenas 20.06 segundos — só naquela Olimpíada de 1968, na Cidade do México. O tempo ficou a apenas 0.64 segundo do recorde mundial que imortalizaria Michael Johnson trinta anos depois. Ainda assim, a marca mais notável do atleta australiano Peter Norman não foram os seus vinte segundos de velocidade. Ele chegara ao México quase anônimo, perdido entre outros 5.423 atletas de 112 países, e a medalha que conquistou na pista foi quase um acaso. A marca pessoal que deixou, não.
A prova dos 200 metros fora vencida pelo colosso americano Tommy Smith, detentor de onze títulos mundiais em corridas de curta distância e o bronze ficara com John Carlos, também americano,também negro e também aluno do San Jose State College, da Califórnia. O aguardado duelo milimétrico entre os dois americanos simplesmente não aconteceu, pois Smith desembestou nos 60 metros finais e não teve para mais ninguém — ergueu os braços, sorriu e acenou para a platéia antes de rasgar a linha de chegada em 19.87 segundos. O compatriota Carlos, que liderava a prova, desconcertou-se e abriu espaço para o australiano Norman abiscoitar o segundo lugar.
O rasante de Smith causou assombro por ser a primeira vez que um bípede corria os 200 metros em menos de vinte segundos. Arrebatamento semelhante em estádio olímpico só ocorreria vinte anos depois, em Seul, na Coréia do Sul, quando o canadense Ben Johnson ultrapassou a fronteira do possível e correu 100 metros rasos 9.79 segundos. Mas a marca de Johnson durou apenas algumas horas, até exames provarem que ele correra dopado.
O espanto com o recorde mundial de Smith em 1968 durara menos ainda — o tempo do trio vencedor subir ao pódio para receber as medalhas. O que ocorreu ali, e foi captado por fotos que deram a volta ao mundo, virou uma imagem recorrente dos anos 60: dois negros americanos de punho erguido, cabisbaixos e descalços, em protesto contra o racismo. O que permaneceu nas sombras e adquiriu relevância só no mês passado, com a morte, por enfarto, de Peter Norman, foi o papel desempenhado pelo branquela naquele instante de História.
O protesto fora planejado pelos americanos ainda no campus da faculdade, na Califórnia. Caso um deles conquistasse medalha, usaria o pódio como palco para denunciar a desigualdade racial nos Estados Unidos. Assim, entraram juntos na saleta onde os vencedores aguardavam o momento de serem chamados para a premiação, e foram cuidar do visual. Para espanto do australiano, que se esmerava em ajeitar a juba e alisar o uniforme, Tommy Smith e John Carlos tiraram os tênis e calçaram meias pretas. Contaram a Norman que fariam um protesto e explicaram que os pés descalços simbolizavam os bolsões de pobreza negra dos Estados Unidos. Em seguida, Carlos enfiou um colar de grãos e Smith amarrou um lenço preto no pescoço. Esclareceram que os adereços eram referência aos negros linchados da história americana.
Norman a tudo ouvia, intrigado.
Faltando poucos minutos para serem chamados, os americanos se deram conta, frustrados, que Carlos esquecera de trazer o par de luvas negras, elemento essencial do seu kit-protesto. Os parceiros tinham planejado erguer os punhos aos primeiros acordes do hino nacional, e sem as luvas o gesto perderia impacto. Foi então que o australiano acordou: sugeriu que Smith e Carlos usassem, cada um em mãos diferentes, apenas uma das luvas do par que restava. E fez mais. Pediu um dos adesivos de defesa dos direitos humanos, que os americanos ostentavam, grudou-o no peito e declarou-se pronto para subir ao pódio.
“Peter tornou-se meu irmão naquele instante”, diria Carlos anos depois. Não era uma expressão retórica — seus filhos cresceram chamando de “Uncle Pete” o corredor mirrado que vivia do outro lado do planeta. “Naquele momento crucial de nossas vidas, Peter nos compreendeu”, disse Carlos. “O fato de um atleta branco subir ao pódio olímpico com um adesivo a favor da igualdade racial deu outra dimensão a nosso protesto.”
O público que lotava o Estádio Nacional não percebeu de imediato o que se passava. Foi com o semblante carregado que os atletas acompanharam o içamento das bandeiras. Aos primeiros acordes do hino nacional, Smith ainda pareceu entoar a letra. Depois se calou, e abaixou a cabeça. Começou, então, a erguer o braço direito enluvado, em sincronia com o braço esquerdo de Carlos. A saudação do black power tinha invadido os Jogos Olímpicos.
“Aqueles dois caras subiram no metro quadrado de mundo que tinham conquistado como atletas, e deram seu recado sem jogar uma única pedra, sem dar um só tiro, sem machucar ninguém”, relembraria Norman aos jornalistas que bateram à sua porta no ano 2000, quando Sydney foi sede da XXIII edição dos Jogos. Estava então com 58 anos, grisalho e tinha a saúde capenga. Não guardara ressentimento pelo dilúvio de críticas que se abateu sobre o trio imediatamente após a cerimônia – dilúvio proporcional à raça de cada um.
Norman foi crucificado pela imprensa de seu país e recebeu reprimenda do comitê olímpico australiano. Mas continuou apontando desigualdades onde quer que as visse. “Aqui na Austrália, o tratamento que reservamos à nossa população indígena é calamitoso”, dizia sempre, referindo-se aos aborígines, que adquiriram direito de voto só em 1962, e passaram a ser incluídos no censo nacional somente cinco anos depois.
Para Smith e Carlos as conseqüências foram implacáveis e duradouras. De imediato, o Comitê Olímpico Internacional, COI, presidido pelo americano Avery Brundage, proibiu que os dois velocistas tivessem outras participações (ambos estavam escalados para integrar a equipe americana de revezamento) e exigiu a expulsão da dupla da Vila Olímpica. O comitê olímpico americano não acatou as determinações. Na manhã seguinte, o COI alertou que, se as exigências não fossem cumpridas, toda a equipe americana de atletismo seria barrada das competições. Desta vez, o recado foi entendido.
Smith e Carlos retornaram aos Estados Unidos como párias, acusados de introduzir a política no olimpismo e de querer destruir o tecido social de seu país. “Mas qual país?”, perguntavam em uníssono. “A América branca diz que somos americanos quando vencemos e que somos negros quando fazemos algo que julga errado.” Quanto à contaminação dos Jogos pela política, ela já acontecera há bem mais tempo, e através de outros punhos: na Berlim de 1936, todos os atletas alemães fizeram a saudação nazista e ninguém reclamou.
Apesar dos ataques e do ostracismo, nem Carlos nem Smith mudaram de posição. Quem mudou foi o curso da história. Às vésperas da Olimpíada de 1984, John Carlos foi ressuscitado pelo Comitê Organizador dos Jogos de Los Angeles para promover o esporte junto à juventude negra. Smith foi chamado a treinar uma equipe de atletismo. Em 1999, a faculdade San Jose State, de onde ambos tinham saído três décadas antes, inaugurou uma estátua comemorativa ao gesto dos ex-alunos. E como não poderia haver inauguração sem a presença do terceiro homem, convidaram Norman.
No mês passado, coube aos velocistas negros fazer o percurso inverso — não poderia haver funeral de Peter Norman sem a presença de Tommy Smith e John Carlos. “O legado do pai de vocês é uma rocha”, disse Smith aos filhos do corredor na cerimônia em Melbourne. “Não desçam dessa rocha.”
Referia-se aos tempos em que a dimensão de um atleta não se reduzia ao tamanho de sua fortuna nem a de seus contratos publicitários. Tempos em que era possível ser grande sem ser celebridade. Até hoje, a marca de 20.06 segundos obtida pelo australiano em 1968 não foi superada por nenhum atleta de seu país.
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