ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE_2014
O truque de McCracken
Como explicar às mulheres a regra do impedimento no futebol
Hernán Casciari | Edição 91, Abril 2014
Peço desculpas às eventuais leitoras, mas vou falar de futebol. Pior ainda: vou falar sobre a regra futebolística mais ininteligível para a audiência feminina, o impedimento. Não sei se é porque estou ficando velho ou porque já estou farto de um monte de jogadores empacados na mesma linha, sem poder avançar, mas a zaga adiantada me parece cada vez mais uma tremenda estupidez. Vou explicar o porquê com duas metáforas e uma velha história.
I. A LEI
Numa remota ilha chilena, no extremo sul da Patagônia, o clima é tão cruel que todas as casas dispõem de gigantescas rodas em sua base e todos os homens com mais de 30 são alcoólatras.
A cada seis meses, bairros inteiros mudam de posição para evitar as enchentes, e todas as mulheres da ilha são espancadas pelo marido no mínimo uma vez por mês. Garoa, álcool e tédio: a mistura é fatal.
Algumas dessas mulheres criam coragem e se divorciam do marido espancador. Para sua segurança, pedem também uma ordem judicial de afastamento. A lei obriga então o ex-marido a não se aproximar mais de 500 metros da casa da ex-mulher, com a advertência de que, se o fizer, será preso ou terá de pagar uma multa altíssima.
Os ex-maridos acatam a lei e se mudam para uma pensão barata, bem longe das ex-mulheres. Na pensão ficam olhando a chuva pela janela, arrependem-se de ser tão toscos, enchem a cara e desabam em camas infectas.
Nessa mesma noite, as ex-mulheres (por despeito, vingança ou porque a lei assim permite) deslocam sorrateiramente a própria casa sobre rodas e se aproximam – metro a metro – da pensão do ex-marido.
De manhã bem cedo, as mulheres vingativas ligam para a polícia e dizem:
“O filho de puta está a menos de 500 metros da minha casa! Acudam, ele está desrespeitando a lei!”
É assim que os ex-maridos passam uma temporada na cadeia ou pagam multas, sem nunca saber muito bem por quê.
Comparo essas mulheres despeitadas àqueles zagueiros que, sincronizados, dão um passo à frente para deixar o adversário em posição de impedimento.
II. O COSTUME
Num conhecidíssimo – e falso – experimento científico sobre o comportamento corporativo, cinco macacos são enfiados numa jaula enorme. No meio da jaula, há uma escada; no alto da escada, uma banana.
Quando um dos macacos tenta subir a escada para pegar a fruta, de uma mangueira jorra um forte jato de água fria contra os cinco. Se mais tarde um segundo macaco, desmemoriado ou faminto, tenta subir de novo a escada para pegar a banana, os outros quatro o impedem, por medo do jato de água.
Nesse ponto, um dos macacos é retirado da jaula, sendo substituído por um novo. A primeira coisa que o chimpanzé forasteiro faz, obviamente, é subir a escada. Os outros quatro dão guinchos de pavor e saltam sobre ele, golpeando-o e puxando-o para baixo, para impedi-lo de subir.
O recém-chegado aprende a lição, e outro macaco da população original é trocado por um segundo animal novo. Este também tenta subir, os outros o impedem, e assim por diante. Depois de algum tempo, todos os macacos originais são substituídos.
Os cinco novos chimpanzés enjaulados nunca foram atingidos pelo jato de água fria, nem conhecem o castigo original. Mesmo assim, a banana continuará intacta para todo o sempre no alto da escada.
Os cinco macacos finais vão brigar, gritar e guinchar toda vez que um deles, rebelde ou morto de fome, perder o controle e tentar subir para pegar a comida. Eles sabem que não podem fazer isso, só não sabem por quê.
Comparo o comportamento desses primatas ao dos jornalistas esportivos e torcedores – eu inclusive – que toda segunda-feira se atracam em debates, discussões e brigas motivadas pela lei do impedimento.
III. A ARMADILHA
Na primavera de 1924, Billy McCracken e Frank Hudspeth eram zagueiros do Newcastle. Naquela época, o jeito de jogar era muito diferente – o esquema mais comum era o 2-3-5: cinco atacantes e apenas dois zagueiros. Em geral, o goleiro dava um chutão, e todos corriam como loucos atrás da bola para tentar levá-la até a meta adversária.
Embora já existisse uma lei de impedimento rústica (a famosa regra número 9, instaurada em 1848, segundo a qual um atacante devia ter pelo menos três adversários à frente), esse inciso tinha sido criado apenas para evitar que os atacantes ficassem plantados na área do adversário esperando a bola. Só para isso. E a lei era acatada sem nenhum problema.
Até que, em 1924, o zagueiro Billy McCracken teve uma ideia. Uma tarde, no vestiário, sussurrou para seu companheiro de zaga:
“Ei, Frank, e se no próximo domingo a gente fizer um sinal combinado e der uns passos à frente quando o goleiro do outro time lançar a bola?”
Frank era meio burro e demorou um pouco a entender.
“Como assim, Billy? O que a gente ganharia com isso?”, perguntou.
McCracken procurou um giz e desenhou no chão as posições do campo:
“A gente dá esse passo à frente, os dois ao mesmo tempo, e a ilusão de ótica vai fazer o juiz pensar que o jogador adversário está impedido.”
Frank ficou boquiaberto: não podia acreditar que, em quase oitenta anos de futebol, ninguém tivesse pensado num truque tão simples. Mas era verdade: ninguém tinha pensado nisso antes.
Quando descobriram o macete, outras equipes da liga inglesa começaram a utilizar o sistema da linha burra, e as partidas de futebol caíram drasticamente em quantidade de gols e emoção. No início dos anos 20, o público sumiu dos estádios, os atacantes não sabiam mais o que fazer e os poucos torcedores não paravam de bocejar.
Para piorar, quando Billy McCracken pendurou as chuteiras, virou técnico e fez questão de continuar aplicando sua invenção. E a Football Association resolveu tornar a lei do impedimento mais férrea ainda, em vez de, simplesmente, proibir a linha burra.
Tremendo erro.
A primeira mudança na regra clássica do impedimento foi introduzida em 1925 e é conhecida como regra atual. A regra clássica dizia: “Um jogador estará em posição de impedimento quando se encontrar mais próximo da linha de fundo adversária do que a bola e o antepenúltimo adversário.”
A regra atual trocou a palavra “antepenúltimo” pela palavra “penúltimo”, para que as partidas não fossem tão tediosas depois do truque inventado por McCracken.
Por alguns anos, os gols reapareceram, mas depois o jogo foi se tornando mais físico e técnico, até que, numa certa tarde de 1990, depois de uma Copa terrivelmente chata disputada na Itália, ficou decidido que, se o atacante e o defensor estivessem “na mesma linha”, não haveria impedimento.
Passado algum tempo, em 2003, tentou-se um novo abraço de afogado para dar ritmo ao jogo. Introduziu-se então a “posição passiva”: quando um jogador não participa da jogada, não importa se ele está em posição de impedimento.
Ninguém nunca pensou em impedir o truque de McCracken, que teria sido a coisa mais natural. De resto, quase nenhum de nós tinha nascido em 1924, quando Billy teve aquela conversa com Frank.
Muitos anos depois, porém, essa malandragem de vestiário amador transformaria todos os zagueiros profissionais do século XXI em mulheres despeitadas da Patagônia, e todos nós, torcedores de futebol, em chimpanzés que toda segunda-feira discutem porque ninguém pode comer sua banana sossegado.
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