O encontro estudantil promoveu um concurso de perguntas e respostas com questões como “qual o papa que excomungava comunistas?” FOTO: VITOR HUGO BRANDALISE_2019
Ordem no bandejão
Universitários se reúnem para celebrar o conservadorismo
Vitor Hugo Brandalise | Edição 151, Abril 2019
Na manhã do dia 16 de março, um sábado, o estudante João Vitor Ferreira batia palmas e balançava a cabeça ao som de uma paródia do reggaeton Despacito. “Bol-so-mi-to”, cantava o adolescente de 17 anos, sentado no chão de uma sala comercial na Vila Mariana, bairro paulistano de classe média. Balões verdes e amarelos decoravam o recinto. Em torno do rapaz, outros cinquenta jovens soltavam a voz com fervor crescente à medida que a música evoluía. Os versos acusavam a esquerda de matar bebês e salvar bandidos, falavam em “castrar os vagabundos que não guardam o pinto” e, claro, reverenciavam Jair Bolsonaro, “o mito, o messias que não é Cristo”.
Começou assim, com um show da banda Sépia, o primeiro encontro da recém-criada União Nacional dos Estudantes Conservadores. A Unecon pretende agregar jovens de direita que reclamam não encontrar espaço na octogenária UNE, a União Nacional dos Estudantes, historicamente ligada à esquerda. O deputado estadual Douglas Garcia, do PSL, organizou o evento. Aos 25 anos, ele cursa direito numa faculdade privada e é o parlamentar mais moço da Assembleia paulista. “A Unecon quer trazer de volta a liberdade de pensamento à vida acadêmica, hoje dominada por esquerdistas”, costuma alardear.
Antes do Despacito bolsonarista, a banda executou dois rocks – um do 4 Non Blondes e outro do Led Zeppelin. “Não é porque somos conservadores que não podemos ser roqueiros”, bradou a vocalista ao se despedir da plateia. O professor Gabriel Salgado, que leciona numa escola pública de São Vicente, na Baixada Santista, assumiu o palco logo em seguida. Iria discorrer sobre história e política, com base nas ideias de Olavo de Carvalho. Além de apoiar Bolsonaro, a Unecon se alinha às teses do polemista, que vive apregoando a necessidade de a direita brasileira ocupar todos os âmbitos da sociedade civil, dos centros de ensino às igrejas.
Negro, tímido e franzino, Ferreira acompanhou atentamente a palestra. Ele é calouro de história na Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, e beneficiário dos programas de cotas socioeconômicas. Mora em Itaquera, na periferia, onde divide um pequeno sobrado com o irmão caçula e os pais, imigrantes nordestinos que votam no PT. “Sempre me interessei por política e, na escola, a disciplina de que eu mais gostava era história”, contou. Um dia, descobriu na internet vídeos do historiador, blogueiro e comentarista da rádio Jovem Pan Marco Antonio Villa, crítico ferrenho dos governos petistas. “Foi então que comecei a definir minha posição ideológica. Li sobre o mensalão e outros roubos do PT, peguei raiva do partido e me interessei por José Serra, do PSDB, só porque ele combatia o petismo. Estudei mais um pouco e vi que os tucanos não são nada melhores. Aí apareceu o Bolsonaro, que virou minha referência no conservadorismo.” Hoje, o jovem se opõe à legalização do aborto e defende tanto o Estado mínimo quanto a flexibilização do porte de armas.
Embora ainda esteja começando a graduação, já se declara cansado “dos preconceitos contra os conservadores na universidade pública”. “Os professores fazem um monte de piadas, não conseguem nem chamar o Bolsonaro pelo nome. Falam: ‘A criatura que fica lá no Planalto.’ Desse jeito, não tem clima para o debate. Eu mesmo nunca expus meu pensamento em sala de aula por medo das represálias.” O estudante acredita que as coisas poderiam ser diferentes. “Na minha casa, meus pais votaram no PT. Eu votei no Bolsonaro. Nós divergimos, mas nem por isso paramos de dialogar.”
A exposição de Gabriel Salgado acabou girando em torno do “pensamento revolucionário de esquerda”, sobretudo o do alemão Karl Marx, que teria contribuído para o advento do fascismo e do nazismo – ainda que ambas as ideologias sejam notoriamente antimarxistas, o que o palestrante deixou de dizer. Salgado recebeu muitos aplausos quando estimulou os ouvintes a aprenderem por si próprios caso se vejam diante de um professor que manifeste posições políticas contrárias às deles. “O conhecimento quem desenvolve é você. O professor está falando groselhas e não deixa argumentar? Desligue o ouvido. Vá atrás de outro, de uma indicação de livro, da internet.”
Às três e meia da tarde, os organizadores do encontro promoveram um concurso de perguntas e respostas que atraiu 28 competidores, divididos em duas equipes. A sala onde o evento se realizava fica no 5º andar do edifício que abriga o Instituto Conservador. Criada em 2016, a entidade sem fins lucrativos oferece palestras sobre ciência política e mantém laços com o grupo Direita São Paulo, que apoiou o impeachment de Dilma Rousseff e agora se proclama bolsonarista.
Quais os presidentes da República durante o regime militar implantado em 1964? Quem capitaneou a Ação Integralista Brasileira, movimento de extrema direita que floresceu na década de 30? Quais os líderes da Revolução Cubana? Qual o nome do papa que excomungava comunistas? De 45 perguntas como essas, João Vitor Ferreira acertou 27 e garantiu a vitória de seu time. Mandando às favas a timidez habitual do garoto, os colegas o jogaram para o alto aos gritos de, também ele, “mito, mito, mito!”. Na tentativa de provar que “o comunismo é um fracasso”, o deputado Douglas Garcia decidiu que, em vez de os campeões levarem o prêmio, haveria um sorteio que incluiria os perdedores e todos os que não participaram da disputa. “Já que não existe meritocracia, como afirmam os esquerdistas, o desempenho dos vitoriosos não será necessariamente recompensado”, explicou o parlamentar.
Foi assim que o prêmio – o livro de memórias A Verdade Sufocada, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – chegou às mãos de Jamerson Lopes. O jovem de 19 anos, que não fazia parte nem da equipe derrotada, nem da ganhadora, nunca tinha ouvido falar do autor, um dos mais notórios agentes da repressão na ditadura. O deputado pôs-se a justificar a escolha do livro: seria “um documento histórico” e serviria “para ver o regime militar por outro ângulo”. “Conservadores acreditam que é preciso escutar mais versões da história”, apoiou o professor Gabriel Salgado. Na plateia, alguns gritaram: “Ustra vive!” Nenhum dos promotores do encontro, porém, se preocupou em esclarecer que o coronel – morto em 2015 – foi o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador.
Fundada em 1938, a União Nacional dos Estudantes esteve sob a égide da direita em um único período. Entre 1950 e 1956, em plena Guerra Fria, um movimento ligado à UDN, partido que rivalizava com o getulismo, comandou a agremiação. A retórica e as batalhas da época lembram as atuais. Por um lado, os conservadores falavam em liberdade de pensamento no meio estudantil e em expurgar os comunistas. Por outro, os adeptos da esquerda tachavam os adversários de “energúmenos fascistas”.
Procurada para comentar a crítica de ser avessa à pluralidade, a UNE afirmou, em nota, que representantes de qualquer linha política podem disputar suas eleições. “Se os fundadores da Unecon acham que temos opinião unilateral, então por que criaram uma entidade com apenas um grupo?”, indagou. “É contraditório.”
Antes de pegar o metrô para casa, João Vitor Ferreira se disse satisfeito com tudo o que aprendeu naquele sábado. “Eu não tinha o costume de conviver com o pessoal da direita. Acho que, agora, finalmente encontrei a minha turma.”
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