O trono está nu
Japão quer descomplicar as privadas multifuncionais que confundem os turistas
Bernardo Esteves | Edição 126, Março 2017
“Agora vou mostrar como funciona a privada japonesa”, anunciou um turista trajando um blusão com o emblema do Corinthians ao entrar no banheiro de um hotel em Tóquio. A câmera enquadrou um vaso munido de um braço no qual havia seis botões e duas luzes verdes acesas. “Precisa de manual para usar essa privada.” O turista apontou o ícone de um spray direcionado a um bumbum e outro que mostrava uma mulher sentada recebendo um jato nas partes íntimas. “Vou apertar o botão que a gente tem usado, que é o da mulher”, declarou. O amigo que o filmava para postar na internet protestou: “Eu não usei nada, não!” Ele se defendia sem conhecimento de causa. “Ah, rapaz, que delícia que é”, reagiu o corintiano.
O vídeo é um dos muitos disponíveis na rede dedicados às privadas japonesas ultratecnológicas, que despertam fascínio e desconcerto nos turistas. Elas podem ter bidê acoplado, assento aquecido, efeitos sonoros, jato de ar quente e dispositivo de eliminação de odores. Nem sempre o usuário de primeira viagem sabe manejar o painel de controle. Num vídeo sobre o Japão, o youtuber Luba tentou decifrar os botões de um modelo diferente daquele testado pelo corintiano. Esbarrou no ícone de um spray em forma de Y. “Esse aqui eu não sei [para que serve].”
Luba não é o único a se confundir nos banheiros japoneses. Uma pesquisa de 2014 concluiu que 25,7% dos turistas não entendiam os botões e 14,7% nem sequer sabiam acionar a descarga. Para familiarizar estrangeiros com o produto que é um orgulho nacional, uma associação de dez fabricantes de equipamentos sanitários anunciou que a partir de abril padronizará os ícones das diferentes funções do vaso – até então, cada marca adotava o código que bem entendesse.
O anúncio é parte de um pacote de medidas para tornar o Japão mais amistoso para os visitantes às vésperas de dois grandes eventos esportivos: a Copa do Mundo de Rúgbi, em 2019, e os Jogos Olímpicos de Tóquio, no ano seguinte. Mas também serve ao propósito dos fabricantes de ganhar espaço no mercado de outros países.
A primeira privada 2 em 1, com bidê integrado, foi patenteada e produzida nos Estados Unidos nos anos 60, mas a novidade não vingou. Foi no Japão que o equipamento se popularizou e se aperfeiçoou – em 2015, vasos similares estavam em 77,5% das residências. Em 1980, a Toto – maior indústria do setor – lançou o Washlet, uma espécie de Fusca das privadas high-tech, com dezenas de milhões de unidades vendidas desde então. Seu nome virou substantivo comum e hoje designa qualquer assento com bidê acoplado.
A função essencial do washlet é desempenhada por um cilindro retrátil embutido no assento. Quando acionado, o cilindro se projeta para a frente, sob as partes baixas do usuário, e borrifa um jato de água frontal ou traseiro, a critério do freguês. Alguns modelos permitem regular a temperatura e a pressão do jato – e os usuários podem criar diferentes perfis para que o mecanismo memorize as preferências de cada um.
É corriqueiro um botão que reproduz o barulho de água correndo – abafando, com isso, os sons gerados pelo usuário durante a função, motivo de grande constrangimento no país, especialmente para as mulheres que vão aos toaletes em ambientes públicos. Antes dessa inovação – apelidada “Princesa do Som” –, era comum que usuárias, por pudor, acionassem a descarga durante a permanência no reservado. Um site dedicado à cultura japonesa calculou o impacto ambiental da inovação da trilha sonora: num único prédio de escritórios com 400 funcionárias, a economia anual pode chegar a 10 milhões de litros de água, o bastante para encher quatro piscinas olímpicas.
Unanimidade entre os usuários é o assento aquecido – conforto difícil de prescindir nos dias frios de inverno do Japão, onde os banheiros não têm calefação. “Na faculdade eu ia ao toalete em outro andar só porque tinha o assento quente”, contou a tradutora paulista Rita Kohl, que fez mestrado em Tóquio. Kohl estranhou a novidade num primeiro momento. “Parece que alguém acabou de usar o vaso, mas depois que você se acostuma é incrível.”
Dentre os que se encantaram, muitos não quiseram abrir mão da novidade. Foi o caso de Daniel e Georgia Green, que levaram para São Paulo um washlet comprado em Miami. “A privada virou atração turística lá em casa”, contou Georgia, que trabalha no mercado financeiro. “Já faz dois anos que instalamos o equipamento e ir ao banheiro continua uma diversão.”
Sérgio Mizoguchi, representante da Toto no Brasil, disse vender de quinze a vinte modelos da linha Washlet por mês, com preços que vão de 4 mil a 10 mil reais (o valor não inclui a louça, comprada à parte). Mizoguchi também oferece um modelo da linha de luxo da fabricante japonesa por 21 300 reais. “Saem um ou dois por mês”, afirmou o vendedor, cujos clientes são banqueiros, executivos, restaurantes japoneses e escritórios.
Alguns ícones propostos pela indústria para padronizar as privadas são autoexplicativos, como os que designam a abertura e o fechamento automáticos da tampa e do assento. Já os símbolos para descargas curta e longa – para quem fizer o número 1 ou 2 – talvez confundam os turistas. “Não é lá muito intuitivo”, avaliou o designer brasileiro Mateus Rezende, que mora em Tóquio há dois anos. “Mas ao menos agora tem um ícone”, acrescentou, notando que antes disso a função era identificada apenas por um kanji, um ideograma em japonês. Rezende vê a padronização com bons olhos, mas lembra que ela contempla apenas certas funções. “Alguns modelos têm muito mais botões.”
Ainda que os ícones sejam interpretados de forma inequívoca, nada garante que as privadas sejam acionadas da forma prevista pelos fabricantes. O spray frontal – agora representado por uma mulher que parece flutuar sobre uma fonte – decerto continuará a ser usado por homens, embora o ângulo do jato seja calculado para a anatomia feminina.
O antropólogo Vinicius Furuie é outro que se rendeu à curiosidade, a exemplo do turista corintiano. “É claro que experimentei”, disse o pesquisador, que morou por cinco anos no Japão. “É um jato um pouco mais pra frente”, descreveu. “Desagradável não foi.” De volta ao Brasil, Furuie foi de um extremo ao outro do conforto sanitário. Em pesquisa de campo no interior do Pará, frequentemente tem que se resolver no meio do mato. “As privadas japonesas deixaram saudade.”
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