"Dilma é mais intransigente do que Lula em relação à mediocridade e ao desmando. A reação dela é muito forte, visceral. Lula tem um jeitão mais paternal. Ele é mais macunaímico", diz Gilberto Carvalho ILUSTRAÇÃO: BAPTISTÃO
Os ouvidos do Planalto
Herança de Lula para Dilma, o veterano Gilberto Carvalho amplia sua importância no centro do poder, explica as diferenças entre o ex-presidente e a presidenta, diz que os “quadros de primeira linha do PT” caíram e mostra como o Palácio do Planalto administrou a crise que confirmou agosto como o mês agourento da política
Plínio Fraga | Edição 60, Setembro 2011
O ministro Gilberto Carvalho chegou à garagem do Palácio do Planalto, estendeu a mão e cumprimentou Wilame Renato Teixeira. O servidor militar do Gabinete de Segurança Institucional levantou-se, prestou continência e começou a imitar, com notável mestria, as notas de uma corneta. Afinado, o ministro acrescentou a letra à marchinha: “Quando surge o alviverde imponente, no gramado em que a luta o aguarda, sabe bem o que vem pela frente, que a dureza do prélio não tarda!”
Foi o hino do Palmeiras que fez Gilberto Carvalho se descontrair. O “corneteiro” encerrou o seu pequeno número com o toque da cavalaria, nada mais adequado para um dia em que, como dizia o noticiário em tempo real, o governo estava em crise e corria atrás de reforços. Sereno, o ministro cumprimentara pelo nome os funcionários que havia encontrado pelo caminho, desde o elevador do 4º andar do Palácio até a garagem, no subsolo. Eram quatro da tarde da quinta-feira, 4 de agosto. Seguia para uma reunião no Palácio do Itamaraty, a 500 metros dali, e sabia que, a qualquer momento, poderia ser convocado em caráter emergencial pela presidenta Dilma Rousseff. A tal dureza do prélio já se impunha, mas ele se mantinha bem-humorado.
Dilma havia decidido três horas antes demitir o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que, em perfil publicado na piauí, chamara as ministras Ideli Salvatti (Relações Institucionais) de “fraquinha” e Gleisi Hoffmann (Casa Civil) de perdida. Em reunião no gabinete de Dilma, no 3º andar do Palácio, com as duas criticadas presentes, Gilberto Carvalho gracejara: “Vou providenciar um biotônico para a Ideli e um gpspara a Gleisi, presidenta.”
Agosto confirmava-se como mês de agouro político no Brasil. Foi quando Getúlio Vargas suicidou-se em 1954, Jânio Quadros renunciou em 1961, Juscelino Kubitschek morreu em 1976, Golbery do Couto e Silva caiu em 1981. Em agosto de 2011, Dilma Rousseff também passara maus bocados. Está certo, a República não correu risco, não havia comoção pública, os quartéis, assim como Minas Gerais, estavam onde sempre estiveram. Entretanto, há no noticiário de Brasília um eterno clima de “mar de lama” a rondar o Planalto. Quando os dias que correm pertencem ao mês de agosto, basta isso para dar às crises um sabor épico e fatídico.
Jobim não era o primeiro ministro a ser demitido no início do governo de uma chefe de Estado ainda à procura do compasso certo. Antonio Palocci tinha se imolado e pediu demissão da Casa Civil em 7 de junho. Alfredo Nascimento (Transportes) saíra furtivamente em 6 de julho. Em tempo tão curto, Jobim também não seria o último demissionário – Wagner Rossi (Agricultura) sucumbiria em 17 de agosto e ainda havia Luiz Sérgio, que de garçom (“Só anoto os pedidos”) do Ministério das Relações Institucionais fora transferido para a Pesca e Aquicultura, num troca-troca com Ideli Salvatti.
Como se sabe, a senadora Gleisi Hoffmann foi escolhida pela presidenta para substituir Palocci na Casa Civil. Superministro à moda antiga, na prática as funções dele foram distribuídas para a trinca Hoffmann, Salvatti e Carvalho. No gabinete deste, estão emolduradas duas charges de Chico Caruso publicadas em O Globo, após a saída de Palocci. “Meninas, cheguei”, diz Carvalho a Dilma, Hoffmann e Salvatti. Na outra, Dilma se reúne com as duas à frente de um carro, com o Carvalho amarrado à capota, e determina: “Deixa que eu dirijo.”
Aos 60 anos, o papel que o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência exerce com mais frequência é o de veterano entre novatas. Ideli, 59, e Gleisi, 45, ganharam sala e mesa no Palácio do Planalto há menos de três meses. Gilberto Carvalho vem de oito anos como chefe de gabinete na gestão Lula, quando, em vez de caneta poderosa, tinha como trunfo o acesso livre à maçaneta da porta presidencial. Por mais de trinta anos fora chamado por Lula de Gilbertinho ou Baixinho – o ex-presidente tem 1,70 metro e o ministro, 1,60 metro. Por sua vez, durante muito tempo Carvalho se dirigiu ao amigo como Baiano. Mas, quando Baiano chegou ao poder, Gilbertinho/Baixinho trocou o vocativo por Veio, que usa indiscriminadamente. Na ausência da atual presidenta, refere-se a ela como A Tia.
Carvalho qualifica como um “puta acerto” a escolha das novas “ministras da casa”, como são conhecidas as titulares que despacham no mesmo prédio da presidenta. “Tenho uma relação muito forte com Gleisi e Ideli. Sem demérito para Palocci, agora melhorou muito o quadro aqui dentro, do ponto de vista de distribuição de funções. Gleisi é craque. Pega as coisas muito rápido, tem energia, trabalha feito uma doida. Aposto nessa mulher. Vamos ouvir falar muito nessa menina. Conheço também a Ideli desde a juventude no Paraná e sei de seu talento”, declarou, de modo afetuoso.
Hoffmann volta-se mais para a parte técnica dos projetos definidos como prioritários pela presidenta. À Salvatti, cabe ouvir lideranças e parlamentares, costurar apoios e votações no Congresso, dar andamento aos pleitos de senadores e deputados. Formalmente, Carvalho ocupa-se da relação do governo com movimentos sociais, mas seu principal papel hoje é ser o conselheiro para temas amplos, gerais e irrestritos, antes exercido por Palocci. Quando convidado por Dilma para a Secretaria-Geral da Presidência, ouviu-a dizer: “Vou precisar muito deste ombro.”
“A relação entre a gente é muito leve. Zero de disputa. Elas me olham como se eu fosse uma espécie de irmão mais velho. Sou o que estou aqui há mais tempo, pedem muito meu apoio. Estou achando uma delícia trabalhar com elas”, afirmou Carvalho.
Sem constrangimento, o ministro expôs seus medos. “Tanto elas” – Gleisi e Ideli – “assim como eu não somos, vamos chamar assim, quadros da primeira linha do PT, que eram Zé Dirceu, Palocci, Gushiken. Os veteranos. Somos um time que está tentando dar conta do recado. Há uma insegurança. Pessoalmente tenho um medo de errar desgraçado. Reconheço que sou um sujeito muito bom na conversa, na articulação, mas não sou um formulador. Às vezes tenho muito medo de errar e me dou conta da responsabilidade que assumi.”
A estratégia para seguir adiante está ligada à sua melhor qualidade: ser os ouvidos da presidenta. “Temos tentado cada vez mais criar fóruns de ministros. Chamamos para conversar gente do Parlamento, para tentar elaborar em conjunto. Se não consultarmos, vamos errar. A margem de erro está ligada à capacidade de ouvir.”
Nascido em Londrina, Gilberto Carvalho é filho de Antonio Carvalho e Geracy Ballarotti Carvalho, e tem duas irmãs, Marilda Carvalho Dias e Márcia Lopes, que foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nos últimos nove meses do governo Lula. Na infância e juventude, passou por três seminários. Entrou no primeiro aos 11 anos. O último foi o Seminário Maior em Curitiba. Estudou filosofia na Universidade Federal do Paraná e depois teologia na PUC paranaense, curso que abandonou antes da conclusão.
Tinha 24 anos quando lhe caiu nas mãos um exemplar do livro L’Ânesse de Balaam dans une Favelle Brésilienne, de Joseph Bouchaud e Frédy Kunz, contando a experiência deste último, padre e morador de uma favela em Crateús, no Ceará. Maravilhado com a narrativa, usou os seus poucos anos de Aliança Francesa para traduzir a obra, lançada no Brasil pelas Edições Loyola, como A Burrinha de Balaão numa Favela Brasileira.
O título do livro se refere a um episódio do Velho Testamento em que a burrinha do profeta Balaão por três vezes se recusa a avançar, e a cada uma delas é açoitada por seu dono. Um anjo do Senhor aparece então a Balaão para lhe dizer que ele, Balaão, está cego. Deveria confiar na sua jumenta, que estancara para salvar-lhe a vida – a estrada levaria à morte. Os teólogos interpretam a passagem como uma alegoria sobre a escolha dos caminhos a serem seguidos. É preciso acatar os sinais de Deus, por mais improváveis que sejam.
A pobreza seria um desses sinais. “A pobreza é a condição necessária para que se possa ser um irmão universal” e “Se você não vive próximo aos mais pobres, caminhará mais depressa do que eles e deixará apenas suas migalhas” eram frases que ocorriam na pregação de Frédy Kunz.
Nascido na Suíça, Kunz ainda criança emigrou com a família para a França. Durante a Segunda Guerra, combateu os alemães. Preso, foi levado para um campo de concentração na Áustria, onde passou quatro anos como cozinheiro. Libertado pelos aliados, foi para o Canadá, onde sagrou-se padre. Veio para Crateús em 1968 para aprender português.
Lá cuidou por quinze dias de uma prostituta de 22 anos que sofria de tuberculose e estava em fase terminal. Ministrou-lhe a extrema-unção. Ela morreu e foi levada ao cemitério tendo a porta da própria casa como caixão. Kunz alugou para si o barraco, passando a viver na zona do meretrício. Já doente, mudou-se para Santo André em 1988 e passou a morar num barraco na favela Lamartine. Entre 1995 e 1997 viveu com moradores de rua. Fundou a Irmandade do Servo Sofredor, na qual trabalhou até morrer, aos 80 anos, em 2000.
Padre Alfredinho, como ficou conhecido no Brasil, foi a inspiração maior de Gilberto Carvalho, que mantém uma fotografia dele em sua sala no 4º andar do Palácio do Planalto. Muito próximo ao seminário de Curitiba em que estudou havia uma favela, à qual seminaristas e padres davam assistência. Com dois colegas, Eurides Mescolotto e Gabriel Motizawa, Carvalho foi morar nessa favela, a Vila São Paulo, junto ao rio Belém, “no dia 17 de novembro de 1975”, como frisa. A experiência no início foi permitida pelos padres, mas, quando estes determinaram que retornassem ao seminário palotino, de orientação conservadora, Carvalho decidiu abandoná-lo. Mescolotto hoje é presidente da Eletrosul e namorou à época Ideli Salvatti, estudante de física da Universidade Federal do Paraná. Casaram e tiveram dois filhos.
O ministro frequenta semanalmente uma igreja católica na Asa Norte de Brasília. Às vezes, vai à missa aos sábados à noite; outras vezes, aos domingos pela manhã. “Hoje em dia as missas ficaram muito chatas”, comentou.
Carvalho trabalhou numa indústria de plástico em Curitiba e depois numa metalúrgica em São Paulo. Entrou para o movimento sindical e foi militante das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Na greve dos metalúrgicos dos anos 80, conheceu Lula. Recorda-se da primeira vez que esteve com ele, quando voltou de uma viagem à Europa e foi incumbido pelas centrais sindicais de lá a procurar os metalúrgicos do ABC para oferecer-lhes apoio. “Foi um encontro protocolar.”
Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980, foi candidato a deputado federal constituinte em 1986 e não se elegeu. O trabalho na Pastoral Operária o levou a morar em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Reaproximou-se de Lula nos anos 90, quando assumiu o Instituto Cajamar, de formação de lideranças políticas, que o ex-presidente costumava frequentar.
Carvalho foi secretário-geral da Executiva Nacional do PT e secretário de Governo e de Comunicação da Prefeitura de Santo André, na gestão de Celso Daniel, prefeito assassinado em 2002. Um irmão de Daniel diz que Carvalho lhe confidenciou haver levado dinheiro de fornecedores da prefeitura para o então presidente do PT, José Dirceu, recursos que seriam usados para financiar campanhas do partido. Carvalho nega, e o processo ainda está em andamento na Justiça. “É muita mágoa familiar fazendo jogo político e manchando a memória do irmão”, resumiu.
Na campanha de 2002, cuidava da agenda de Lula e dali desembarcou na antessala do presidente no Palácio do Planalto, como seu chefe de gabinete. Foi quando conheceu uma economista atuando no governo gaúcho que integrou a equipe de transição entre os governos FHC e Lula, chamada Dilma Rousseff, que, na última hora, virou ministra de Minas e Energia.
Desde que a demissão de Palocci instalou a crise no governo, Dilma não mais se livrou dela. Contingências políticas e rigores éticos obrigaram-na a seis mudanças em 38 pastas em apenas oito meses de governo. A de Palocci foi pessoalmente a mais dolorosa para a presidenta, a de Nascimento e Rossi, as mais necessárias, e a de Jobim, a mais desejada.
No dia anterior à demissão deste último, Dilma teve longas discussões sobre o destino do então ministro da Defesa, que declarara, na semana anterior, ter votado no tucano José Serra na eleição presidencial vencida pela petista. Durante a formação do seu ministério em dezembro, Dilma já manifestara o desejo de indicar o embaixador Celso Amorim para o Ministério da Defesa. Lula foi quem a convenceu a deixar Jobim no cargo. A gestão de Dilma começou, e o ministro gaúcho percebeu que não tinha mais o mesmo prestígio no Planalto. Foi pouco recebido pela presidenta e lançou em público vaticínios diferentes dos dela sobre a bilionária licitação de compras de aviões de combate para as Forças Armadas e o futuro de programas de reaparelhamento e modernização militar, por exemplo.
O ex-ministro Franklin Martins e o assessor especial da Defesa, José Genoino, foram os mais ardorosos apoiadores de Jobim, ambos convocados por Dilma para conversas reservadas naquela semana da declaração de voto. A presidenta decidiu mantê-lo, ouvindo Lula. “Releve. Isso já passou”, contemporizou o líder petista. Jobim chegou com antecipação para a audiência que tinha com a presidenta às 11 horas da quarta-feira, 3 de agosto, na qual tentariam dirimir o desconforto causado pela declaração de voto em Serra. Dilma atrasou-se 45 minutos, e a conversa conciliatória não chegou a durar meia hora. Mantido no cargo, Jobim confirmou sua agenda no dia seguinte: viajaria quase 3 mil quilômetros até Tabatinga, na região amazônica, para assinar um tratado com a Colômbia de ampliação da segurança na fronteira.
Pouco antes das nove da noite, o Palácio do Planalto recebeu a informação de que a colunista da Folha de S.Paulo Mônica Bergamo anteciparia no dia seguinte frases de Jobim ditas à piauí. “Se forem críticas abertas às ministras”, profetizou um assessor, “não vai dar para segurar mais.” A presidenta já deixara seu gabinete em direção à residência oficial do Alvorada, a tempo de assistir à novela Insensato Coração.
No dia seguinte, às nove e meia da manhã, Dilma se reuniu com Carvalho, Salvatti, Hoffmann e Helena Chagas, ministra da Secretaria de Comunicação Social do governo. Pediu para ler a íntegra da reportagem com as declarações de Jobim antes de tomar qualquer decisão. Carvalho fez a piada sobre o biotônico e o localizador geográfico, e Dilma riu. Assessores saíram em busca de um número da revista para embasar a decisão da presidenta.
Embora a crise já soprasse forte, a rotina da Presidência seguia adiante. Dilma despachou com o ministro Guido Mantega e foi então dar boas-vindas à cantora norte-americana Dionne Warwick, em visita ao Planalto. Recebeu-a com um abraço forte, como se fossem amigas de longa data. Warwick expôs detalhes do projeto educativo para crianças da favela do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro, no qual está envolvida.
Dali, por volta das 11 horas, Dilma dirigiu-se para uma reunião, já em andamento, de catorze lideranças sindicais com os ministros Guido Mantega, Gilberto Carvalho, Fernando Pimentel (Desenvolvimento), Garibaldi Alves Filho (Previdência Social) e respectiva corte de assessores técnicos.
Vestia terninho verde, camisa preta e sapatos de salto baixo. Entrou na sala e fez questão de cumprimentar cada um dos 24 presentes, alguns com aperto de mão, outros com beijinho no rosto.
Aproveitando o disse me disse sobre a eventual defenestração de Jobim, divertiu-se passando direto por Mantega. Dado o efeito, logo soltou: “Nem sempre que a presidenta deixa de cumprimentar um ministro é porque quer demiti-lo. Às vezes é só porque eles já despacharam juntos naquele dia, como é o caso do ministro da Fazenda.” Abusando do mineirês – “falei procês”, “coisa danada” – , a presidenta tentou amaciar os sindicalistas. “Lembro-me de reuniões que tivemos, em 2008, logo que a Vale demitiu funcionários. Vocês me falavam do absurdo de os bancos públicos emprestarem para empresas sem exigir contrapartida de empregos. Lembro que, na época, falei para o BNDES da importância de ouvir esse tipo de reivindicação da sociedade. E me falaram da dificuldade de fazer esse tipo de processo, porque não dava para controlar”, disse ela.
“Dessa vez, no plano de incentivo à indústria, repeti que o banco não podia deixar de exigir uma contrapartida social, e houve da parte deles uma extraordinária receptividade, uma prova de que vocês estavam cobertos de razão”, adulçorou.
Vendo que a coisa estava sendo bem recebida, a presidenta embalou: “Mas é um processo de construção de consciência e por isso é muito importante este tipo de reunião. Porque não se trata de uma questão aguda, mas de uma questão crônica. É como uma pneumonia: precisamos ver se é algo que permanece ou sarou. A situação internacional também é assim, na crise aguda você reage de uma forma, na crise crônica mudamos a reação.” Nem todo mundo compreendeu.
Ela estava de bom humor. Respondia às perguntas pespegando um “querido” no interlocutor. O presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, aproveitou para avisar que, numa manifestação pública recente, as centrais sindicais “falaram um pouco mal do governo”. “Se é só um pouco, tudo bem. Não pode é falar muito mal”, galhofou Dilma.
O secretário nacional de Administração e Finanças da cut, Vagner Freitas, reclamou que as centrais sindicais não eram suficientemente consultadas: “Poderíamos ter melhorado a proposta da política industrial. Não temos medo de participar nem de nos responsabilizarmos pelas políticas decididas conjuntamente.”
A presidenta tentou contornar o mal-estar. “Se houve um equívoco nosso, foi não termos falado com vocês antes. Mas que fique bem claro: também não falamos com o outro lado. Só falamos com os empresários no dia seguinte. Temos compromisso específico com as centrais sindicais. Onde tiver empresários tem de ter representantes de vocês também.”
Paulo Pereira da Silva tomou a palavra e saiu em ataque à montadora sul-coreana Hyundai. “Ela traz um carro todo desmontado para o Brasil a um custo de 9 mil dólares. Monta aqui e vende por 120 mil reais. Não dá um emprego na produção de carros. E a imprensa não fala disso. Sabe por quê? Basta abrir os jornais e ver que só dá anúncio de página inteira da Hyundai.”
O representante da CUT elegeu como alvo o sistema financeiro, dizendo que “o Brasil é o paraíso dos bancos” e defendeu instrumentos de “controle social”. “A quem interessa a desregulamentação do sistema financeiro? A quem se locupleta com ele.” Dilma manteve-se impávida e logo em seguida anunciou que precisava se retirar. Foi almoçar no próprio gabinete.
Por volta de uma da tarde, Dilma teve acesso às declarações de Jobim. Imediatamente pediu que Lula fosse localizado na Colômbia, onde fazia palestras. Comunicou-lhe a decisão de demitir o ministro da Defesa. Ao ser informado do conteúdo da reportagem, o ex-presidente foi obrigado a concordar. Ainda na Amazônia, Jobim recebeu um comunicado para que antecipasse a sua volta e se apresentasse naquela mesma noite ao Palácio do Planalto.
Perto das duas da tarde, começou a correr pelos sites a notícia da demissão. Foi quando um bolo surgiu na Casa Civil, a pasta comandada por “Gleisi, a perdida”. Era só aniversário de uma funcionária da Subchefia de Articulação e Monitoramento.
Especulava-se sobre os nomes do deputado Aldo Rebelo (PCdoB), do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e do vice-presidente Michel Temer para a pasta, já tida como em aberto. O deputado federal Arlindo Chinaglia (PT/SP) ligou para um jornalista querendo saber em que pé estava a cotação do próprio nome. Nenhum desses nomes esteve entre os cogitados pela presidenta.
Às três da tarde, Dilma discutia com seu círculo mais restrito dois nomes, mas tinha uma “dúvida sobre o perfil” adequado. O do embaixador Celso Amorim, opção preferencial em dezembro, ressurgiu naturalmente e com força. Mas Dilma se lembrara de que o ministro Aloizio Mercadante é filho de um general reformado, Oswaldo Muniz Oliva.
Gilberto Carvalho seguiu então para o Itamaraty, onde o aguardava o ministro Antonio Patriota para uma reunião fechada com quarenta representantes de organizações não governamentais, na qual seriam explicadas as, por vezes, misteriosas prioridades da política externa brasileira. Driblou os jornalistas que se acumulavam na porta de entrada da sede do Ministério das Relações Exteriores. “O que eles querem saber eu também não sei”, disse.
A saudação do presidente da União Nacional dos Estudantes, Daniel Iliescu, a Antonio Patriota – “Que carrega em seu nome o que desejamos de todos os homens públicos” – deu o tom enfadonho da próxima hora. As ONGs reclamaram que a percepção internacional de um Brasil cada vez mais poderoso e assertivo na diplomacia mundial fazia minguar a fonte de recursos estrangeiros para o financiamento de projetos por aqui.
Cauteloso, Carvalho abrira sua participação antecipando que provavelmente teria de deixar a reunião no meio – esperava ser chamado pela presidenta. Antes das quatro da tarde veio a solicitação, e o ministro da Secretaria-Geral, para sua maior sorte, foi poupado de um encontro que se estenderia até as sete e meia da noite.
A presidenta havia convocado Mercadante. Às cinco e meia da tarde, o carro oficial do ministro da Ciência e Tecnologia entrou na garagem do Planalto. Ele passou tão rápido por Wilame Renato Teixeira que o pândego sequer teve tempo de fazer o seu número da corneta.
Dilma foi cautelosa. Dirigindo-se a Mercadante, disse-lhe que ele era uma alternativa para o Ministério da Defesa, com Celso Amorim podendo ser conduzido para a Ciência e Tecnologia. Mercadante argumentou que assumira compromissos com a equipe que havia montado no Ministério da Ciência e Tecnologia – pessoas deixaram postos em universidades, fundações e institutos, e ele se sentiria desconfortável em relação ao futuro delas. Entretanto, se convocado fosse, assumiria a Defesa. A presidenta aceitou as ponderações de Mercadante. Amorim era agora o único nome.
Perto das quinze para as oito da noite, Jobim chegou ao Palácio do Planalto. A conversa com Dilma não durou três minutos. “Não dá”, disse ela. “Concordo”, completou ele, tirando do bolso sua carta de demissão. Pediu exoneração do cargo “de forma irretratável”, alegando razões pessoais. “Não posso continuar na digna função de ministro de Estado da Defesa”, escreveu Jobim. “Foi uma honra ter servido à senhora e a seu governo. Seja feliz.” Às oito horas, Helena Chagas anunciou Celso Amorim como novo ministro da Defesa, nome que nenhum noticiário em tempo real citara. Meia hora depois, o Jornal Nacional noticiava a troca, quando Dilma já se dirigia para o Palácio da Alvorada. Gilberto Carvalho saiu em meio ao bloco de notícias sobre a crise. A mulher e as filhas o esperavam para jantar. Oito meses depois do início do próprio governo, Dilma emplacara seu preferido no posto da Defesa.
A saída de Antonio Palocci da Casa Civil da Presidência havia inaugurado a febre demissionária na gestão Dilma. Cada defenestração teve a sua mecânica própria.
Palocci acumulara tanto poder quanto inimigos. Tinha tucanos como interlocutores, mas encontrava resistência entre petistas. Gilberto Carvalho foi um dos defensores de sua manutenção até o final de semana anterior ao dia da queda. A divulgação da compra de um apartamento por Palocci nos Jardins, em São Paulo, fez com que o ministro da Secretaria-Geral ouvisse reclamação da própria família: “Como você, que nem casa própria tem, pode continuar a defender um ministro que comprou um apartamento de 6,6 milhões de reais?”
Da revelação dos negócios de sua empresa de consultoria até a demissão, Palocci permaneceu 23 dias como alvo da oposição, sendo a personificação da crise dentro do Palácio do Planalto. Na semana anterior à sua queda, Palocci foi cobrado por Dilma a dar explicações públicas sobre seu crescimento patrimonial – ganhou 20 milhões de reais no último semestre do ano passado. Mantendo em sigilo os serviços que prestou e quem pagou por eles, suas declarações pareceram vazias e inconvincentes. À presidenta, ele havia dito que tinha apenas uma “empresinha de consultoria”.
No domingo anterior à demissão de Palocci, Carvalho disse ter se convencido de que a situação era insustentável, apesar de o ministro ainda contar com o apoio do ex-presidente Lula. A pressão pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito paralisaria o governo. Conversando com a mulher, pensou que a senadora Gleisi Hoffmann tinha um perfil mais técnico do que político e sua escolha poderia amainar a crise. Guardou a reflexão para si. Era só um pensamento de domingo.
Na segunda pela manhã, Dilma mencionou que, caso necessitasse substituir Palocci, Gleisi poderia ser uma boa opção. “Tomei um susto quando ela me disse isso pela coincidência da lembrança”, contou Carvalho. Na manhã da terça-feira, 7 de junho, Dilma chamou o ainda ministro a seu gabinete e disse que a situação estava fora do controle. Palocci ofereceu sua demissão. “A continuidade do embate político poderia prejudicar suas atribuições no governo”, escreveu na carta entregue por volta das 13 horas.
Minutos depois, a senadora Gleisi Hoffmann estava em rede nacional, mas era só para dar entrevista a um telejornal, comentando seu projeto de lei para facilitar a aposentadoria de donas de casa de baixa renda. “Lavar, passar, cozinhar não é fácil. Mulher não tem férias nem descanso semanal”, dizia ela, duas horas antes de ser convidada a ser ministra da Casa Civil. Na conversa com Gleisi, a presidenta cunhou uma frase-proposta que seria repetida exaustivamente: “A de ser a Dilma da Dilma.”
A situação de Alfredo Nascimento no Ministério dos Transportes resolveu-se de modo menos traumático. Com o início da demissão de mais de duas dezenas de funcionários suspeitos de atos não compatíveis com o serviço público, coube a Carvalho ligar para Nascimento e informá-lo de que a presidenta não recuaria do que ficou conhecido como “faxina” do departamento que cuidava das obras de infraestrutura nas estradas brasileiras. Dias depois, Nascimento pediu demissão, mas não o fez pessoalmente. Enviou a sua carta de desligamento para o Palácio da Alvorada por um mensageiro – desses de empresas de entrega rápida.
O capítulo Wagner Rossi começou numa sexta-feira à noite – sexta, claro, de agosto. O telefone de Gilberto Carvalho tocou. Ele dirigia seu carro na estrada que liga Brasília a Cidade Ocidental. Voltava do sítio que mantém a apenas 46 quilômetros do Distrito Federal. Atendeu e avisou que não poderia conversar, pois dirigia. Do outro lado da linha, um funcionário do Planalto resumiu numa frase o conteúdo da reportagem a ser divulgada naquele fim de semana pela revista Veja, com relatos de ação de lobista dentro do Ministério da Agricultura, comandado por Wagner Rossi: “Parece que cita distribuição de pacotes de dinheiro.” Encerrando o telefonema, o ministro disse: “Vou falar com a presidenta.”
Dirigiria ainda 30 quilômetros antes de ligar para o Alvorada e antecipar as más notícias numa conversa rápida. Durante o dia, quando se especulava sobre acusações contra Rossi, Carvalho telefonara para ele e mandara um recado direto: “Se não há nada contra você, deixe isso bem claro publicamente.”
O peemedebista Rossi suportou a primeira semana de crise, mas sucumbiu na segunda. Indicado pelo vice-presidente Michel Temer, divulgou carta em que dizia ter desistido de sua “luta estoica, mas inglória contra forças muito maiores do que eu possa ter” por pressão da família.
As pesquisas detectaram como bem recebida a chamada “faxina” de Dilma, mas a oscilação negativa dos índices de popularidade dela acendeu o sinal de alerta no Palácio do Planalto. “As medidas que tomamos não são pensadas para levantar o moral ou a popularidade da presidenta. Não é por aí. A popularidade aumenta se crescer o projeto do governo, a ação do governo. A ética é um componente importante, mas não é suficiente para sustentar ninguém”, analisou Gilberto Carvalho.
“Temos de virar a página. Nossa pauta deve ser o combate à crise internacional, o combate à miséria, as obras do Programa de Aceleração do Crescimento. Não queremos nada espetaculoso no combate à corrupção, salvo no que for necessário.”
Qual é a linha então? “Aconteceu um evento desse tipo no ministério – acusação de desvio ou corrupção –, o ministro é chamado: ‘Você tem nossa confiança, vá lá e extirpa.’ Se ele não tiver nenhum problema, fará o combate à corrupção interna, demitirá quem tem de demitir e continuará. Esse é o nosso desejo. Dizer que no governo nunca haverá corrupção é impossível. Sempre há o risco. A corrupção só derruba o ministro se ele tiver algum grau de envolvimento, ou se não se sentir em condição de dar o combate interno.”
Outro lado da crise é o anunciado esfacelamento da base política da presidenta Dilma. Parlamentares enumeram exemplos de isolamento de Dilma e de relatos de saudades da era Lula. “A preocupação maior nesse instante é recompor nossa relação com a base. Porque a base, por várias circunstâncias e interpretações, acabou se sentindo… não vou dizer ameaçada, mas se colocou em estado de prevenção, de insegurança ao que estava acontecendo. O receio do efeito dominó, que se alastre entre eles, é muito grande”, disse Carvalho.
Para o ministro, a cultura política e a tradição legislativa brasileira foram montadas para funcionar de uma maneira bastante específica: “O Executivo faz concessões ao Legislativo para ter uma base e, em troca, fecha os olhos para um montão de coisas que o Legislativo faz para se manter. Financiamento de campanha é assim. É real que a Dilma tem dificuldade de conviver com isso. Real. Ela se insurge contra isso e gostaria muito de poder mudar completamente esse estado de coisas.”
A presidenta sabe que, toda vez que um ministro cai, suas escolhas para o ministério se tornam mais questionáveis. “É preciso ética com projeto político. Ética pura e simples, moralista, não é marca desejada de um governo. Essa história de atingir um partido da base aliada no fim atinge a ela. Quem escolheu os ministros? Ela tem consciência disso. Não está optando por esse caminho. O tempo todo o nosso esforço é ter uma pauta de trabalho. Essa história de combate à corrupção tem de ser marginal, o eixo é outro.”
Gilberto Carvalho chegou a sua casa e apenas girou a maçaneta para entrar. A porta do amplo apartamento de quatro quartos estava destrancada, como de hábito. Seu prédio tem entre os residentes muitos servidores da Presidência – vários deles dos órgãos de informação. O ministro paga uma taxa de 700 reais para ocupar o imóvel, além das despesas do condomínio de 600 reais.
A decoração é simples. Há quadros com motivos religiosos e nordestinos. A peça tecnológica mais impressionante é uma vitrola Gradiente, na qual repousa um disco de canções infantis de Edgard Poças.
Na sala, a mesa de oito lugares indica o tamanho da família. O ministro tem três filhos – Samuel, Gabriel e Myriam – do primeiro casamento com a professora universitária e ativista Maria do Carmo, e duas filhas – Bruna e Brenda – do segundo casamento com Floripis dos Santos, produtora cultural mais conhecida como Flor. Os três primeiros já são adultos e não moram com o pai: um, que fez ciências sociais, está nos Estados Unidos, outro estuda geografia em São Paulo, e a terceira é chefe de cozinha de um grande hotel em Brasília e está prestes a abrir uma casa para vender massas.
Bruna, 8 anos, e Brenda, 6, dominam os dias livres de Carvalho e de Flor, como prova o disco na vitrola. Nascidas no interior de Santa Catarina, há três anos estavam em um orfanato, depois que os pais naturais se envolveram com drogas e prostituição.
Aos 54 anos, seis anos mais jovem que o marido, Flor ajudava uma amiga num processo de adoção, quando decidiu que também queria ser mãe. Ela e Carvalho candidataram-se na Vara de Infância e Juventude a adotar uma criança de até 3 anos, como a maioria das pessoas faz, em geral com grande espera. Um e-mail com fotos de Bruna e Brenda, irmãs com o dobro da idade planejada, comoveu o casal, que decidiu passar um final de semana em Santa Catarina para conhecê-las. Logo à chegada, a mais velha perguntou: “Vocês é que serão nossos pais?”, enquanto a caçula afastava as demais crianças de perto. Tocado, Carvalho pediu ao juiz autorização para que as levasse a Blumenau no final de semana seguinte. Sem um processo de adoção formalizado, não havia base legal para liberá-las. Flor e Carvalho decidiram, naquela hora, que Bruna e Brenda seriam suas filhas.
A burocracia no processo de adoção das duas fez com que Gilberto Carvalho estimulasse ações no governo para acelerar e simplificar esse tipo de ato. Em 2009, Lula sancionou uma lei com a criação de cadastros nacionais e estaduais de crianças para adoção, unificando regras e admitindo que casais em união estável possam adotar crianças.
O familiar que reclamou da defesa que Gilberto Carvalho (um sem-apartamento) fez de Palocci (um com-belíssimo-apartamento) sabe que ele vive bem com o salário de 27 mil reais de ministro de Estado. Para o futuro, Carvalho diz que pretende se dedicar de novo à formação de quadros para o PT, não quer se candidatar a nada, planeja fixar residência em Brasília e se aposentar da vida de servidor público ao final do atual mandato de Dilma. Já começou a tocar seu projeto pessoal mais precioso: o sítio Vó Helena, sua “propriedade agroecológica sustentável”.
O ministro diz ter vendido há seis anos um apartamento que possuía em São Paulo por 96 mil reais. Com esse dinheiro e prestações de 670 reais, “a perder de vista”, comprou 3 hectares (30 mil metros quadrados) de terra em Cidade Ocidental (GO). Foi o empresário Jorge Ferreira – petista dono de vários bares e restaurantes em Brasília – que o levou até o pequeno município goiano, onde havia “lotes baratos de terra”.
Carvalho construiu uma casa modesta, com dois quartos e móveis rústicos. O patrimônio que considera mais valioso é uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e um barril de carvalho com cachaça mineira.
No terreno, planta banana, café e flor-de-mel. Fertilizante, só natural. O cavalo foi comprado por 600 reais – “com direito à carroça”, sublinha ele. Tem galinhas que produzem doze dúzias de ovos por dia e dezenas de porcos, além de um exemplar de javaporco, um bichão triste confinado numa pocilga escura e tão pequena que mal tem espaço para se virar. Temperos e ervas são plantados em forma de mandala para melhor “circulação da energia”. A água, que viaja por um encanamento de 1,5 quilômetro desde um açude, aproveitando a gravidade, acumula-se em um lago artificial com pintados e tilápias.
É um local para recolhimento e aprendizagem, disse Carvalho. “O Lula, que nunca veio aqui, reclamava que eu me enfiava no mato, onde o celular pega mal, só para ele não me chamar para trabalhar no final de semana”, contou rindo.
O ministro rejeita o rótulo de ser “o homem de Lula” no Palácio do Planalto e ri da possibilidade de a presidenta e o ex-presidente romperem. “A chance de divisão entre Lula e Dilma é zero”, afirmou. “Ele empresta a ela uma segurança e um apoio impressionantes. Ao mesmo tempo, ele manifesta um enorme cuidado em não ser a sombra dela. O que de fato é um risco.”
O humorista Gustavo Mendes obteve mais de 2 milhões de acessos na internet a vídeos em que imita Dilma. Sua versão da presidenta – que das gravações caseiras iniciais se transformou em shows de teatro e em programas de humor na tevê – é de uma Dilma desbocada, repreendendo ministros agressivamente. No vídeo mais famoso, em meio a quase duas dezenas de palavrões, Dilma dá uma bronca em Mantega, quando vê na internet que a inflação está em alta. “Guido, engole esse choro. Você não tem que chorar. Tem que resolver!”
Gilberto Carvalho divertiu-se com a imitação e analisou a razão de o temperamento da presidenta estar em constante debate. “Parte disso é uma história que foi desenvolvida ao longo dos anos e que tem fundamento. Aquele vídeo tem um quê de verdade. É o padrão de exigência. Claro que não tem o engole o choro… Mostramos para ela… Ela riu”, disse.
“A Dilma teve uma evolução nesse sentido. À época da Casa Civil, ela era mais dura. O tempo de governo foi dando a ela uma maleabilidade na relação muito maior. Houve cenas, já reproduzidas por muita gente, de pancadas. É verdade isso. Não é um mito. Mas no passado. Ela foi amadurecendo. É nítido, todo mundo reconhece. A cadeira presidencial tem um peso. O estilo dela como presidenta mudou muito em relação à ministra. Tem um pouco de maldade nesse negócio.”
Carvalho apontou as diferenças entre Dilma e Lula. “Um aspecto é a intransigência dela diante de duas coisas: a mediocridade e o desvio, o desmando. A reação dela é muito forte, visceral, eu diria. Lula é mais macunaímico. Não é que ele não combatia. Acompanhei aqui. Ele ficava abatido para caramba e dizia que o único jeito de não ser investigado era não errar. Ele ia acompanhando, mas no fim demitia: Zé, Palocci, Gushiken, Silas Rondeau. Quando ele reconduziu Antonio Fernando [ao cargo de procurador-geral da República, responsável pelo inquérito do mensalão]… Eu sei da pressão que sofreu. Ele tem um jeitão mais paternal. A Dilma fala a coisa mais na lata.”
Não havia título mais chato nem mais adequado para uma reunião convocada por petistas para o final de julho: “Participação social e governo: Opção metodológica do Governo Dilma.” Cerca de 200 servidores do Palácio do Planalto e de vários ministérios se dirigiram ao auditório do Anexo I para ouvir o ministro Gilberto Carvalho discorrer sobre o tema. Era o 28º Fórum do Planalto, um seminário em que funcionários podem questionar ministros e convidados sobre os temas em discussão, resquício assembleísta dos quadros do PT.
O ministro começou dizendo que o “governo tem de ter a inteligência de ouvir”. A poucos metros dali, na Praça dos Três Poderes, eletricitários tocavam cornetas num volume que chegava ao gabinete da Presidência, pediam reajuste e apelavam em uma faixa: “Dilma, amoleça seu coração.”
Carvalho continuava: “Desde 2003, nenhum movimento veio aqui se manifestar sem que fosse chamado a entrar e conversar, sem nenhuma repressão. Eles nunca vêm aqui para fazer festa ou elogio, vêm para brigar, para forçar conquistas de novos direitos, propor novas políticas.” (Os eletricitários seriam recebidos dali a pouco.)
Explicou que a energia de Lula era uma consequência de suas viagens pelo país. “Aquilo que era tido e havido no início do governo como turismo irresponsável, espécie de governante inapto à gestão, alguém que renunciava à tarefa de governar delegando-a a Zé Dirceu, Palocci e Dilma, pois só queria saber de passear, na verdade era o segredo para medir o pulso. De abrir os vasos capilares andando o país, captar essa onda de energia político-espiritual.”
Reconheceu abordagens distintas de Lula e Dilma na relação com os movimentos sociais. “A presidenta vem de outra formação, outro histórico. Justamente por isso nos chamou, na transição: ‘Gilberto, preciso de você para que seja uma espécie de Grilo Falante. Para me trazer as verdades do povo, trazer as demandas dos movimentos sociais. Quero os movimentos dialogando no Planalto.’ E, quando você vai abrindo a porta, não há limite, não há meia democracia”, discorreu sem lembrar que, na história original italiana, o Grilo é esmagado por Pinóquio, uma vantagem e tanto de se ter uma consciência externa a si mesmo.
O ministro narrou o que chamou de o “dia mais simbólico” dos oito anos de mandato de Lula. No começo de uma noite de meados de 2007, foi informado de que haviam chegado ao Palácio do Planalto 130 pessoas do movimento dos portadores de hanseníase. Sem nenhuma audiência pedida.
Reivindicavam indenização federal porque, até 1976, os acometidos pela doença eram confinados pelo Estado em colônias, os antigos leprosários. “Eles foram contando suas histórias, como a da moça que estava grávida e a polícia sanitária a tirou de casa e a levou para o leprosário. O marido se suicidou, e a filha, quando nasceu, foi retirada dela imediatamente e colocada num dispensário, orfanato contíguo ao sanatório. As mães só podiam ver os filhos pelos vidros, sem ter contato. A filha desapareceu, e ela só a reencontrou 35 anos depois. Quando comecei a escutar aquelas histórias, eu disse: ‘Dou conta disso não.’ Subi [para o gabinete presidencial].”
Carvalho contou que interrompeu Lula. O presidente tinha um dia de agenda cheia, com políticos e empresários. “Eu disse: ‘Ó, Veio, o pessoal está lá.’ Ele respondeu: ‘Gilbertinho, vocês me montam uma agenda maluca dessas e como vou descer?’ Respondi: ‘Veio, tem que falar com esse povo porque é uma coisa muito especial.’”
O ministro acomodou os 130 manifestantes em uma sala do 3º andar, ao lado da do presidente. “Puxei-o pelo braço e o levei. Quando entramos na sala – os igrejeiros sabem a que vou me referir –, eles estavam cantando aquela música que diz: ‘Fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece rosas…’”
“Quando viu aquela gente, Lula fez um gesto que vai me marcar para o resto da vida: saiu abraçando e beijando uma por uma aquelas pessoas, o que não é fácil. Falou para mim: ‘Acaba com a agenda do resto do dia. Quero ouvi-los.’ Uma hora e pouco escutando. Chamou-me depois e disse: ‘Gilbertinho, temos vinte dias para fazer uma lei para dar a essa gente o direito à indenização. Trata de mandar fazer essa lei rapidamente.’”
O ministro ficou com os olhos marejados. “Estou ficando velho, estou chorão”, reconheceu, da mesa em que estava instalado. “Não foram vinte dias, mas em quarenta dias eles estavam de volta ao Salão Leste. Lula assinou o decreto com a indenização.” Foram beneficiados 3 mil “exilados sanitários”, sobreviventes dos 101 hospitais-colônia abertos desde o começo do século XIX. Passaram a ganhar pensão mensal vitalícia de 750 reais, a um custo de 27 milhões de reais por ano para o Tesouro.
“Esse fato, que chamo de sacramental pela sua simbologia, mostra como é decisivo que o governo ouça. Tenha paciência, abertura para acolher e fazer justiça. Desculpem-me ter falado demais para meu tamanho”, encerrou Carvalho.
Os dias sacramentais são exceção. No final de agosto, as tribulações políticas davam sinais de que se iriam com o mês, dissolvendo-se no tempo. Gilberto Carvalho passaria os derradeiros dias de agosto indo a reuniões com representantes da Funai, a reuniões para discutir a dívida agrária, a reuniões com a Federação Nacional dos Portuários, a reuniões com sindicalistas estrangeiros, a reuniões com líderes sem-terra. Iria também às solenidades de posse dos novos ministros e participaria de fóruns de discussão sobre a cidadania.
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