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Minhas aulas com sapatos, espingardas e velocípedes para deixar de apanhar
Tom Zé | Edição 9, Junho 2007
O único rio de Irará chama-se rio Seco. Ele só corre um pouquinho quando tem uma grande chuva. Depois pára. Mas nós todos aprendíamos, com uma dança dramática chamada Chegança, tudo quanto é termo da arte de navegar. Madeirames, mastros, quadrantes e sextantes. Aprendíamos também que tínhamos de expulsar os árabes. Nunca soubemos expulsar árabes, porque nem sabíamos o que era isso.
Em Irará aprendia-se também a tabuada. A tabuada era mais misteriosa do que aqueles navios que não tínhamos onde atracar, mais enigmática do que os infiéis que precisávamos expulsar. Era uma experiência dolorida. Oito vezes sete, 56. Eu me perguntava: “Quem pode, de sã consciência, provar que oito vezes sete é 56?” Oito vezes cinco, 40, oito vezes seis, 48. Um dia, me perguntei, com medo da resposta, quanto era dez vezes dez. Dizia para mim mesmo: “Ai, minha Nossa Senhora, aí vai ser um inferno completo”. Quando a professora respondeu “cem”, tive um grande prazer. Pensei: Deus está bem intencionado com a humanidade, Deus está olhando pelos seus filhos, pelas suas criaturas.
Para mim, a grande criatura era o alfabeto. A mãe até ensinava, desavisada, antes que entrássemos na escola, que “b” e “a” davam “ba”, “b” e “e”, “bé”, “b” e “i”, “bi”. Mas, e para entender o que era isso? Quando janeiro chegou, e comecei na escola, com meus oito anos recentes, a professora mandou ler em silêncio, e eu nunca pensei que aqueles sinais podiam transmitir coisas tão exatas como aquele texto. O texto dizia que um aluno, colega nosso, tava com um problema em casa, e então pedia licença à professora para ir para casa. Nossa Senhora, era um verdadeiro assombro! Olhei para o lado, sem acreditar que todo mundo estava vendo o aluno pedir à professora para ir pra casa, se levantar, fazer esse gesto que movimenta milhões de músculos. Eu desconfiava que aquilo, aqueles sinais, não eram capazes de transmitir a todo mundo igual ao que eu estava entendendo.
Aprendi a falar com três anos. Todos aprendiam a falar com três anos. Eu ficava deitado no berço, e ninguém ia lá me incomodar. Durante a meninice toda, era todo o tempo possível para a contemplação do infinito. Passei quatro dias pensando no alfabeto. Será que todo mundo de Irará entendia aquele negócio com a exatidão que eu entendi?
E o raciocínio? Estela, minha irmã, ganhou um velocípede. Ela tinha quatro anos. Eu tinha sete. Naquela noite, passei todo o escuro planejando como eu ia ensinar Estela, de manhã, que o pé de cima empurra o pedal até a hora que chega no fundo, e que, quando chega no fundo, é o outro pé que começa a empurrar, e esse primeiro perde a força. Passei a noite toda na procura das palavras certas. Quando foi de manhã, Estela sentou no banquinho. Eu, a maior autoridade, o mais velho dos irmãos, comecei a dar a Estela as instruções. Estela não tinha o menor contato com essas coisas explicadas. Depois de um tempo foi um “Ah, isso não vale nada…”, e saíram empurrando desembestados o velocípede “pa, pa, pa, pa…”. Ela aprendeu mesmo. E eu fiquei decepcionado, fracassado, derrotado, porque eu tinha empenhado muito trabalho nisso.
Um dia, ganhei uma espingarda. Um tio que veio do Rio foi quem trouxe. Ela atirava rolhas. Tive uma coisa, que hoje só posso chamar de febre, porque fiz um cálculo que, se eu desmontasse a espingarda, ficaria com tantos pequenos materiais, e tão especificamente destinados a uma função, que, juntando com o que eu achava na rua, com as coisas que eu via de outros aparelhos de casa, ia ter uma verdadeira fornalha de Vulcano. Ao mesmo tempo, tinha medo que, uma vez destruída a espingarda, eu ficaria sem espingarda nem nada. Em mim vivia o sonho, a fantasia do criador, mas também a lógica do homem com alguma experiência, aos sete anos de idade.
Mais prazer tive ao aprender a amarrar o sapato. Amarrar sapato é uma coisa complicada, mas você pode se aproximar dela lentamente. Uma hora você vê o laço dado, outra hora alguém lhe dá uma primeira lição, ou seja, a primeira dobra do laço. Noutro dia você é capaz de pensar na segunda lição. A vantagem é que você sempre pode ver o sapato amarrado por alguém, para você comparar. E foi aprendendo essas coisinhas que percebi que o ato de pensar seria uma maneira de eu me mover dentro do mundo. Um sextante.
A grande prova disso tive pouco tempo depois com a ajuda do futebol, da garoa, de Carlito e de minha asma. Quando era pequeno, minha mãe pensava que a asma daria em tuberculose, que matou (naturalmente que de pobreza e de fome) a maior parte dos parentes de meu pai. Chuva, chuvisco, jogar bola, ar livre, sol – tudo era perigoso para mim. Eu estava jogando bola e, por uma janela do fundo da minha casa, a minha mãe via uma parte do campo, e eu ouvi ela gritar “Antonio José!”. Pensei: “Hoje eu tô fodido”. Aí veio a inspiração. “Quem é que parece mais comigo?” Ah sim, Carlito, filho de seu Albertino. Chamei ele, mandei que tirasse a blusa e botasse uma boina, como aquelas que o Heleno de Freitas e eu usávamos, nos anos 40. Pedi que Carlito passasse na frente da porta de casa, várias vezes. Carlito fez a coisa tão bem feita que, na hora que eu entrei em casa, minha mãe me disse: “Nossa Senhora, Antonio José. Que bom que você está aqui. Já tinha pego a palmatória e o cinturão para lhe dar uma surra, pensando que você era o menino que estava jogando bola, e, quando o menino passou aqui, vi que não era você”. Ah, a glória! Subiu aquele calorão dos meus pés. Não por não tomar a surra, mas por aprender que o raciocínio podia me salvar. A convicção de que isso era possível, que eu poderia enfrentar agora todos os meus inimigos, todas as proibições.
Na infância também aprendi outras felicidades que me acompanhariam. Quando a Segunda Guerra começou, em 1939, eu tinha três anos. Todos nós, em Irará, tínhamos três medos: Deus e o inferno, medo de Lampião e seus cangaceiros e, por fim, um medo terrível dos alemães, da guerra e de palavras como “Berlim”. Até hoje não me lembro de uma emoção tão larga e ampla como a de uma manhã, a de 8 de maio de 1945, quando o professor Arthur, que me daria muitas outras felicidades, disse a todos nós a seguinte frase: “Desde a zero hora, no meridiano de Greenwich, que não se dá um tiro sequer na frente de batalha. Rendição incondicional do fascismo”. Ele dizendo isso, e eu arrepiado. Esse aprendizado acabou sendo muito importante.
Meu livro de aprendizagens só ganharia capítulos mais gordos anos depois, quando conheci Hans-Joachim Koellreutter. Aprender música com ele e seus colegas era como descobrir como desarmar, ou não, aquela espingarda. Aprender harmonia era tão interessante quanto ensinar minha irmã a pedalar um velocípede. E aprender serialismo e dodecafonismo era tão interessante quanto descobrir que eu podia vestir um rapaz com minha boina e deixar de apanhar. Aprender, eu mesmo aprendi, é em grande parte deixar de apanhar.
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