CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Pão nosso
A cozinha que ajuda a reabilitar usuários de crack
Thallys Braga | Edição 199, Abril 2023
Em um trecho pouco movimentado do bairro da Luz, em São Paulo, um antigo galpão abriga o Pão do Povo da Rua, projeto social que distribui café da manhã e almoço para quem tem fome. Diariamente, catorze funcionários se revezam na produção de bolinhos, pães e marmitas. Todos eles já foram usuários de crack. São onze da manhã de uma quarta-feira e um homem diminuto, com óculos de armação vermelha, entra esbaforido pela porta da cozinha. “Mudança de planos, pessoal”, anuncia Ricardo Frugoli, o mestre-cuca. Um dos cozinheiros não chegou para o expediente. Teve uma recaída e retornou à Cracolândia.
Um homem se prontifica a assumir a função do colega e vai preparar o molho das salsichas que precisam estar nas setecentas quentinhas distribuídas no almoço. Como se nada tivesse acontecido, todos voltam ao trabalho. Uma moça transexual lava a louça, conversando com o amigo que vigia a panela do arroz. Um rapaz atlético sova a massa do pão para o café da tarde. “Este é o William, o primeiro funcionário da casa”, diz Frugoli apontando para o homem de 29 anos, que acena com a mão branca de farinha.
A comida produzida no galpão é entregue em regiões com grande fluxo de pessoas em situação de rua e de usuários de drogas. Logo que a Kombi amarela e branca do Pão do Povo da Rua estaciona, uma fila extensa começa a se formar. Cada favorecido pode receber apenas um café da manhã e um almoço por dia. Mas há quem consiga burlar a regra.
Em uma manhã do início de 2021, William dos Santos, então morador de um albergue, estava na Praça Princesa Isabel quando avistou o aglomerado de gente ao redor da Kombi. Ele entrou na fila para o café da manhã. “Pensa num café top: dois ovos, uma bolacha, dois pães, uma fruta, um bolinho e um copo de chocolate quente”, enumera. A Kombi saiu rumo à próxima parada – e Santos correu atrás. Quando o veículo estacionou na Praça Marechal Deodoro e outra fila se formou, ele puxou o capuz do casaco para se disfarçar e pegou um segundo café da manhã. O corre-corre se repetiu algumas vezes, até que Santos foi descoberto.
Nos primeiros dias da pandemia, em março de 2020, Frugoli ficava perplexo com o tanto de gente que vagava faminta pelas ruas de São Paulo. Formado em gastronomia e pesquisador da culinária brasileira, começou a preparar marmitas para deixar nos postes de sua vizinhança. Com ajuda do marido, o fisioterapeuta Wesley Vidal, ele coletou doações pela internet e, pouco a pouco, aumentou o número de quentinhas distribuídas. Os vizinhos reclamaram que eles estavam usando todo o gás encanado do prédio.
O casal ocupou então a cozinha da Casa de Oração do Povo da Rua, o projeto social liderado pelo padre Júlio Lancellotti. Com a colaboração de pessoas e empresas parceiras, conseguiram alugar o espaço na Luz e, depois, um prédio residencial com três apartamentos para abrigar os dependentes químicos que chegavam dispostos a se reabilitar trabalhando como cozinheiros. É lá que hoje vive William dos Santos. “Quando Ricardo descobriu que eu estava correndo atrás da Kombi, me encarou e disse: ‘Você tem que trabalhar com a gente’”, lembra. O convite veio no momento certo: sem usar drogas havia dois meses, ele andava em busca de uma nova vida.
Os pais de Santos eram dependentes químicos e morreram quando ele ainda era criança. Com 10 anos, o menino já estava na rua, cheirando cola. Passou por abrigos, mas sofria bullying e fugia de volta para a rua. Acabou usando crack. “A Cracolândia era a minha vida”, conta o hoje cozinheiro, sentado no refeitório do projeto social. “Enquanto eu estava na onda, nada importava. Mas uma hora a pedra acaba e de madrugada faz um frio horrível. Eu olhava para o pessoal do meu lado, com os machucados cheios de bicho, e pensava que aquela era a última página do livro. Não tinha mais história para ser contada ali.”
Santos foi acolhido no Pão do Povo da Rua sob a condição de largar o crack. Tinha a opção de seguir um plano de redução de danos, usando no máximo duas pedras por dia até parar de vez, ou de se internar em uma ONG de reabilitação. Preferiu parar logo, por conta própria. De vez em quando, fuma cigarros de nicotina e de maconha para controlar o estresse da abstinência. Começou a trabalhar no projeto social como lavador de louça, recebendo o salário inicial de 600 reais, e hoje ganha 1,7 mil reais.
Há onze anos, o paisagista Ricardo Mendes rompeu com o namorado depois de uma briga e sentiu tanta raiva que quis matá-lo. Lembrou-se de um amigo que ficava violento sempre que usava cocaína. “Aí eu fui na boca comprar pó porque queria ter coragem de matar o traste. Chegando lá, o cara só tinha crack.” Não matou o ex, mas ficou viciado. “Na minha pior fase, passei sete meses na Cracolândia, sem dar notícias para a minha mãe.”
Depois de vários cafés da manhã na Kombi do Pão do Povo da Rua, Mendes decidiu trabalhar na feitura das refeições. Poderia se recuperar do vício e, de quebra, teria um salário. Passou seis meses numa casa terapêutica de reabilitação e chegou na ONG lavando louça. Depois foi convidado a trabalhar na área administrativa e acabou se tornando gestor. Nos últimos meses, ele ajudou a bolar um plano para introduzir o Pão do Povo da Rua nos aplicativos de entrega de comida. A partir deste mês, qualquer pessoa de São Paulo pode pedir os pães e os bolinhos do projeto social nos serviços de delivery.
“Vamos lá, vou dizer tudo o que a gente faz aqui. Tem pão de malte, pão de manteiga, pão australiano, broa de milho. Se quiser bolinho, tem de banana, cenoura, fubá e laranja”, diz William dos Santos, já um pouco cansado de tantas perguntas. São duas horas da tarde e ele acabou de almoçar. “Se você me dá licença, agora eu preciso voltar para casa e tirar um cochilo. Daqui a pouco tenho que sair para correr, estou treinando para a São Silvestre. E de noite tenho que ir para o supletivo. Minha vida virou essa loucura.”
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