Ativistas de direitos humanos em Memphis, no Tennessee, em 1968: os norte-americanos tinham criado uma definição de raça que não seguia a lógica nem a ciência, com uma abordagem que um nazista definiu como “construção política da raça” CREDITO: MCCOOL_ALAMY_FOTOARENA
Os nazistas e a aceleração das castas
Como a legislação norte-americana influenciou Hitler
Isabel Wilkerson | Edição 175, Abril 2021
Tradução de Denise Bottmann e Carlos Alberto Medeiros
O inspetor de obras estava diante do mistério de um teto deformado em minha casa e primeiro colocou um sensor na superfície para verificar se estava úmido. Como o resultado foi inconclusivo, pegou a câmera de infravermelho para tirar uma espécie de radiografia do que estava acontecendo, seguindo o princípio de que não se pode resolver um problema sem conferir antes do que se trata. Ele conseguiu então enxergar através do revestimento, por trás da superfície que fora pintada ou coberta com papel de parede, tal como agora devemos fazer em nossas casas para examinar uma estrutura construída muito tempo atrás.
Como acontece com outras residências velhas, os Estados Unidos têm um esqueleto que não se vê, um sistema de castas que é fundamental para seu funcionamento, tal como as vigas e as traves invisíveis nas construções físicas que chamamos de casas. A casta é a infraestrutura das nossas divisões. É a arquitetura da hierarquia humana, o código subconsciente de instruções para manter, no caso dos Estados Unidos, uma ordem social de quatrocentos anos. Examinar a casta é como segurar a radiografia do país contra a luz.
Um sistema de castas é uma construção artificial, uma classificação do valor humano, fixada e arraigada, que estabelece a suposta supremacia de um grupo contra a suposta inferioridade de outros, com base na ancestralidade e em traços muitas vezes inalteráveis, traços que seriam neutros no plano abstrato, mas que ganham um significado de vida ou morte numa hierarquia que favorece a casta dominante concebida pelos antepassados. Um sistema de castas utiliza limites rígidos, muitas vezes arbitrários, para manter os grupos separados, diferenciados uns dos outros, em seus respectivos lugares.
Na história humana, três sistemas de castas se destacam. O sistema de castas da Alemanha nazista, assustador, tragicamente acelerado e oficialmente derrotado. O sistema indiano, que subsiste há milênios. E a pirâmide de castas dos Estados Unidos, fundamentada na raça, que é tácita e muda de forma ao longo do tempo. Cada versão se baseou na estigmatização de pessoas supostamente inferiores a fim de justificar a desumanização necessária para manter na base da sociedade as pessoas de classificação mais baixa e os protocolos para a vigência dessa ordem. Um sistema de castas perdura porque muitas vezes é justificado em nome da vontade divina, originando-se dos textos sagrados ou de pretensas leis da natureza, reforçado por toda a cultura e transmitido ao longo das gerações.
Em nossa vida cotidiana, a casta é como uma sala de teatro escura onde entramos em silêncio, o lanterninha apontando para baixo o facho de luz, nos conduzindo aos lugares que nos foram designados para assistir ao espetáculo. A hierarquia de castas não tem a ver com a moral ou os sentimentos, mas com o poder – quais grupos o têm, quais não –, os recursos – qual casta é tida como merecedora deles, qual não, quem pode ou não adquiri-los e controlá-los –, o respeito, a autoridade e os pressupostos de competência – a quem são ou não concedidos.
Como meio de atribuir valor a setores inteiros da espécie humana, a casta serve de parâmetro para cada um de nós, muitas vezes para além de nossa consciência. Ela embute em nossa estrutura óssea uma classificação inconsciente das características humanas e apresenta as regras, as expectativas e os estereótipos que têm sido usados para justificar brutalidades contra grupos inteiros em nossa espécie. No sistema de castas norte-americano, o sinal indicador da classificação é o que chamamos de raça, a divisão dos seres humanos com base em sua aparência. Nos Estados Unidos, a raça é o instrumento básico, o marcador visível, a fachada da casta.
A raça faz o trabalho pesado para um sistema de castas que exige um meio de divisão humana. Se somos ensinados a ver os seres humanos na linguagem da raça, a casta, por sua vez, é a gramática subjacente que assimilamos desde crianças, como quando aprendemos nossa língua materna. A casta, como a gramática, se torna um guia invisível não só para o modo como falamos, mas também para o modo como processamos as informações, os cálculos que fazemos por reflexo condicionado diante de uma frase sem precisar pensar nela. Muitos de nós nunca tiveram aulas de gramática, mas, mesmo assim, sabemos que um verbo transitivo pede um objeto, que um sujeito precisa de um predicado; sabemos, sem ter que pensar, a diferença entre a terceira pessoa do singular e a terceira do plural. Podemos dizer “raça” nos referindo às pessoas como negras, brancas, latinas, asiáticas ou indígenas, mas o que está por trás de cada rótulo são séculos de história e de atribuição de pressupostos e valores a traços físicos dentro de uma estrutura hierárquica dos seres humanos.
A aparência das pessoas, ou melhor, a raça que lhes é atribuída ou a que pertencem, segundo a percepção alheia, é a pista visível de sua casta. É o crachá histórico para o público, indicando como devem ser tratadas, onde é de supor que morem, que tipo de posição é de supor que ocupem, se são de tal ou tal parte da cidade ou se têm tal ou tal cargo numa diretoria, se é de esperar que falem com autoridade sobre tal ou tal assunto, se receberão analgésico num hospital, se o bairro onde vivem provavelmente é vizinho a uma área de despejo de resíduos tóxicos ou se a água da torneira de suas casas é contaminada, se têm maior ou menor probabilidade de sobreviver ao parto na nação mais avançada do mundo, se podem ser alvejadas impunemente pelas autoridades.
Sabemos que as letras do alfabeto são neutras e só têm sentido quando se combinam para formar uma palavra, que, por sua vez, não tem significado até ser inserida numa sentença e interpretada pelo falante. Assim como “negro” e “branco” foram termos aplicados a pessoas que, literalmente, não eram nem uma coisa nem outra, e sim gradações de marrom, bege e marfim, o sistema de castas coloca as pessoas em polos opostos e atribui significado aos extremos e às gradações intermediárias, e então reforça esses significados reproduzindo-os nos papéis que eram e são atribuídos a cada casta, sendo ela autorizada ou obrigada a cumprir.
Casta e raça não são sinônimos nem mutuamente excludentes. Podem coexistir e de fato coexistem na mesma cultura, e servem para reforçar uma à outra. A raça, nos Estados Unidos, é o agente visível da força invisível da casta. A casta é a ossatura, a raça é a pele. A raça é o que podemos ver, os traços físicos que receberam um significado arbitrário e se tornaram um resumo do que a pessoa é. A casta é a poderosa infraestrutura que mantém cada grupo em seu lugar.
A casta é fixa e rígida. A raça é fluida e superficial, sujeita a redefinições periódicas para atender às necessidades da casta dominante nos Estados Unidos de hoje. Os requisitos para se qualificar como branco mudaram ao longo dos séculos, enquanto a existência concreta de uma casta dominante persiste desde seus primórdios – a quem quer que coubesse a definição de branco, em qualquer momento da história, eram concedidos os direitos legais e os privilégios da casta dominante. De modo talvez mais crítico e mais trágico, na parte de baixo da escala, a casta subordinada também se fixou desde o começo como o chão psicológico abaixo do qual nenhuma outra casta pode cair.
Assim, todos nascemos num jogo de guerra silencioso, com séculos de existência, em equipes que não escolhemos. O lado para o qual somos designados no sistema norte-americano de classificação humana é anunciado pelo uniforme da equipe usado pela casta, indicando nosso suposto potencial e valor. Que alguém consiga criar ligações duradouras por sobre essas linhas divisórias inventadas é um atestado da beleza do espírito humano.
O uso de características físicas hereditárias para diferenciar capacidades internas e valores de grupo é, talvez, o meio mais engenhoso já concebido por uma cultura para gerir e manter um sistema de castas.
“Como divisão social e humana”, escreveu o cientista político Andrew Hacker sobre a utilização de traços físicos para criar categorias humanas, “ela ultrapassa todas as outras – inclusive o gênero – em intensidade e subordinação.”
Berlim, junho de 1934.
Na fase inicial do Terceiro Reich, antes mesmo que o mundo pudesse imaginar os horrores que viriam, um comitê de funcionários nazistas se reuniu para avaliar as opções para impor uma nova e rígida hierarquia que isolasse o povo judeu dos arianos. Os homens reunidos naquele final de primavera de 1934 não estavam planejando o extermínio nem se encontravam em posição de planejá-lo. Isso ocorreria anos depois em uma reunião assustadoramente apática e catastrófica em Wannsee, um bairro berlinense, já no auge de uma guerra mundial que, então, ainda não se iniciara.
Naquele dia, 5 de junho de 1934, eles estavam reunidos para debater o arcabouço jurídico para uma nação ariana, para converter a ideologia nazista em lei, e ansiosos por discutir os resultados de suas pesquisas sobre como outros países protegiam a pureza racial contra a mácula dos desfavorecidos. Eles se encontraram a portas fechadas, considerando a reunião séria o suficiente para incluírem um estenógrafo que registrasse os trabalhos e fizesse a transcrição. Ao tomarem assento para discutir o que, por fim, resultaria nas leis de Nuremberg, o primeiro ponto da pauta foram os Estados Unidos e o que poderiam aprender com o país.
O homem que presidia a reunião, Franz Gürtner, ministro da Justiça do Reich, abriu a sessão apresentando um memorando que expunha em detalhes as medidas dos Estados Unidos para lidar com seus grupos marginalizados e proteger o bloco dominante de cidadãos brancos. Os dezessete juristas e funcionários nazistas leram e releram as leis de pureza norte-americanas que regulamentavam a imigração e o casamento inter-racial. Ao debater “como institucionalizar o racismo no Terceiro Reich”, escreveu James Q. Whitman, historiador de direito da Universidade Yale, eles “começaram se perguntando como os norte-americanos faziam”.[1]
Os nazistas não precisavam de gente de fora para plantar entre eles as sementes do ódio. Mas, nos primeiros anos do regime, quando ainda tinham interesse em manter uma aparência de legitimidade e a esperança de atrair investimentos estrangeiros, buscaram protótipos jurídicos para o sistema de castas que estavam montando. Eles desejavam prosseguir rapidamente com seus planos de pureza e separação racial, e sabiam que os Estados Unidos estavam séculos à frente, com seus estatutos legais contra a miscigenação e a proibição da imigração com base na raça. “Para nós, alemães, é especialmente importante saber e ver como uma das maiores nações do mundo com linhagem nórdica já tem uma legislação racial plenamente comparável à do Reich alemão”, escreveu a agência de imprensa alemã Grossdeutscher Pressedienst quando os nazistas consolidaram seu controle sobre o país.
Os europeus ocidentais estavam cientes desde longa data do paradoxo norte-americano de proclamar a liberdade para todos os homens e ao mesmo tempo manter subconjuntos de seu corpo de cidadãos numa subjugação quase completa. O escritor francês Alexis de Tocqueville percorreu a América pré-Guerra Civil, nos anos 1830, e observou que apenas a “superfície da sociedade norte-americana está coberta por uma camada de tinta democrática”. A Alemanha entendia bem a fixação norte-americana na pureza de raça e na eugenia, a pseudociência de hierarquizar os seres humanos segundo a pretensa superioridade de grupo. Muitos norte-americanos de destaque haviam se juntado ao movimento eugenista do começo do século XX, entre eles o inventor Alexander Graham Bell, o magnata do setor automobilístico Henry Ford e o reitor da Universidade Harvard, Charles W. Eliot. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Sociedade Alemã da Higiene Racial aplaudiu “a dedicação com que os norte-americanos patrocinam pesquisas no campo da higiene racial e transpõem o conhecimento teórico para a prática”.
Os nazistas haviam se entusiasmado, sobretudo, com as teorias raciais militantes de dois eugenistas norte-americanos bastante famosos, Lothrop Stoddard e Madison Grant. Os dois eram homens em posições privilegiadas, nascidos e criados no Norte e formados na Ivy League.[2] Ambos alcançaram renome, agora desacreditado, propagando uma ideologia do ódio que fazia uma tosca classificação da “linhagem” europeia, declarava que os europeus orientais e meridionais eram inferiores aos “nórdicos” e defendia a exclusão e a eliminação de “raças” – que, para eles, constituíam ameaças à pureza racial nórdica –, sobretudo a dos judeus e a dos “pretos”.
Um termo racial ofensivo que os nazistas adotaram na campanha para desumanizar os judeus e outros povos não arianos – Untermensch, isto é, “sub-humano” – chegou a eles a partir de Stoddard, nascido na Nova Inglaterra. Um livro que ele escrevera em 1922 trazia o subtítulo The Menace of the Underman (A ameaça do sub-homem), que a edição alemã traduziu como Die Drohung des Untermenschen. Os nazistas adotaram o termo, associando-se a ele em larga medida. Incluíram o livro de Stoddard sobre a supremacia branca como bibliografia obrigatória no currículo escolar do Reich e, em dezembro de 1939, concederam ao autor uma audiência reservada com Adolf Hitler, que costumava ser deliberadamente inacessível, na Chancelaria do Reich. Em plena Segunda Guerra Mundial, Stoddard acompanhou as experiências de esterilização feitas pelos nazistas e os elogiou por “extirparem as piores cepas na linhagem germânica de maneira científica e verdadeiramente humanitária”. Lamentou, porém, que “os julgamentos deles fossem, no mínimo, quase demasiado conservadores”.
Madison Grant, um importante eugenista de Nova York cujo círculo social incluía os presidentes Theodore Roosevelt e Herbert Hoover, empregou seu ardoroso entusiasmo pela supremacia ariana para ajudar a implantar uma série de restrições norte-americanas à imigração e ao casamento nos anos 1920, quando o Partido Nazista ainda estava se formando no outro lado do Atlântico. Grant ia muito além dos segregacionistas sulistas no desprezo pelas pessoas marginalizadas, sustentando que as “linhagens inferiores” deviam ser esterilizadas e mantidas em isolamento num “rígido sistema de eliminação dos fracos ou incapazes” ou “talvez tipos raciais imprestáveis”. Ele publicou em 1916 um colérico manifesto pela limpeza do conjunto genético dos indesejáveis, o livro A Passagem da Grande Raça ou A Base Racial da História Europeia, cuja edição alemã ocupava lugar de destaque na biblioteca do Führer. Hitler chegou a escrever uma nota pessoal de agradecimento a Grant, dizendo: “O livro é minha Bíblia.”[3]
Hitler estudara os Estados Unidos a distância, com inveja e admiração, e atribuía as conquistas norte-americanas à linhagem ariana do país. Elogiava o quase genocídio dos indígenas norte-americanos e o desterro para reservas daqueles que restaram. Agradava-lhe que os Estados Unidos tivessem “abatido os milhões de peles-vermelhas, reduzindo-os a algumas centenas de milhares”.[4] E, como escreveu o historiador Jonathan Spiro, via a Lei de Restrição à Imigração, promulgada pelos Estados Unidos em 1924, como “modelo para seu programa de purificação racial”. Os nazistas ficaram impressionados com o costume norte-americano de linchar pessoas da casta subordinada de afro-americanos, tendo tomado conhecimento das torturas e mutilações rituais que em geral acompanhavam os linchamentos. Hitler sentia especial admiração pela “habilidade [norte-americana] de manter um ar de grande inocência na esteira das mortes em massa”.[5]
Quando Hitler subiu ao poder, os Estados Unidos “não eram apenas um país onde havia racismo”, escreveu Whitman, o historiador de direito de Yale. “Eram a principal jurisdição racista – a tal ponto que mesmo a Alemanha nazista buscou inspiração nos Estados Unidos.” Os nazistas reconheciam os paralelos, ainda que muitos norte-americanos não os vissem.
Assim, naquele dia de junho de 1934, quando dezessete juristas e funcionários do Reich começaram a deliberar sobre a nova legislação sem precedentes na Alemanha, eles haviam examinado com atenção os Estados Unidos e tinham aprendido muitas coisas. Um dos homens, Heinrich Krieger, estudara direito no Sul do país, pelo programa de intercâmbio estudantil da Universidade do Arkansas, e escrevera extensamente sobre os regimes raciais estrangeiros, tendo passado dois anos na África do Sul. Naquele momento estava concluindo um livro que seria publicado na Alemanha dois anos mais tarde, com o título Das Rassenrecht in den Vereinigten Staaten (O direito racial nos Estados Unidos). Os juristas nazistas haviam pesquisado a jurisprudência norte-americana com profundidade suficiente para saber que, desde os casos de escravos fugitivos até o caso Plessy versus Ferguson[6] e outros posteriores, “a Suprema Corte norte-americana ouvira depoimentos dos estados sulistas cujos argumentos não se distinguiam dos argumentos nazistas”, observou Whitman.
Na busca por protótipos, os nazistas haviam examinado países de dominação branca como a Austrália e a África do Sul, mas “não conseguiram encontrar nenhum outro modelo no mundo para a legislação antimiscigenação”, escreveu Whitman. “Eles concentraram seu interesse maciçamente no ‘exemplo clássico’, os Estados Unidos da América.”[7]
Aqueles dezessete homens estavam reunidos numa época de intrigas e distúrbios num país que descia rumo à ditadura. Os nazistas estavam nos estágios finais de se consolidar no poder, após o terem tomado no ano anterior. Hitler assumira como chanceler, mas ainda não era o Führer. Isso se daria pouco tempo depois, em agosto de 1934, quando a morte do presidente da Alemanha, Paul von Hindenburg, o último bastião do regime de Weimar, abriu caminho para que ele assumisse o controle total.
Hitler chegara à chancelaria numa negociação com as elites conservadoras, que só haviam se acertado com ele porque achavam que conseguiriam controlá-lo e poderiam usá-lo para seus próprios fins políticos. Subestimaram a astúcia do chanceler e superestimaram sua base de apoio, que foi a razão inicial pela qual julgaram precisar dele. No auge de seu poder nas urnas, os nazistas não alcançaram a maioria que desejavam, conquistando apenas 38% dos votos na última eleição livre e limpa do país, a mesma que deu início aos doze anos de reinado nazista. A velha guarda não previu, ou preferiu não ver, que a real missão de Hitler era “usar os métodos da democracia para destruir a democracia”.
Quando as elites conservadoras perceberam seu erro fatal de cálculo, já era tarde demais. Hitler subira ao poder como agitador externo, uma figura cultuada que adorava cerimônias pomposas e comícios com desfiles em que as pessoas carregavam archotes que faziam lembrar “rios de fogo”, segundo um observador. Hitler se via como a voz do Volk (povo), de suas reclamações e apreensões, sobretudo das zonas rurais, como um salvador enviado por Deus, agindo instintivamente. Até então, nunca fora eleito para nenhum cargo.
Assim que ele tomou posse como chanceler, os nazistas empunharam suas suásticas, um símbolo sânscrito que os vinculava a suas “raízes” arianas, e começaram a fechar o cerco contra os judeus. Acumulavam antigos ressentimentos, que remontavam aos tempos da Idade Média e que redespertaram quando os judeus foram transformados nos bodes expiatórios da derrota e humilhação da Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial. Vistos como figuras dominantes no setor bancário e financeiro, os judeus foram acusados de não dar apoio suficiente ao esforço de guerra, embora os historiadores agora reconheçam amplamente que a Alemanha perdeu no campo de batalha, e não apenas por falta de fundos.
Apesar disso, a propaganda nazista se empenhou em virar os alemães contra os cidadãos judeus. Brutamontes nazistas perseguiam e espancavam nas ruas os judeus e quaisquer arianos que mantivessem relações com eles. O regime começou a restringir a presença de judeus em cargos no governo e em profissões liberais de status elevado, como a medicina ou o direito, campos que despertavam inveja entre os alemães comuns, que não dispunham de meios para comprar automóveis caros e mansões como os muitos judeus bem-sucedidos haviam adquirido. Estava-se no meio da Grande Depressão; em 1933, ano em que os nazistas chegaram ao poder, mais de um terço dos alemães estava desempregado. O prestígio e a riqueza dos judeus eram vistos como excessivos para um grupo que, conforme decretaram os nazistas, era inferior aos arianos.
Ciosos em manter as aparências fora de suas fronteiras, pelo menos por ora, os nazistas se perguntavam como os Estados Unidos tinham conseguido transformar sua hierarquia social numa legislação rígida, conservando ao mesmo tempo excelente reputação no cenário mundial. Eles notaram que, nos Estados Unidos, em se tratando dessas proibições raciais, “a opinião pública as aceitava como naturais”, escreveu a historiadora Claudia Koonz em seu livro The Nazi Conscience (A consciência nazista).
Um jovem intelectual nazista chamado Herbert Kier ficou encarregado de montar uma tabela das leis raciais norte-americanas, e se espantou ao ver a que ponto os Estados Unidos haviam chegado para segregar sua população. Observou que, por lei, na maioria dos estados sulistas, “as crianças brancas e as crianças pretas são enviadas a escolas diferentes”, e que a maioria dos estados “exige também que a raça conste das certidões de nascimento, dos documentos e dos atestados de óbito”. Kier descobriu que “muitos estados norte-americanos chegam ao ponto de exigir por lei instalações segregadas para pretos e brancos nas salas de espera, nos vagões de trem, vagões-dormitórios, bondes, ônibus, vapores e mesmo nas prisões e cadeias”. No Arkansas, observou, os registros de bens eram segregados. Mais tarde, ele comentou que, em vista da “proposição fundamental da igualdade de tudo o que tenha um semblante humano, é ainda mais espantosa a extensão da legislação racial nos Estados Unidos”.
Kier era apenas um dos vários pesquisadores nazistas “que pensavam que a legislação norte-americana exagerava”, escreveu Whitman.
Tendo diante de si os resultados de suas pesquisas, os homens na reunião de junho começaram a discutir dois caminhos principais para sua versão de um sistema de castas: primeiro, criar uma definição jurídica para as categorias de judeus e arianos; segundo, proibir o casamento entre eles. Décadas antes, a Alemanha examinara as leis contra a miscigenação nos Estados Unidos e testara sua própria proibição ao casamento inter-racial na virada do século XX, quando vetou a miscigenação de alemães com os povos indígenas em suas colônias no sudoeste da África. Com isso a Alemanha foi além da maioria das outras potências coloniais, mas não chegou nem perto do modelo norte-americano. Agora, os extremistas nazistas insistiam em formas de impedir “qualquer introdução adicional de sangue judeu no corpo do Volk alemão”.
Enquanto prosseguia o debate, Krieger, o ex-estudante de direito na Universidade do Arkansas, informou que os norte-americanos tinham chegado a converter o casamento inter-racial em crime punível por lei, sujeito a até dez anos de prisão em diversas jurisdições. Ele destacou que os Estados Unidos haviam dividido sua população em duas partes, com uma “linha artificial” entre brancos e negros. Krieger e outros nazistas se mostraram fascinados com o costume norte-americano de classificar os seres humanos por categorias usando frações de ancestralidade que se faziam visíveis. “Há uma tendência crescente na prática judicial”, disse ele, “de classificar a pessoa num grupo de pretos sempre que haja um mínimo traço visível de características físicas pretas.”
Os homens presentes naquele encontro discordavam até que ponto se baseariam na jurisprudência norte-americana. Os moderados à mesa – entre eles o próprio presidente da reunião, Franz Gürtner – defendiam métodos menos onerosos do que os utilizados pelos norte-americanos. Ele sugeriu que “a educação e o esclarecimento” sobre “os perigos da mistura racial” talvez fossem suficientes para desencorajar o casamento dos arianos com outros grupos. A certo ponto, tentou diminuir a relevância do protótipo norte-americano, pois tinha dificuldade em acreditar que os Estados Unidos realmente aplicavam as leis que os nazistas haviam encontrado. “Gürtner simplesmente se negava a admitir que os norte-americanos haviam chegado a ponto de processar os que se miscigenavam”, escreveu Whitman.
Um dos linha-dura da mesa, o radical nazista Roland Freisler, estava impaciente com o ritmo dos trabalhos. Ele havia ingressado no Partido Nazista nos anos 1920 e insistia numa lei que punisse judeus e arianos por “traição racial” caso se casassem entre si. Ele e outros extremistas na sala retomavam a discussão sobre as leis norte-americanas reiteradamente, explicando-as, defendendo-as e tentando convencer os céticos.
“Como eles fazem isso?”, perguntou Freisler a certa altura, detalhando sua pesquisa sobre os Estados Unidos e suas leis de classificação humana. Os norte-americanos, explicou ele, usavam uma série de parâmetros de cores variadas para separar os brancos de todos os outros. Um estado, disse ele, classificava todas e quaisquer “pessoas da África, Coreia ou Malásia” como não brancas. Em outro exemplo, disse ele, “Nevada fala de etíopes ou raça negra, malásios ou raça parda, mongóis ou raça amarela”. Freisler sustentou que a superposição das contradições podia operar em benefício deles. O emaranhado de definições conferia à tarefa da divisão humana uma amplitude e uma falta de coerência que seriam úteis. Os norte-americanos tinham criado uma definição de raça que não seguia a lógica nem a ciência, com uma abordagem que Freisler definiu como “construção política da raça”.
O que os nazistas não conseguiam entender, porém, era a razão pela qual, nos Estados Unidos, “os judeus, que também são do nosso interesse, não estão incluídos entre os grupos de gente de cor”, pois era mais do que evidente para os nazistas que eles constituíam uma “raça” separada, e os Estados Unidos já haviam mostrado alguma aversão a eles ao impor cotas à imigração judaica. À exceção desse ponto, que para os nazistas era uma omissão vergonhosa, “essa jurisprudência se adequaria perfeitamente a nós”, disse Freisler, que, sem que os presentes à mesa soubessem, um dia a utilizaria implacavelmente em sua carreira de juiz adepto da pena capital no Reich. “Sou da opinião de que precisamos proceder com o mesmo primitivismo que é utilizado nesses estados norte-americanos”, disse ele. “Tal procedimento seria tosco, mas bastaria.”
Os que estavam em dúvida continuaram a questionar as leis norte-americanas. Indagaram repetidas vezes como funcionaria uma proibição matrimonial, examinaram atentamente as propostas de definição de judeus e arianos, tentaram entender o sistema fracionário norte-americano. Os moderados ficaram incomodados com a ideia de que pessoas em parte judias e em parte arianas perderiam o lado ariano e seriam privadas de privilégios de casta que, de outra forma, lhes seriam concedidos. Em vez de defini-las como em parte judias, indagavam-se os céticos, não poderiam designá-las em parte arianas? Mas um linha-dura, Achim Gercke, retomou o protótipo que estavam analisando e propôs a definição de 1/16 de sangue de origem judaica para a classificação dos judeus, escreveu Koonz, “pois não queria ser menos rigoroso do que os norte-americanos”.
Naquele dia, a discussão se arrastou por dez horas, e a reunião terminou sem que chegassem a um acordo. “Ficamos falando de coisas diferentes”, disse Freisler ao final, frustrado por não terem feito nenhum progresso. Os moderados tinham, por ora, conseguido conter os radicais que defendiam o protótipo norte-americano. Mas, quinze meses depois, os radicais viriam a prevalecer.
Em setembro de 1935, Hitler convocou o Reichstag para a reunião nazista anual em Nuremberg a fim de anunciar a nova legislação que vinha sendo preparada desde a chegada dos nazistas ao poder. Àquela altura, ele já mandara prender ou matar muitos de seus adversários políticos. Foram assassinados, inclusive, doze membros do Reichstag e o seu velho amigo Ernst Röhm, chefe das SA, unidade paramilitar nazista. Com tudo isso, o Reichstag se tornara um fantoche do governo, que se submetera por força das intimidações. No mesmo momento, os nazistas estavam construindo campos de concentração por todo o país. Um deles logo seria aberto em Sachsenhausen, ao norte de Berlim, tornando-se uma das “vitrines” do Reich.
O plano era anunciar a legislação, que passou a ser conhecida como as Leis de Nuremberg, no último dia da reunião. Na noite anterior, Hitler determinou que um pequeno grupo de deputados lhe redigisse uma versão que seria entregue ao Reichstag para homologação. Os pesquisadores nazistas haviam encontrado uma cláusula em algumas das leis norte-americanas contra a miscigenação que poderia ajudá-los a definir se uma pessoa parcialmente judia devia ser considerada judia ou ariana. Descobriu-se que o Texas e a Carolina do Norte tinham uma “cláusula por associação” em suas proibições a casamentos mistos que os ajudava a decidir se uma pessoa ambígua era negra ou branca, privilegiada ou desfavorecida. Essa pessoa seria incluída no grupo desfavorecido se tivesse se casado ou estivesse sabidamente associada a pessoas do grupo desfavorecido, ameaçando assim a pureza da casta.
Foi isso que Hitler anunciou naquele mês de setembro e ampliou nos meses subsequentes: a Lei de Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã definia como judeu a pessoa que tivesse três avós judeus. Também “contava” como judia qualquer pessoa com dois avós judeus e que praticasse o judaísmo, ou fosse aceita na comunidade judaica ou estivesse casada com um judeu, na mesma linha da cláusula por associação dos norte-americanos.
Além disso, a lei proibia o casamento e as relações sexuais fora do casamento entre judeus e alemães, e proibia as mulheres alemãs com menos de 45 anos de idade de trabalharem numa residência judaica.
Assim se iniciou uma campanha de restrições cada vez mais rigorosas. A partir de então, os judeus perderam a cidadania, foram proibidos de ostentar a bandeira alemã, não puderam mais tirar passaporte. Com aquele anúncio, “a Alemanha se tornou um regime racista pleno”, escreveu o historiador George M. Fredrickson. “As leis norte-americanas foram os principais precedentes estrangeiros para tal legislação.”
Mas, devido à obsessão dos nazistas pela raça, o protótipo dos Estados Unidos tinha seus limites. “Nesse sentido, os estudiosos que veem paralelos entre os esquemas de classificação racial norte–americanos e nazistas estão errados”, disse Whitman, “mas somente porque subestimam, na comparação, a severidade da legislação norte-americana.”
Por catastróficas que fossem as Leis de Nuremberg, os nazistas não foram tão longe em sua legislação quanto haviam chegado em suas pesquisas sobre os Estados Unidos. Um único aspecto do sistema norte-americano não foi para frente naquela reunião a portas fechadas nem na versão final das Leis de Nuremberg. Ainda que elogiassem “o empenho norte-americano em legislar sobre a pureza racial”, os nazistas não conseguiram aceitar “o implacável rigor” de que “um norte-americano ou uma norte-americana que tenha ao menos que seja ‘uma única gota de sangue negro nas veias’ se incluísse entre os negros”, escreveu Whitman. “A regra de uma única gota era severa demais para os nazistas.”
Trecho de Casta: As Origens do Nosso Mal-Estar, a ser lançado neste mês pela editora Zahar.
[1] Hitler’s American Model: The United States and the Making of Nazi Race Law (O modelo americano de Hitler: Os Estados Unidos e a elaboração da lei racial nazista), o inquietante livro de James Q. Whitman, mostra uma assustadora investigação sobre como o sistema legal norte-americano influenciou e inspirou diversas políticas raciais nazistas. Baseado em uma profusão de pesquisas e na meticulosa leitura dos registros nazistas e da literatura da época do Reich, Whitman reconstrói um quadro completo da conexão nazista com a lei racial norte-americana. O livro descreve em detalhes a reunião de planejamento da Comissão de Reforma da Legislação Criminal de 5 de junho de 1934.
[2] O grupo das principais universidades privadas norte-americanas, como Yale, Princeton e Harvard. [N. R.]
[3] Jonathan Spiro, Defending the Master Race: Conservation, Eugenics, and the Legacy of Madison Grant (Defendendo a raça principal: Conservação, eugenia e o legado de Madison Grant). Para se ter ideia do lugar que Grant e Stoddard ocupavam na cultura popular norte-americana da época, F. Scott Fitzgerald referiu-se a eles, numa fusão velada dos dois homens, num diálogo de O Grande Gatsby. Na cena em questão, Tom e Daisy conversam sobre “um belo livro” que Tom está lendo, de “um tal de Goddard”, sobre os desafios enfrentados pela “raça dominante”.
[4] Waitman Wade Beorn, The Holocaust in Eastern Europe: At the Epicenter of the Final Solution (O Holocausto na Europa Oriental: No epicentro da solução final).
[5] Eugene DeFriest Bétit, Collective Amnesia: American Apartheid – African Americans’ 400 Years in North America, 1619-2019 (Amnésia coletiva: Apartheid americano – os 400 anos dos afro-americanos na América do Norte, 1619-2019). Hitler examinara pessoalmente as políticas raciais norte-americanas. “Estudei com interesse as leis de diversos estados norte-americanos”, disse ele, “sobre a prevenção à reprodução por pessoas cuja progênie não teria, com toda probabilidade, nenhum valor, ou seria injuriosa para a cepa racial”, registra Timothy W. Ryback em Hitler’s Private Library (Biblioteca particular de Hitler).
[6] Famoso caso jurídico em que a Suprema Corte norte-americana decidiu (por 7 votos a 1), em 1896, pela constitucionalidade da decisão de alguns estados do Sul do país de impor a segregação racial em locais públicos, mas desde que as condições oferecidas aos diferentes grupos raciais fossem iguais. Com isso, fixou-se a política do “separados, mas iguais”. [N. R.]
[7] Whitman, Hitler’s American Model. A África do Sul não imporia uma proibição ao casamento inter-racial até 1949, com a aprovação da Lei de Proibição de Casamentos Mistos. Em 1957, o país aprovou a seção 16 da Lei da Imoralidade, que proibia negros e brancos de viver juntos e ter relações sexuais. Nathaniel Sheppard, S. Africa Plans to Repeal Racial Sex Ban, no Chicago Tribune, 16/4/1985.
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