ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_2014
O voo de Nicolelis
A reedição do 14-Bis na abertura da Copa
Stefano Pupe | Edição 93, Junho 2014
No dia 12 de junho, o neurocientista Miguel Nicolelis pretende demonstrar em público, pela primeira vez, um projeto que vem desenvolvendo nos últimos anos. Se o roteiro for cumprido, um jovem paraplégico dará o pontapé inicial na cerimônia de abertura da Copa do Mundo, antes do jogo entre Brasil e Croácia. Ele caminhará com a ajuda de um exoesqueleto – uma espécie de armadura que revestirá seus membros inferiores – comandado pelo pensamento
Fã declarado do inventor Alberto Santos Dumont, em vários aspectos Nicolelis tem trajetória comparável à de seu ídolo. Ambos nasceram em famílias de condição financeira confortável, saíram do país relativamente cedo e fizeram carreira no exterior. Em comum, ainda, o gosto pela fama e por desafios. Para homenagear o aviador mineiro, o cientista paulistano batizou seu exoesqueleto de BRA-Santos Dumont 1.
O voo do 14-Bis, realizado diante de uma numerosa plateia em Paris, em 1906, fez de Santos Dumont o pai da aviação – paternidade provisória na França e definitiva no Brasil. Para o resto do mundo, porém, os inventores do avião são os irmãos americanos Orville e Wilbur Wright, que três anos antes do brasileiro haviam voado com o Wright Flyer I.
Os defensores de Santos Dumont alegam que o invento americano não alçava voo por meios próprios, dependia de uma espécie de catapulta. Não foi o brasileiro, porém, o pioneiro da decolagem autônoma. Os próprios irmãos Wright fizeram isso em seus primeiros voos, em 1903, antes de adotar a catapulta, e há relatos de que foram precedidos por ao menos três outros pioneiros da aviação.
Santos Dumont tinha controle apenas limitado sobre os movimentos do 14-Bis, cujos voos eram pouco mais que saltos em curta distância. O avião percorreu 220 metros em linha reta em seu trajeto mais longo, que durou 21 segundos. Antes disso, os irmãos Wright já haviam realizado percursos de quase 40 quilômetros, em voos circulares que lhes possibilitavam retornar ao ponto de partida.
Miguel Nicolelis costuma equiparar o objetivo que persegue a colocar um homem na Lua. Mas, assim como ocorreu com Santos Dumont, é possível que ao alcançar seu destino lá encontre algumas bandeiras já fincadas. Vários grupos em todo o mundo estão aprimorando exoesqueletos para incrementar a mobilidade de deficientes físicos. Alguns se encontram em estágio avançado. Uma paraplégica britânica foi capaz de completar uma maratona (42 quilômetros, no decorrer de dezesseis dias) utilizando um traje da empresa israelense ReWalk. Pelo menos onze grupos criaram protótipos já testados em humanos e com resultados divulgados em revistas científicas. Quatro exoesqueletos estão disponíveis comercialmente.
Nenhum deles, porém, usa sinais cerebrais do próprio sujeito para ativar o exoesqueleto, como propõe Nicolelis. Embora a voltagem produzida por um neurônio seja pouco expressiva se considerada individualmente, o conjunto dos bilhões de células do cérebro humano produz um sinal forte o bastante para ser captado por sensores acoplados ao couro cabeludo. Conhecida pela sigla EEG – de eletroencefalograma –, essa é a técnica que está na base do funcionamento do BRA-Santos Dumont 1.
Nicolelis costumava fazer pouco caso desse método. Ao longo da carreira, ele sempre defendeu o uso de centenas de eletrodos implantados diretamente no cérebro – um método invasivo, mas capaz de captar um sinal potencialmente muito mais rico. Como seu plano inicial era utilizar essa técnica para comandar o exoesqueleto, a mudança de rota surpreendeu alguns colegas. A razão para tal reviravolta provavelmente esbarra no limitado prazo que ele mesmo estipulou ao anunciar a demonstração na Copa, e nas dificuldades éticas e práticas impostas pela opção do método mais invasivo.
Outros pesquisadores já desenvolveram com sucesso exoesqueletos controlados por EEG. Um dos primeiros, chamado Mindwalker, foi criado pelo francês Guy Chéron, da Universidade Livre de Bruxelas. “Com pequenas adaptações”, ele relata, seu protótipo “seria capaz de dar alguns passos e chutar uma bola”. José Luis Contreras-Vidal, da Universidade de Houston, desenvolveu um exoesqueleto, o NeuroRex, movido por EEG e já testado num paciente paraplégico – os resultados foram publicados no ano passado. O NeuroRex poderia estar no Itaquerão em junho. “Eu estaria disposto a mostrá-lo na Copa do Mundo, juntamente com o protótipo de Nicolelis”, disse Contreras-Vidal.
Estudos clínicos com humanos comprovaram que o EEG permite distinguir de forma confiável entre apenas dois ou três comandos cerebrais diferentes. Como o movimento preciso das pernas exige uma gama bem mais complexa de instruções, o paciente que usar o BRA-Santos Dumont 1 terá apenas um controle rudimentar do exoesqueleto, com comandos do tipo “para a frente”, “parar” e “chutar”. Controles mais sofisticados, como o do equilíbrio e da velocidade, provavelmente estarão a cargo de softwares instalados na armadura.
Ainda não está claro como o exoesqueleto será capaz de reagir aos imprevistos do cotidiano. “O que aconteceria se uma rajada de vento movesse a bola 3 centímetros para a direita segundos antes do começo da demonstração?”, provocou o neurocientista Andrew Schwartz, da Universidade de Pittsburgh, numa entrevista recente à revista MIT Technology Review. “Tudo que você vai ver será uma demonstração de robótica, não de controle cerebral, provavelmente pré-programada.”
Mas muito do que se diz sobre o BRA-Santos Dumont 1 são especulações. Nicolelis não submeteu resultados dos seus testes mais recentes à avaliação dos colegas na literatura científica: é no Facebook que ele tem apresentado as novidades do projeto financiado com 33 milhões de reais de recursos públicos. O cientista se recusou a dar entrevista a piauí.
Na abertura da Copa, Nicolelis exibirá o exoesqueleto para uma grande plateia, assim como Santos Dumont 108 anos antes. O protótipo deverá maravilhar o público, embora ainda não tenha aplicação prática, nem ofereça grande controle ao usuário. O BRA-Santos Dumont 1 e o 14-Bis foram projetados não para proporcionar um método confiável de locomoção em longas distâncias, mas sim como uma demonstração de que um dia isso seria viável. Santos Dumont provavelmente desconhecia detalhes dos inventos dos irmãos Wright e tinha motivos para se julgar um pioneiro. Mas Nicolelis vai decolar consciente de que outros o precederam nessa corrida.
Leia Mais