O mestre de capoeira Célio Augusto Braga, na Pequena África: antes mesmo de receber este nome, a região já era conhecida como local de preservação e resistência da cultura afro-brasileira CRÉDITO: TÉRCIO TEIXEIRA_2022
Os que ficaram
A história da escravidão resiste aos apagamentos sucessivos na Pequena África carioca
Emily Almeida | Edição 192, Setembro 2022
O Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos promove aos sábados pela manhã uma visita guiada por sítios históricos e arqueológicos de uma região próxima do Centro da cidade do Rio de Janeiro. O ponto de encontro para o passeio é aos pés da estátua de bronze da bailarina negra Mercedes Baptista (1921-2014), no Largo de São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde. Recheado de bares e restaurantes, o largo virou um point da boemia carioca nos últimos anos. Baptista é considerada a primeira bailarina clássica negra e fez parte do corpo de baile do Theatro Municipal, tendo incorporado em suas performances elementos da dança afro-brasileira.
No último sábado de julho, o clima não era o que se esperava do Rio de Janeiro num fim de semana, nem o mais apropriado para uma visita guiada. Envelopado pelas nuvens, o Sol apareceu por poucos minutos, antes de se recolher pelo restante do passeio, previsto para durar duas horas. Num megafone, uma mulher branca anunciou por volta das 9 horas que a visita começaria em poucos minutos. Também avisou que seu trabalho era voluntário e que ela precisava tirar fotografias do grupo ao longo do percurso para comprovar que todo o circuito havia sido feito. Enquanto aguardavam o início da jornada, os excursionistas – brancos e negros, adultos e crianças, brasileiros e estrangeiros – aproveitaram para tirar selfies junto à estátua de Mercedes Baptista.
O grupo saiu na direção da Igreja de São Francisco da Prainha, uma construção que data de 1696, a poucos metros dali. Depois, seguindo por detrás da igreja, alcançou as vielas de pedra do Morro da Conceição, que começou a ser ocupado no século XIX, sobretudo por portugueses e espanhóis. Na Rua São Francisco da Prainha, a guia chamou a atenção para um detalhe no topo dos sobrados antigos: um brasão da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT), entidade religiosa da Igreja Católica, fundada há mais de quatro séculos. O brasão, que indica serem as casas de propriedade da VOT, traz duas mãos abertas com uma cruz no meio.
Próximo de uma área chamada Pedra do Sal, uma placa menciona que se reconheceu haver ali um quilombo – embora ele não disponha de uma área definida legalmente. Depois de ouvir histórias sobre o surgimento do samba na região e a inspiração francesa do Jardim Suspenso do Valongo, todos seguiram para o Cais do Valongo, no bairro vizinho da Gamboa, onde se depararam com uma surpresa: o local estava sendo palco de uma lavagem simbólica que acontece todos os anos, desde 2012.
Vestidos de branco e ao som de atabaques, representantes das religiões de matriz africana dançavam e entoavam cânticos aos orixás, em memória dos seus antepassados. Rosas brancas foram colocadas sobre os degraus do cais de pedra, assim como uma porção de água de cheiro (preparada com folhas maceradas) para a lavagem simbólica. Alguns dos participantes do circuito se aproximaram: uma mulher pegou uma das rosas e registrou com o celular o momento em que a lançou sobre as pedras do cais. Depois de observar por alguns minutos a celebração, os excursionistas seguiram em direção ao novo destino, o Cemitério dos Pretos Novos, também na Gamboa.
Por volta das 11 horas, terminou o passeio pelo passado dos escravizados no Rio de Janeiro, nessa região que hoje é conhecida nos guias turísticos como Pequena África.
Esse circuito histórico se projeta sobre partes de um conjunto de quatro bairros (Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Cidade Nova), três morros nesses bairros (da Providência, do Livramento e da Conceição), além de uma área do Centro da Cidade, todos próximos da zona portuária do Rio e diante da Baía de Guanabara. A demarcação exata da Pequena África é impossível e se tornou ainda mais nebulosa depois da reforma urbana do Rio promovida na primeira metade do século XX, como explica o historiador e escritor Luiz Antônio Simas: “É uma delimitação bem complicada, porque a Pequena África, a rigor, teria uma centralidade ligada à região da Praça Onze [entre Santo Cristo e Cidade Nova], que foi arrasada para a abertura da Avenida Presidente Vargas, na década de 1940.” Considerada a primeira favela do estado do Rio, a Providência começou a ser ocupada nas décadas de 1890 e 1900, quando soldados que voltaram da Guerra de Canudos se estabeleceram ali, após o governo federal descumprir a promessa de agraciá-los com casa própria.
Nos últimos tempos, toda essa área passou a chamar a atenção dos turistas, desde que a região do porto começou a ser submetida a um plano de reurbanização às vésperas da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, realizadas no Rio. No local, já foram erguidos atrativos equipamentos culturais, como o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio (MAR) e o AquaRio, o aquário municipal. A Avenida Rodrigues Alves, que margeia o cais, transformou-se em parte numa via exclusiva para pedestres e para a passagem de um moderno e fotogênico VLT (veículo leve sobre trilhos). Alguns dos armazéns do porto agora servem como local de festas e eventos. A Praça Mauá, onde fica o MAR, é frequentemente transformada em palco de shows e feiras livres. O entusiasmo do poder público foi tão grande que deu a esse projeto milionário de reurbanização o nome de Porto Maravilha.
A região do Porto Maravilha, entretanto, foi no passado o palco da maior tragédia da história brasileira, a escravidão. Governos e populações tentaram apagar esse passado vergonhoso, soterrando e destruindo ao longo dos séculos todos os seus sinais, mas alguns vestígios sobreviveram – e nas últimas décadas foram reaparecendo, um após o outro.
Em 2010, durante as obras do Porto Maravilha, escavações na Avenida Barão de Tefé, entre a Saúde e a Gamboa, revelaram por acaso as pedras do infame Cais do Valongo, o maior ponto de desembarque de escravizados da África em todas as Américas. Estima-se que ali cerca de 1 milhão de africanos pisaram pela primeira vez no Brasil.
O cais foi construído na segunda metade do século XVIII, a mando de dom Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d’Eça e Melo Silva Mascarenhas, o segundo marquês de Lavradio e 11º vice-rei do Brasil. Ele decidiu mudar o desembarque dos negros da atual Praça XV, no Centro, para um lugar com menos circulação de gente e pouco habitado na época, de modo que o comércio cruel também ficaria longe da vista das pessoas, entre elas os estrangeiros que desembarcavam no Rio.
Em 1843, o Cais do Valongo foi aterrado a fim de se construir um ponto de desembarque para a princesa italiana Teresa Cristina, vinda de Nápoles para consumar seu casamento com o imperador Pedro II, naquele mesmo ano. Até o nome mudou: por um período, o local passou a se chamar Cais da Imperatriz.
Outros aterramentos sucederam-se em decorrência de obras na região portuária – e por muito tempo o Cais do Valongo sumiu da história brasileira. “Foi um apagamento evidentemente intencional relacionado à política de branqueamento da memória”, diz a historiadora Mônica Lima e Souza, professora de história da África na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Hoje, o cais é o principal ponto de referência histórica da Pequena África.
Também por acaso descobriu-se em 1996, durante a reforma de uma casa, um cemitério de escravizados. Ficava em local próximo ao Cais do Valongo, na Rua Pedro Ernesto, e era destinado aos negros que haviam morrido logo após o desembarque no Rio, nos navios recém-chegados, ou mesmo antes de serem comercializados, nos mercados de escravizados da região. Daí o nome que lhe deram: Cemitério dos Pretos Novos.
O cemitério foi utilizado até 1830, quando o fecharam, depois de os vizinhos reclamarem das emanações que vinham do local. De acordo com relatos da época, os negros eram enterrados em covas coletivas, improvisadas, e muitas vezes partes dos corpos extravasavam da terra, apodrecendo ao ar livre. Não havia qualquer deferência aos mortos no sepultamento, nenhum registro de seus nomes, nem mesmo uma simples placa funerária. Apenas uma cruz capenga indicava o local onde eram depositados os corpos das vítimas desse holocausto – entre 20 e 30 mil escravizados foram enterrados ali, o que faz do local a maior necrópole negra das Américas.
Alguns dos restos mortais estão expostos no museu do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, localizado na mesma casa onde foram encontradas as ossadas. Na sala de exposição, há na parede uma lista em que se tentou fixar a identidade de alguns mortos: “Filha de uma escrava Thereza”, “Carlos Pardo”, “Januário (crioulo)”, “Adão escravo de um padre”, “Albina de nação Conga”. Essas alcunhas foram o máximo que se conseguiu.
O instituto é presidido por Merced Guimarães dos Anjos, de 66 anos, proprietária da casa onde a necrópole foi descoberta. Ela conta que, antes de saber do que se tratava, cogitou que os ossos fossem de animais e, depois, de antigos moradores. “Mas observei que era muita gente, inclusive crianças.” Um vizinho historiador confirmou ser ali o cemitério dos novos escravizados. A prefeitura foi avisada da descoberta, mas não tomou nenhuma medida. Em 2005, ela resolveu então criar o instituto, com o apoio do seu marido, Petrúcio Guimarães dos Anjos, vice-presidente da entidade. Ela diz que enfrenta até hoje dificuldades para obter, junto ao poder público, meios para custear as despesas do local. “Hoje sou obrigada a cobrar entrada num lugar em que não se deveria cobrar nada. O Brasil não tem a cultura de preservação da memória.” É provável que outros sítios arqueológicos existam na mesma rua do instituto, mas, diz Merced, “os moradores não avisam mais as autoridades, porque sabem que eles mesmos vão ter que gerenciar”.
Como o cais e o cemitério, tudo que lembrava o passado escravocrata passou por uma progressiva supressão, concreta e simbólica. A Rua do Valongo, hoje chamada Rua Camerino, por exemplo, era um grande mercado humano. Os pontos de venda de escravizados sucediam-se na rua, como mostram estes anúncios publicados no jornal Gazeta do Rio de Janeiro. O primeiro é de 1818:
Gaudencio José Maria vende uma preta de nação Benguela, de 18 a 19 anos, sem vício algum, que engoma muito bem liso, própria para mucamba. Quem a quiser comprar, dirija-se à Rua do Valongo, ao pé de uma loja de fazendas secas.
Este outro é de 1812:
No Armazém do Valongo nº 23, do lado esquerdo, se faz leilão de quarenta e oito escravos, dezoito cadeiras, uma cama, uma cômoda, duas mesas e várias miudezas dos bens apreendidos de José Ferreira dos Santos, no dia 15 do corrente às nove horas da manhã.
O último anúncio deixa bem claro, aos que ainda têm dúvidas, o que os escravizados representavam para os brancos de duzentos anos atrás: eram apenas coisas, não seres humanos. Banidos da humanidade, os africanos podiam ser comercializados como uma mesa ou uma cadeira.
No comércio hediondo, o nome e a história dos negros não tinham função alguma. Sobrenomes como Benguela ou Angola, comumente atribuídos aos escravizados, diziam respeito ao porto na África onde haviam sido embarcados. A eles, acrescentava-se algum nome cristão, como Maria ou José. Ou seja, também a origem pessoal e os laços ancestrais eram soterrados no Brasil, sendo substituídos por uma denominação genérica. E esse é um dos motivos por que as origens familiares da população negra brasileira é algo tão difícil de reconstituir, e ainda mais de seus antepassados africanos. Era como se os escravizados deixassem na África o que lhes restava de humanidade e, depois de amontoados como animais nos porões dos navios negreiros, desembarcassem como coisa no Brasil.
As marcas do passado escravocrata foram sendo suprimidas na Pequena África. Porém, não havia como escondê-las no rosto, na pele dos negros que foram progressivamente ocupando a área, vindos de diferentes bairros do Rio, do interior do estado e mesmo de outras regiões do país, sobretudo depois da abolição da escravatura, em 1888.
Entre o fim do século XIX e início do XX, os ex-escravizados já haviam se estabelecido, em meio aos brancos, em várias partes da Pequena África. Estavam no Santo Cristo, na Gamboa, na Saúde, na Cidade Nova e nos morros da Providência e do Livramento. Estavam também na área da Pedra do Sal – um enclave na Saúde –, assim chamada porque existe ali um gigantesco gnaisse (um tipo de rocha comum no Rio) e, no passado, havia um desembarque de sal nas proximidades.
O nome Pequena África, porém, ainda não existia. Especula-se que tenha sido cunhado pelo compositor e pintor Heitor dos Prazeres (1898-1966), como conta o jornalista Roberto Moura no livro Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, de 1983, obra de referência sobre o tema (que será relançada em novembro pela editora Todavia). De acordo com o historiador Luiz Antônio Simas, a expressão exata de Heitor dos Prazeres era “África em miniatura”. Não foi o nome que vigorou. A partir dos anos 1980, o nome “Pequena África” se difundiu e acabou sendo adotado por todos. “Lima Barreto gostava também de usar uma expressão para a região que eu acho muito interessante: ‘Aringa africana’. Aringa seria um campo fortificado, o campo fortificado das africanidades”, diz Simas.
Mas antes mesmo do nome a região já era conhecida como um espaço de preservação e resistência da cultura afro-brasileira, reunindo desde práticas religiosas a culturais, como batuques e a capoeira. “No descanso do final do dia de trabalho é que aconteciam as trocas de informações, as conversas. Emendava-se uma cantiga, uma reza, um batuque”, descreve a historiadora Mônica Lima e Souza. As conversas se davam nas casas das tias baianas da Pedra do Sal e dos arredores, como a residência de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, na Cidade Nova. As tias baianas faziam parte da forte migração de negros do Recôncavo Baiano para o Rio, entre o final do século XIX e início do XX, e tiveram grande influência na religiosidade e na cultura cariocas.
Os encontros, aos quais compareciam compositores como Donga, Pixinguinha (que nasceram em outros bairros do Rio: Vila Isabel e Catumbi, respectivamente) e João da Baiana (da Cidade Nova, na Pequena África), iriam lançar as bases de um samba diferente do que surgia na mesma época no Morro do Estácio – o mais característico do Rio e presente nas escolas de samba. O que nasceu nos entornos da Pedra do Sal é influenciado pelo samba de roda baiano e pelo maxixe. “Esse samba, certamente, é resultado do encontro entre os baianos que vão para aquela região e os africanos das mais diversas procedências e seus descendentes que chegaram ao Rio”, afirma Simas.
Como designação de um local com grande concentração de negros, a expressão “Pequena África” não é exclusiva do Rio. Na China, a região de Xiaobei, no município de Guangzhou (Cantão), ganhou o mesmo codinome. Ali vive a maior comunidade africana do país, com cerca de 20 mil pessoas. Nos Estados Unidos, no início do século XX, o distrito de Greenwood, na cidade de Tulsa, em Oklahoma, também era chamado de Pequena África. Por causa da grande prosperidade alcançada pelo distrito, era para lá que muitos negros migravam. Em 31 de maio de 1921, um grupo de pessoas brancas incendiou Greenwood, deixando o local completamente destruído. Calcula-se que trezentas pessoas morreram no ataque.
Na história da Pequena África carioca, nada faz sentido sem as pessoas que hoje vivem lá. Somente por meio delas se pode falar apropriadamente da herança africana, de sua cultura e de suas práticas. São essas pessoas que as mantêm vivas.
A capoeira, muito perseguida pelo poder público desde o século XIX, encontrou abrigo na Pequena África e é uma atividade que faz parte da história de Célio Augusto Braga, de 63 anos, morador da Ladeira Morro da Saúde, no bairro da Gamboa.
Para ele, essa história começou em 1984, quando tinha 25 anos. “Eu era cascudo. Andava por aí com meu cabelo black power, bebendo todas as cachaças que via pela frente”, conta. Braga começou a treinar com os capoeiristas que praticavam na Praça da Harmonia, na Gamboa, não muito longe do Cemitério dos Pretos Novos. Na capoeira, seu nome é Mestre Graúna do Porto, o mesmo com o qual agora passa adiante seu ofício, como professor: já formou mais de trinta alunos. “Falam que eles são brabos, mas não são. Eu só ensino eles a segurarem a onda.”
A Praça da Harmonia tem um papel importante na memória do Rio de Janeiro e do Brasil. Apesar do nome, foi lá que, durante a Revolta da Vacina, em 1904, os conflagrados contra o governo do presidente Rodrigues Alves e do prefeito do Rio, Francisco Pereira Passos, instalaram as suas maiores barricadas. A rebelião popular tinha dois alvos principais: a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola (na época, a vacinação era uma novidade e pouquíssimas informações eram transmitidas à população) e as reformas urbanas promovidas no Rio pelo governo, que atingiram duramente os moradores mais pobres da região central da cidade – até perto da Praça Mauá. A destruição de casas e cortiços, de vielas e becos, para dar lugar a avenidas e ruas mais largas, desalojou milhares de pessoas e desencadeou esta que foi a maior revolta popular urbana da história do país.
Um dos principais líderes da Revolta da Vacina foi o capoeirista, candomblecista e estivador Horácio José da Silva, chamado Prata Preta (provavelmente seu nome na capoeira). Na imprensa da época, ele foi retratado de maneira extremamente racista em caricaturas. Em uma delas, aparece por sobre uns cortiços, como se pairasse acima da cidade, portando, ameaçador, um revólver em cada mão. “Para as classes dominantes da época, ele formava a figura de uma liderança do mal, carregada de selvageria e de atraso”, diz a historiadora Mônica Lima e Souza. Na Pequena África, porém, a imagem que resiste de Prata Preta é claramente positiva: ele faz parte do panteão dos líderes populares e antirracistas, e dá nome, inclusive, a um dos principais blocos de Carnaval da região, que desfila na Praça da Harmonia e do qual Célio Braga nunca deixa de participar.
Braga nasceu em Conceição de Macabu, no interior do estado do Rio. Quando tinha 10 anos, sua mãe, que havia se mudado para o Rio assim que ele nasceu, deixando-o aos cuidados dos tios, mandou que o trouxessem para a casa dela na Gamboa, na capital. Letícia Coelho Braga era lavadeira, e o filho passou parte da adolescência ajudando a mãe a transportar as roupas da Pequena África até a Tijuca, bairro da Zona Norte onde se concentrava a maioria dos seus clientes. O apelido de Letícia era Mãe Pequena, por coincidência termo usado também no candomblé para definir a segunda pessoa mais importante no terreiro depois da mãe grande (ou mãe de santo). Mas Letícia ganhou esse apelido por outra razão, segundo Braga: “Foi por causa da altura dela e por acolher todo mundo.” E ela acolhia, de fato.
Na casa com duas salas e três quartos moravam quase trinta pessoas. E ali sempre havia espaço para familiares que queriam trocar sua cidade pelo Rio em busca de oportunidades. “Depois que ela ajeitou a vida aqui, foi chamando todo mundo”, diz Braga. Ele nunca soube como a mãe conseguiu comprar um imóvel com capacidade para abrigar tanta gente, e essa é uma das interrogações de sua vida. “Ela não gostava de falar nada. Não falava nem onde nasceu. Mas ainda vou descobrir”, diz o filho. Letícia morreu em 2000, aos 74 anos.
Outras interrogações dizem respeito ao seu pai, de quem ele já descobriu o prenome, que desconhecia até três anos atrás. Durante um evento de capoeira na Pequena África, compareceu o neto do dono da fazenda onde Braga morou quando criança, em Conceição de Macabu. Foi esse homem que ligou os pontos, depois de conversar com Braga e consultar seu pai, um historiador, chegando à conclusão de que o pai de Braga era um maquinista de trem chamado João Batista. Mas o nome de família permanece desconhecido.
A região onde Braga cresceu na Pequena África nunca foi majoritariamente negra. “Na rua onde a gente morava só tinha duas famílias de negros, a minha e outra, de uma baiana. De resto, era todo mundo branco.” Na memória de Braga, ressurge a lembrança dos olhares discriminatórios que recebia nas ruas. Mas, ao longo dos anos, ele foi encontrando a comunidade negra nos arredores, por meio da capoeira, do samba e da religião. Dentre as pessoas que conheceu na Pequena África, uma das que continuam mais vivas em sua memória é um feiticeiro que tinha 91 anos quando eles se encontraram. “Ele era extremamente poderoso. Bastava olhar para pessoas que não gostava – e não precisava mais nada.”
Em vista dos tantos elementos e práticas culturais que atestam a importância da presença negra na Pequena África, moradores da região da Pedra do Sal reivindicaram o título de quilombolas. “O quilombo é uma terra herdada. Com a abolição, os negros só têm as terras onde viviam, mas nenhum documento que dê a eles o direito sobre essas terras”, diz o portuário Damião Braga Soares dos Santos, de 55 anos, irmão mais velho de Célio Braga e presidente do conselho diretor da Associação dos Remanescentes do Quilombo Pedra do Sal (Arqpedra). “Reparação para as comunidades quilombolas é a titulação de seu território”, completa.
A Constituição de 1988 foi o ponto de partida para a reivindicação de territórios, da parte dos quilombolas. “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva”, diz o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Foi preciso, porém, esperar o decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003, para que se regulamentasse um conjunto de terras ocupadas por remanescentes de quilombos em todo o Brasil.
No estado do Rio de Janeiro, foram certificados 43 quilombos pela Fundação Cultural Palmares, sendo seis na capital, entre eles o Quilombo da Pedra do Sal, cuja certificação só foi publicada em 2006. A certificação, contudo, esbarrou em uma instituição poderosa, dona de cerca de quinhentos imóveis na cidade do Rio, parte deles na zona portuária: a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT), que recorreu na Justiça do processo de posse dos imóveis, aberto pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A antropóloga Roberta Guimarães, autora de A Utopia da Pequena África: Projetos Urbanísticos, Patrimônios e Conflitos na Zona Portuária Carioca (FGV Editora), traçou o percurso histórico desse conflito. Segundo ela, antes dos anos 1980 a relação entre os moradores da Pedra do Sal e a VOT era mais integrada. “A Igreja permitia que eles ocupassem o lugar, pagando um aluguel simbólico”, diz Guimarães. Depois, com o acúmulo de dívidas trabalhistas do hospital da entidade, concomitante à valorização gradual da zona portuária, a VOT adotou nova orientação: aumentou os aluguéis e expulsou do local as pessoas que não tivessem condições de pagá-los. “A Ordem Terceira, ao que parece, tentou escapar da falência se beneficiando desse movimento de revitalização. É nesse contexto que nasce o pedido de reconhecimento do território quilombola.”
“Fomos difamados, fui acusado de ladrão e de ter roubado as terras que pertenciam à Igreja secularmente”, diz Damião Braga. Ele afirma que, em 2007, sua casa foi invadida a mando da VOT. “Toda essa disputa me debilitou bastante a saúde, não foi uma coisa tranquila.” Apesar da certificação, os quilombolas ainda aguardam a reintegração de posse dos imóveis dos quais foram obrigados a sair. “Nessa sociedade racista, as pessoas não acham e não entendem que preto tem direito de ser proprietário de terra”, lamenta.
Procurada pela piauí, a VOT diz ter recebido em 1821, por meio de alvará do príncipe regente, à época d. Pedro I, a propriedade das terras na região do Largo de São Francisco da Prainha, o que foi reconhecido pela prefeitura em 1942. Ela alugava os imóveis para “pessoas necessitadas” por preços simbólicos como uma forma de filantropia. A entidade religiosa alega que, no início dos anos 2000, a região era violenta e seus imóveis foram ocupados de forma irregular, e somente por isso entrou com as ações judiciais para reaver a posse deles. De acordo com a VOT, as ordens judiciais de desocupação dos imóveis foram cumpridas “de forma pacífica e sem qualquer tipo de violência ou ameaça”.
O Quilombo da Pedra do Sal reivindica também a guarda compartilhada dos materiais arqueológicos relacionados à herança africana encontrados nas escavações do Porto Maravilha. Eles estão atualmente sob os cuidados do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (Laau), da prefeitura. “Esses itens arqueológicos da comunidade são ligados à religião e precisavam ter um tratamento religioso, mas ainda não nos foi permitido fazer isso. Parte dessa coleção pertence ao quilombo e foi retirada de nosso território sem o nosso conhecimento”, diz Damião Braga. “Se fosse relacionado à cultura europeia, a manutenção estaria em dia. Mas como é um patrimônio ligado aos pretos, não tem valorização nenhuma.” Os materiais são seixos e blocos de pedra encontrados em partes do solo das ruas Sacadura Cabral e São Francisco da Prainha que, segundo autoridades do candomblé, estariam relacionados a atividades religiosas do passado.
Um laudo de 2019, emitido pela Superintendência Regional no Rio de Janeiro, havia apontado que 1,3 milhão de itens, entre eles os reivindicados pelo Quilombo da Pedra do Sal, se encontravam, à época, em “ausência de controle ambiental de umidade e temperatura”, que havia “utilização de materiais inadequados ao fechamento de sacos” e também a “exposição de peças maiores a goteiras e fezes de animais.” À piauí, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), responsável pela gestão do Laau, disse que o material foi transferido para o Galpão Docas Pedro II em novembro de 2021 e se encontra “em local seguro, abrigado da ação do tempo e de vetores”.
Não foram somente os conflitos territoriais com a VOT que afastaram Damião Braga da zona portuária. O esvaziamento e o fechamento dos portos e armazéns fizeram com que muitas famílias, como a dele, que trabalhavam ali, tivessem que deixar a região por razões financeiras.
Planos de revitalização da zona portuária do Rio, com forte impacto sobre a Pequena África, começaram a ser esboçados nos anos 1980, mas demoraram a sair do papel. Somente com o Porto Maravilha uma nova zona portuária começou a ser moldada. Um dos objetivos desse projeto era transformar a região, tida como decadente, erma, insegura e pouco habitada, em um fervilhante polo turístico, com aparelhos culturais, empresas e prédios de moradia para a classe média e alta. Calculava-se que, com as mudanças, o número de habitantes da região portuária aumentaria de 32 mil para 100 mil, em 2020. Só se saberá o tamanho atual da população com a conclusão do Censo deste ano.
“Esse conjunto de intervenções capitaneadas pelo setor público tentou tornar aquela região visível dentro da geografia urbana carioca”, afirma Edson Farias, professor do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e autor do trabalho O Lugar e a Mobilidade: A Pequena África Carioca no Anverso da Circulação Turística. Ele lembra que serviu de inspiração ao Rio o processo de revitalização de outras zonas portuárias no mundo, como o Porto Madero, em Buenos Aires, o Soho, em Nova York, e Manchester, na Inglaterra. A ideia era dinamizar a área nos planos empresarial e financeiro, objetivo que ainda está longe de ser alcançado e esbarrou num detalhe essencial, que não foi levado em conta: as pessoas que já viviam ali. “Do ponto de vista da ocupação, a região portuária nunca esteve abandonada. É uma região de moradia de uma população de corte de renda mais baixo”, diz Farias.
A antropóloga Roberta Guimarães ressalta que o projeto do Porto Maravilha não se deu numa região vazia. “Já entrou num território que tinha outros interesses, com outras disputas.” Com isso, os conflitos existentes, como o do Quilombo da Pedra do Sal com a VOT, ganharam outra configuração, depois da valorização da área e do aumento do custo da moradia que agora ocorre ali.
Parte do atual sucesso turístico da região portuária pode ser atribuído à herança africana na região. “Foram tantas reivindicações, de tantos movimentos, que a prefeitura aos poucos foi incorporando também a memória negra àquela região”, diz Guimarães. “Acaba que essa foi a grande aposta da prefeitura no final das contas.” Ou seja, a Pequena África tornou-se um atrativo indispensável do roteiro de visitas do Porto Maravilha, para brasileiros e estrangeiros. De acordo com a Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto do Rio, 11 mil pessoas visitaram a Pequena África entre janeiro e julho de 2022.
Entusiasta do samba e da cultura, o motorista Robert Gonçalves, de 37 anos, que mora na Pedra do Sal, não se incomoda com o aumento do número de turistas na área. Pelo contrário. Ele acha importante que a Pequena África esteja tendo reconhecimento público e diz que algumas melhorias até ocorreram na região depois que ela passou a ser mais visada pelos turistas. “Chegou até conserto na rua de baixo que era toda esburacada”, conta Gonçalves, que nasceu em Brasília e mudou-se para a Pedra do Sal em 2000.
Para a autônoma Cláudia Braga Souza, de 47 anos, moradora do bairro Santo Cristo, as mudanças provocadas pelo Projeto Porto Maravilha só lhe trouxeram problemas. Desde que o VLT foi inaugurado, ela viu desaparecerem as linhas de ônibus das quais ela dependia para trabalhar. “É a gente que sai no prejuízo. Agora tenho que andar muito até chegar ao ponto do VLT.” Souza também reclama da falta de divulgação para os moradores da região dos eventos realizados na Praça Mauá. Ela diz que só ficou sabendo dos shows na praça em agosto porque viu um letreiro durante a montagem do palco e foi pesquisar do que se tratava. “Eles fazem os eventos mais para quem é de fora, para os turistas. Nem avisam a gente”, afirma.
A política de reconhecimento da história dos negros na Pequena África parece ser de tipo meramente turístico, sem efeitos sobre a vida dos afrodescendentes que vivem lá, como explica a antropóloga Roberta Guimarães: “É algo mais simbólico, que remete à história da escravidão e à contribuição dos africanos para a nossa herança cultural. Mas não houve avanço político nenhum na luta pela redistribuição do território.” Não se tem notícia, por exemplo, de uma política pública habitacional para a fixação da população negra na Pequena África. “Foi só depois da intervenção dos moradores que se passou a discutir essa questão do aquilombamento da região portuária. As obras feitas aqui atenderam apenas ao grande capital, e não à comunidade”, critica o professor de história Luiz Carlos Torres, que mora no bairro Santo Cristo. “Não adianta só tombar os bens materiais, você precisa reconhecer as pessoas. Porque esse tombamento só vai ter sentido se houver vida sendo explicada.”
Torres, de 61 anos, leciona em três escolas públicas para cerca de quatrocentos alunos do ensino médio. Nos dias em que não dá aulas pela manhã, ele aproveita para se exercitar. Pega a bicicleta no quintal de casa e pedala do Santo Cristo até a Saúde – bairros próximos da zona portuária do Rio de Janeiro. Segue pela orla, margeando os armazéns do porto, até alcançar o Píer Mauá e depois a praça de mesmo nome, onde pedala pelo Boulevard Olímpico, de frente para a Baía de Guanabara e com vista para a Ponte Rio-Niterói.
O professor de história não faz parte da nova leva de visitantes da área. Ele sempre passeou por ali, desde os tempos em que a Praça Mauá era frequentada por estivadores, portuários e marinheiros. Mais que isso: a região está ligada à história de sua família há cerca de 130 anos.
No final do século XIX, seu bisavô, Júlio Simião da Silva, migrou do Vale do Café, no Sul do estado do Rio, para a capital, e foi morar no Morro da Providência, no Santo Cristo, perto do porto, onde era mais fácil arrumar trabalho. “Quando eu era criança me lembro de meu bisavô, bem velhinho, contar com orgulho que tinha nascido livre”, recorda Torres. Quando Júlio nasceu já estava em vigor a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, e por isso ele nunca foi escravizado. Na primeira década do século XX, o caminho de Júlio cruzou com o da baiana Francelina, que viera do Recôncavo Baiano havia pouco, acompanhando a migração de ex-escravizados daquela região do Nordeste. Júlio morreu em 1971, com quase 90 anos.
A história de seus bisavós é a mais antiga que Torres consegue reconstituir, quando recua em sua genealogia familiar. E toda ela está relacionada à Pequena África e ao Morro da Providência, onde ele morou na infância. “Me lembro de crescer cercado por pessoas negras na Providência, e eu me sentia protegido por elas. A vida era mais dura, mas eles eram mais sensíveis em relação aos outros.” À medida que a situação econômica melhorava, sua família ia se mudando para as áreas mais baixas e menos violentas da favela. Foi perto da Providência que Torres estudou, sempre em escolas públicas, até iniciar a faculdade de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 1993. Sua mãe, Iraci Alves dos Santos, trabalhava como doméstica e se enchia de orgulho ao dizer que o filho era professor.
No final dos anos 1990, Torres mudou-se para o Morro da Conceição, na Saúde, distante meia hora a pé do Morro da Providência. Entre um e outro, fica o bairro da Gamboa e o Morro do Livramento, onde Machado de Assis nasceu e passou a infância. Desde 2010, Torres mora no Santo Cristo. Por razões pessoais e de ancestralidade, ele não se imagina vivendo em outra região do Rio que não seja a Pequena África. “Eu não me reconheço em nenhum lugar a não ser este”, diz.
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