“O Brasil é um dos maiores produtores de proteína animal e vegetal”, diz o ministro. “Tem uma das maiores reservas de petróleo e de energia renovável. Tudo isso será alvo da cobiça internacional. Para nos protegermos no futuro temos que nos preparar desde agora” FOTO: TEREZA SOBREIRA_ASCOM/MD
Para toda obra
Presidente do Supremo, ministro de Fernando Henrique, Lula e Dilma, eleitor de Serra, titular da Justiça e da Defesa, Nelson Jobim transita entre juízes, militares e civis de todas as cores
Consuelo Dieguez | Edição 59, Agosto 2011
– Fragelli, coloque aí na sua apresentação o nome das empresas que participam do projeto do submarino nuclear e identifique o que são essas siglas – disse o ministro Nelson Jobim, da Defesa.
– Ministro, essa apresentação é um compacto. As siglas e as empresas aparecem em algum momento da apresentação completa, com oitenta slides – respondeu o almirante José Alberto Accioly Fragelli, coordenador do Programa de Desenvolvimento de Submarino com Propulsão Nuclear.
– Ninguém aguenta ver oitenta slides, Fragelli. Vocês têm que botar na cabeça que essas palestras não são para vocês, militares. São para civis, que têm pouca compreensão do que está sendo tratado.
– Ministro, eu faço várias palestras para empresários, e faço desse jeito.
– Mas quero que seja feito desse jeito. Entendido?
– Pois não, ministro. Farei as modificações.
Eram oito e meia de uma ensolarada manhã no Rio de Janeiro. Nelson Jobim assistia, na primeira fila do auditório do Arsenal de Marinha, à exposição do almirante José Alberto Accioly Fragelli. Desde que assumiu o Ministério da Defesa, há quatro anos, Jobim se empenha em conseguir verbas para programas que a cúpula das Forças Armadas considera fundamentais. O do submarino nuclear é um deles.
Mas o ministro também acha que, para agradar os militares, é preciso antes convencer os civis. Ele fora ao Arsenal averiguar como o projeto do submarino é apresentado a políticos, empresários e jornalistas. Como a intenção é ganhar simpatia para a ideia, insiste com os militares que se expressem de maneira clara, sem recorrer ao jargão da caserna.
“Tenho certeza de que, se a presidenta fosse a socialista Ségolène Royal, a transferência de tecnologia não teria sido autorizada”, disse Jobim aos oficiais no final da palestra. Segundo ele, a França só concordou em transferir tecnologia nuclear ao Brasil, no quadro da construção do submarino, porque o governo de Nicolas Sarkozy era de direita.
Na saída do prédio, empertigou-se e estufou-se para assistir à saudação da tropa. Vestia uma calça verde-musgo e uma camisa cáqui de inspiração bélica. Com passos marciais, embarcou no porta-aviões São Paulo, ali ancorado, seguido do comandante da Marinha, Julio Soares de Moura Neto, do seu assessor especial, o ex-deputado José Genoíno, e do ministro de Assuntos Estratégicos, Wellington Moreira Franco, que improvisaram corridinhas para acompanhar o chefe. No navio, tomou um helicóptero rumo à Base Naval de Itaguaí, onde, ao lado, está sendo construído um estaleiro da Marinha, pela Odebrecht, em que serão fabricados os submarinos.
Com uma taça de vinho branco na mão, no aperitivo do almoço oferecido pela Marinha, Jobim explicou sua exasperação com o almirante Fragelli, na palestra no Arsenal: “É preciso saber quem manda aqui. É preciso respeito à hierarquia. Se eu não impuser minha autoridade, o espaço logo é ocupado.”
Nelson Jobim é um homenzarrão de 1,90 metro que se impõe pelo tamanho, pelo porte e pela voz. Nasceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, há 65 anos, e não só conserva como cultiva o sotaque gaúcho. O avô foi embaixador e governador do estado, o pai, advogado e a família desde sempre esteve envolvida na política gaúcha, às vezes em lados opostos. A avó materna era maragato, e o avô, chimango – o que equivale, na política da província, a ser Montecchio e Capuleto na Verona de Romeu e Julieta. Durante os conflitos entre uns e outros, a avó socorria os maragatos no porão; e o avô, no andar superior, os chimangos.
Os Jobim, segundo o próprio ministro, não são uma estirpe que prime pela brandura. A avó paterna, Ana, era tão severa que os netos não a chamavam de avó, e sim de Don’Ana. Ela, por sua vez, chamava o pequeno Nelson de “senhor doutor meu neto”. Ana teve um derrame na velhice e ficou cega. Fingiu para toda a família, durante sete anos, que enxergava bem, embora todos soubessem que ela já não discernia um chimango de um maragato.
Jobim chegou ao Ministério da Defesa embraseado por confusões que vinham desde o início do governo Lula. A cúpula militar se abespinhara com o ministro José Viegas porque ele divulgou fotos do jornalista Vladimir Herzog seviciado na cadeia, pouco antes de ser assassinado durante a ditadura. A tortura seguida de morte era fato inquestionável. Mas as fotos divulgadas por Viegas, não; eram uma fraude.
Viegas caiu e o vice-presidente José Alencar foi improvisado no cargo, pelo qual não tinha gosto nem interesse. Mal apareceu no Ministério até ser substituído por Waldir Pires, ex-governador da Bahia. Ao defender a desmilitarização do controle aéreo, Pires também se atritou com o oficialato. Um avião de grande porte caiu em seguida, controladores de voo entraram em greve, os aeroportos viraram um pandemônio e Waldir Pires ficou fragilizado.
Fora da vida pública, e sem planos de voltar a ela, Jobim abrira um escritório de advocacia em Brasília. Em julho de 2007, foi procurado por um amigo de infância, também ele do Rio Grande do Sul: o ministro Tarso Genro, da Justiça. O amigo petista achava que Jobim tinha o perfil para o cargo por transitar bem por todo o espectro político e ter uma experiência rica. Eleito pelo PMDB, por duas vezes ele fora deputado federal – sendo que na primeira vez trabalhou junto a Ulysses Guimarães para levar a Constituinte a bom termo. Fora também ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, que o nomeou juiz do Supremo Tribunal Federal.
Em 2002, Jobim estivera à frente da Justiça Eleitoral durante a campanha em que Lula enfrentou José Serra. Como era amigo de Serra, houve receio entre os petistas de que beneficiasse o candidato tucano. Numa de suas primeiras entrevistas depois de eleito, porém, Lula elogiou a atuação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral na campanha.
“O Tarso me disse que o governo precisava de alguém para colocar ordem no negócio, e que eu tinha a cabeça organizada e autoridade”, contou o ministro numa conversa em seu gabinete, decorado com sofás de couro preto e móveis antigos pela sua mulher, Adrienne Senna. Jobim não topou. Achava que já havia cumprido sua cota na vida pública. Afora isso, “era um cargo difícil porque aquilo lá estava uma bagunça”. Também pesava na decisão a opinião da mulher, totalmente contrária à sua volta para o governo. Adrienne – com quem se casou após separação traumática – tem forte ascendência sobre o marido. “Eu não ouço a Adrienne, eu obedeço”, afirmou, às gargalhadas. “Quem nos conhece sabe que é verdade.”
Uma tarde, Jobim recebeu a visita do ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, que insistiu para que ao menos conversasse com o presidente. Jobim foi ao Planalto, ouviu os argumentos de Lula, e ficou de pensar. Intuía que, se dissesse não na hora, seria dissuadido. “O Lula é um sedutor”, disse. “Aliás, ele e Fernando Henrique são sedutores. Só que de maneiras diferentes. O Lula diz palavrão, o Fernando é um lorde”, disse Jobim.
Durante um mês, foi assediado por parlamentares amigos, entre eles Sigmaringa Seixas, para que aceitasse o posto. Mas continuou irredutível. No dia 17 de julho houve o acidente com o avião da TAM, em Congonhas, no qual morreram 199 pessoas. Pouco depois, Jobim foi novamente procurado por Seixas, dessa vez, acompanhado de Gilmar Mendes, o presidente do Supremo Tribunal Federal, que lhe fez o mesmo apelo. O acidente dobrou o casal. Às quatro da tarde do dia 25 de julho, Seixas ligou para o Planalto e pediu uma reunião com Lula. Duas horas depois, Jobim era escolhido ministro.
Imediatamente após a posse, numa saleta ao lado do auditório, avisou ao presidente que iria a Congonhas. Até então, só o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, estivera no aeroporto. “Alguém tinha que mostrar a cara, falar com as famílias, avaliar as condições do aeroporto, mostrar solidariedade”, contou Jobim. Um ajudante de ordens do brigadeiro Saito veio falar com ele. Travaram, segundo Jobim, o seguinte diálogo. “Ministro, o senhor vai a Congonhas amanhã com o brigadeiro Saito?” “Não, o brigadeiro Saito é quem vai comigo.”
Na viagem, Jobim usou capacete de bombeiros, subiu em escada Magirus, circulou pela pista do aeroporto, foi ao Instituto Médico Legal. Foi acusado de exibicionismo. Ele diz que foi a maneira que encontrou para mostrar aos familiares das vítimas e à sociedade que o governo se importava com a tragédia e acompanharia de perto as investigações.
“Tínhamos dois problemas: a Infraero e a Agência de Aviação Civil”, recordou. Dar um jeito na Infraero, a estatal responsável pela administração dos aeroportos, era relativamente fácil. Bastava demitir a diretoria e nomear novos gestores. Foi o que ele fez, imediatamente. Na Anac, a solução era mais complicada, pois os diretores tinham mandato. A saída, explicou, foi adotar o estilo do Partido Republicano do Rio Grande do Sul: fazer na marra. Começou a pressionar os diretores para que pedissem demissão. “Aquilo era muito desorganizado, cada diretor tinha uma agenda própria e não se falavam entre si”, disse, enquanto rabiscava um papel, gesto que repete quando desenvolve um raciocínio.
Uma das primeiras a serem dispensadas foi Denise Abreu, ligada a José Dirceu. “Aquela que fumava charuto, lembra?”, ele perguntou. Ela queria falar com Lula. Quando soube, Jobim ligou para o presidente. “Presidente, não aceite. A crise da aviação está dentro do Palácio e a primeira coisa que temos que fazer é tirá-la daí. Deixa que eu resolvo.”
Jobim chamara a economista Solange Paiva Vieira para ser a responsável pela aviação civil no Ministério. Mas foi da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, a sugestão de que ela dirigisse a Anac, a Agência Nacional de Aviação Civil. O passo seguinte foi desmilitarizar a área de controle de voo. Os controladores passaram a ter um plano de carreira diferente dos demais militares, o que permitiu que seus salários fossem aumentados sem quebrar a hierarquia salarial. As licitações dos aeroportos, todas condenadas pelo Tribunal de Contas da União, foram revistas. Com os problemas razoavelmente encaminhados, Jobim achou que só havia sentido em continuar no Ministério da Defesa se fosse para tratar de outros temas. Começou a se interessar pelos militares – seu papel institucional e a maneira como viam a ditadura.
O almoço na Base Naval foi servido num galpão arrumado com esmero. Sobre as mesas, cobertas com toalhas de linho branco, havia pratos de porcelanas azul e branca com emblema da Marinha, taças de cristal, guardanapos também de linho e vasos de flores. O ministro sentou-se à mesa principal cercado de oficiais e de diretores da Odebrecht. Mais descontraído, fez um discurso com afagos aos comandantes: “Esse projeto da Marinha e do Ministério da Defesa foi um desafio para todos nós. O presidente Lula, com sua percepção, logo autorizou que tocássemos o submarino nuclear. A presidenta Dilma também o apoia. Ele é irreversível.”
Na saída, posou, sorridente, para uma foto com oficiais. Tomou novamente o helicóptero, desembarcou no Aeroporto Santos Dumont, onde embarcou num jato da Força Aérea para Brasília. Durante o voo, enterrou os olhos num calhamaço todo marcado a caneta e com adesivos coloridos, organizado por José Genoíno. Era o projeto sobre a abertura de documentos sigilosos, em discussão no governo e no Congresso.
A relação de Nelson Jobim com os militares é cerimoniosa, mas franca. O seu apreço pela hierarquia é admirado por boa parte do oficialato, mas há generais que, na surdina, o chamam de “pavão”. Ele considera que ganhou a confiança dos militares por sua posição em relação a uma questão delicada: a Comissão da Verdade, projeto do governo em discussão no Congresso.
Se for instituída, a Comissão da Verdade poderá esmiuçar os crimes da ditadura militar contra opositores do regime. E também os crimes cometidos por civis contra agentes do Estado. Poderá requisitar documentos e convocar os envolvidos para depor. Seu poder acaba aí. Pelo projeto, nenhum dos acusados poderá ser julgado, e muito menos punido.
Essa questão colocou Jobim e o então secretário de Direitos Humanos do governo Lula, Paulo Vannuchi, em campos opostos. Vannuchi era favorável que a comissão tivesse poderes de condenar os culpados. Os dois tiveram discussões ríspidas. “Eu defendi que valesse a Lei da Anistia de 1979, que absolveu os crimes cometidos pelos dois lados”, disse o ministro.
Durante o embate com Vannuchi, no ano passado, Jobim foi a Lula explicar seu ponto de vista. Contou a ele que participara, no governo de Fernando Henrique, da criação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Na época, discutira com o alto-comando das Forças Armadas um ponto nevrálgico: a diferença entre morte dos subversivos “em combate” e a morte após serem detidos por agentes do Estado. A partir do momento em que o indivíduo estivesse em situação de submissão, a responsabilidade por sua morte era do Estado, independente de ele ter cometido crime ou não. “Na época, eu disse aos militares: ‘Nós não temos pena de morte. Se o indivíduo morreu depois de preso, a responsabilidade é do Estado, que terá que arcar com as indenizações.’” Reconhecidos os crimes cometidos pelo regime, indenizavam-se as vítimas e ponto final. Os militares assassinos e torturadores, no seu entendimento, haviam sido contemplados pela Anistia.
Lula arbitrou a questão em favor da tese de Jobim, estabelecendo no projeto enviado ao Congresso que ela se limitaria à investigação dos fatos. “O efeito colateral do embate com o Paulo Vannuchi foi o estabelecimento de uma relação de confiança com os militares”, disse. “Eu devo ao Paulo a construção da minha relação de respeito com os militares. Ele não sabe disso.”
Num seminário recente no Instituto Brasil, em Washington, Paulo Vannuchi afirmou que o projeto da Comissão da Verdade não prevê a investigação dos crimes cometidos por subversivos. E criticou o comportamento do ministro Jobim, que teria ameaçado se demitir. “Essa história do pedido de demissão dele está mal contada”, disse Vannuchi. “Pode ser que o ministro Jobim tenha feito um jogo com a imprensa para passar a ideia de que saiu vitorioso.” Ele discorda da tese de que a Lei da Anistia foi um pacto entre a oposição e o regime militar que encerraria a questão. “Isso é totalmente falso, o projeto da Anistia foi da ditadura”, disse. “Autoanistias não valem.”
Na véspera do dia 31 de março passado, data do golpe que instaurou a ditadura em 1964, Jobim cobrou a fatura dos militares. Ele foi avisado de que o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, faria um discurso, no Forte Apache, em Brasília, exaltando o golpe. Seria o seu discurso de despedida antes de passar para a reserva. Jobim ligou para o comandante do Exército, general Enzo Peri, e avisou que qualquer manifestação de louvor à data estava proibida. “Eu não posso mandar na reserva, mas não aceitarei qualquer manifestação dos oficiais da ativa”, disse ao general. “Avise ao Heleno que ele está proibido de fazer o discurso amanhã.”
O general Enzo ficou de verificar o fato. Na volta, afirmou ao ministro:
– Conversei com o Heleno e ele disse que é apenas um discurso, não tem nada de mais.
– Enzo, não importa o conteúdo do discurso, e sim a simbologia. Diga para cancelar.
E então lembrou o comandante do Exército do acordo com a presidenta Dilma antes da posse. Jobim interrompeu o relato para encher de água quente, pela terceira vez, a cuia de chimarrão. Enquanto sorvia a bebida, contou que, ao convidá-lo a continuar no Ministério da Defesa, Dilma decidiu manter os comandantes da Marinha, Julio Moura Neto, do Exército, Enzo Peri, e da Aeronáutica, Juniti Saito. “Eu achei ótimo porque nós estávamos afinados, eles participavam de todo o processo de modernização das Forças Armadas e não seria bom tirá-los”, disse.
Dilma lhe pediu que marcasse um encontro reservado com os três comandantes. “Eu falei para ela: ‘Vamos combinar o seguinte, a senhora conversa com eles porque ainda não é presidente. Mas, depois da posse, a conversa tem que ser comigo’”, contou o ministro. No encontro com os militares, Dilma, segundo Jobim, os avisou de que “não haveria retaliação, mas também não aceitaria glorificação”. Ele reiterou o compromisso assumido pela presidenta para advertir o general Enzo de que não aceitaria nenhuma comemoração dos militares da ativa no dia 31.
Enquanto relembrava o episódio, José Genoíno, seu assessor especial, entrou na sala e sentou-se à sua frente. Jobim olhou para o ex-deputado, sacudiu a mão em direção a ele e provocou: “Os amigos aí do Genoíno, do PT, que não gostam de mim, até se espantaram com minha reação.”
No governo Lula, Jobim já se irritara com o general Augusto Heleno por causa de suas críticas à demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. “Eu chamei o Heleno e disse que não queria que ele contestasse a demarcação”, contou. “Ele tinha que respeitar a hierarquia e a disciplina.” E continuou: “Eu falei para ele que eu podia até concordar com suas teses, mas que aquele era um assunto vencido. Quem decide isso não é a estrutura militar, é a civil.” O general Heleno parou com as críticas.
Na ocasião, disse Jobim, lançando novamente um olhar irônico para o assessor especial, “o pessoal da esquerda, lá do Genoíno, queria tirar o Heleno, e eu falei que de jeito nenhum”.
Um segundo episódio, envolvendo o general Santa Rosa, da cúpula do Ministério, teve consequências mais sérias. Numa solenidade Militar, Santa Rosa criticara a política de direitos humanos do governo. No dia seguinte, às sete da manhã, ao ler os jornais, Jobim deparou-se com os ataques do subordinado. Ligou na mesma hora para o general Enzo e pediu que ele averiguasse a veracidade das declarações. “Enzo, se for verdade, o Santa Rosa está demitido”, avisou. O general confirmou. Jobim disse que Enzo avisasse Santa Rosa de que, naquele momento, iria ao Palácio do Planalto para comunicar sua demissão ao presidente.
Ao entrar no gabinete, encontrou Lula chateado.
– Que negócio é esse desse general? – perguntou Lula.
– Presidente, assina isso aqui, que está tudo resolvido – respondeu Jobim.
– O que é isso?
– A exoneração do general.
– Mas já?
– Não se pode perder tempo com uma coisa dessas. Assina que ele já está indo embora.
No dia seguinte à visita à Base Naval, no Rio, Jobim reuniu-se no Ministério com integrantes da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, presidida por Fernando Collor de Mello. Durante quase uma hora, falou aos senadores, diante de um mapa do Brasil, sobre a estratégia de defesa. Citou, de cabeça, dados referentes a todas as fronteiras, os problemas de cada uma e as operações realizadas. A apresentação foi feita no Centro de Operações Conjuntas, no 5º andar do Ministério, onde as Forças Armadas e as polícias federal e estaduais atuarão de forma conjunta. Dali, é possível controlar em tempo real todas as operações em andamento, as frentes que necessitam de reforço e a localização de todas as Forças.
Apontando para o mapa, Jobim disse que, só na Amazônia, são 1 640 quilômetros de fronteira com a Colômbia, 1 560 com o Peru e 3 400 com a Bolívia. Explicou que, além do aumento do contingente do Exército nessas fronteiras, o Ministério da Defesa começa a usar aeronaves não tripuladas que podem captar imagens de longa distância e repassá-las aos agentes de segurança.
Jobim afirmou aos senadores que o Brasil dará um grande passo na área da defesa nacional com a construção de um satélite geoestacionário. O Brasil não possui um satélite próprio: quando a Embratel foi vendida para a Telmex, o satélite brasileiro passou a ser operado pelos mexicanos. “Nós dependemos da disposição da Embratel em manter o satélite na posição que necessitamos”, disse. “O problema é que, se a empresa resolve mudar a posição do satélite, podemos perder imagens de toda uma região.” Por isso, Jobim faz lobby pela liberação de 700 milhões de dólares do orçamento, para a construção de um satélite que será operado por brasileiros.
“Com um satélite, nossas tropas poderão contatar o centro de controle no meio da selva, através de celulares”, continuou, empolgando-se. Para ele, a comunicação mais rápida entre as forças de segurança permitirá o combate mais eficiente ao tráfico de drogas, contrabando, roubos e crimes ambientais.
Com essas palestras, Jobim pretende mostrar aos parlamentares que a construção do submarino nuclear e a compra de helicópteros e satélite não são para que eles sirvam de brinquedinhos aos militares. Ele avalia que ainda há muita resistência porque a defesa nacional é associada à repressão militar. Seus críticos, sobretudo no PT, alegam que o governo deveria usar as verbas destinadas a equipamentos militares em obras de infraestrutura e no combate à pobreza.
O ministro contra-argumenta dizendo que o Brasil é a oitava economia do mundo e, dentro de poucos anos, deverá ser a quinta. “Precisamos proteger o nosso território da cobiça internacional”, disse. “O Brasil é um dos maiores produtores de proteína animal e vegetal do mundo. Tem uma das maiores reservas de petróleo e de energia renovável, que são as hidrelétricas, além de ter água em abundância. Tudo isso será alvo de cobiça. Essa agora é a nova visão de defesa. Só que há um grande desconhecimento porque a discussão, até há pouco, se restringiu à questão militar.” Ele não trabalha com visão de curto prazo: “É coisa para daqui a quarenta anos. Para nos protegermos no futuro temos que começar a nos preparar desde agora.”
Quando a Estratégia Nacional de Defesa entrou em pauta, Jobim chamou os comandantes militares e, para espanto deles, pediu que organizassem um encontro com oficiais da reserva no Clube Militar, no Rio, onde estão entrincheirados os saudosos da ditadura. O seu assessor parlamentar, coronel José Thomaz Gonçalves de Oliveira, perguntou-lhe: “O senhor vai na reserva raivosa?”
O ministro ficou lá durante quase cinco horas discutindo com os oficiais das três armas. Jobim visitou dois militares que considera referências em questões estratégicas: o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército de José Sarney, e o general Zenildo Lucena, que teve o mesmo cargo no governo de Fernando Henrique. Sua ideia era integrar os militares na discussão de seu projeto.
Jobim fez isso porque no começo de sua gestão houve desconfiança dos militares com a preocupação de um civil com a defesa. Ele usou então o que chamou de “estratagema” para conquistar a simpatia dos fardados. Passou a visitar todos os quartéis e postos de fronteira. Nas viagens, usava uniformes militares, o que acabou resultando numa ação criminal contra ele, já que um civil não pode usar um uniforme de general quatro estrelas com o seu nome bordado. Para Jobim, a estratégia deu certo: “Eu fazia tudo o que tinha que fazer. Subia em caminhão, andava de helicóptero, submarino, visitava os quartéis. Eles diziam que era a primeira vez que um ministro da Defesa se interessava em saber como era a vida deles. Era uma simbologia.”
A estratégia fez a festa dos cartunistas. Mas ele também se divertiu. Numa viagem pela costa carioca, Jobim ligou para o produtor João Araújo, que mora em Ipanema, seu amigo de longa data, para avisar que estava passando em frente à casa dele. “Onde?” Araújo perguntou. “Dentro de um submarino.”
Jobim passou a ir também ao Congresso, para falar com todas as bancadas sobre o assunto. O submarino movido à propulsão nuclear foi a sua primeira vitória. A diferença dele para os submarinos convencionais é a velocidade e capacidade de permanecer mais tempo no fundo do mar. “O Brasil descobriu imensas reservas de petróleo no pré-sal”, disse. “É preciso que o país esteja preparado para defender suas riquezas.” Defender, diz o ministro, não significa atacar. “Mas é preciso capacidade de dissuasão. O mundo precisa saber que temos como reagir.”
Com o projeto do submarino nuclear, o Brasil entra no restrito clube de oito países que detêm essa tecnologia. Boa parte dos equipamentos está sendo produzida no país. As baterias do submarino, por exemplo, estão sendo desenvolvidas pela fábrica de baterias Moura, no agreste pernambucano. “Do agreste para a era nuclear”, brincou Genoíno.
A estratégia de defesa se estende a toda a América do Sul. “O ideal será atuarmos em conjunto para proteger nossas fronteiras”, explicou Jobim. Ele está visitando todos os países para estabelecer uma estratégia conjunta. O primeiro acordo foi feito com a Colômbia, no mês passado.
Quando começou a discutir a estratégia conjunta de defesa com os dirigentes sul-americanos, Jobim recebeu um convite da secretária de Estado americano do governo Bush, Condoleezza Rice, para visitá-la. Ela estava curiosa para saber o que era o plano. No meio da conversa, Condoleezza disse que queria ajudar o Brasil. “A única forma de a senhora ajudar é não se metendo no assunto”, respondeu o ministro. O intérprete ficou constrangido e Jobim pediu que ele repetisse. A secretária riu. O ministro explicou que, no momento, a entrada dos Estados Unidos na discussão provocaria resistências. Mas, no futuro, poderiam conversar.
Condoleezza Rice mostrou interesse em vender equipamentos para o Brasil. “Isso é muito difícil porque vocês não transferem tecnologia”, respondeu-lhe Jobim. E lembrou o caso dos caças Super Tucanos, fabricados pela Embraer, que seriam vendidos à Venezuela, mas cujo negócio foi barrado pelo governo americano. A operação foi inviabilizada porque um dos equipamentos do avião, o GPS, é produzido nos Estados Unidos e o fabricante recusou-se a vender as peças para essa serventia.
Na sua visão, o Brasil não pode ser um simples comprador. “Só negociamos comprar equipamentos com transferência de tecnologia e construção no Brasil”, explicou Jobim. “Não se justifica comprarmos equipamentos no exterior e continuarmos dependentes.” Trinta engenheiros da Marinha estão sendo treinados na França para a construção de helicópteros e submarinos. A previsão é de que o primeiro submarino de propulsão nuclear fique pronto em 2025.
O reaparelhamento das Forças Armadas, que decorre do novo lugar do Brasil no mundo, também implica que o país assuma um novo papel na cena internacional. Tanto que ele defende uma ampliação da presença no Haiti, onde o Brasil chefia a força militar das Nações Unidas. “Não podemos sair de lá de uma hora para outra, temos compromisso com os haitianos e não podemos fugir das nossas responsabilidades internacionais”, ele disse, durante uma conversa no prédio do antigo Ministério do Exército, no Rio.
A despeito das tropas brasileiras estarem em Porto Príncipe como produto de um golpe, perpetrado pelos Estados Unidos e pela França contra um governo constitucional, o do presidente Jean-Bertrand Aristide, Jobim considera que a intervenção brasileira, por se dar sob a égide da ONU, é legítima. E leva em conta que as ações do Exército nas favelas do Haiti serviram de treinamento para a ocupação de favelas no Rio de Janeiro.
O general Leônidas Pires Gonçalves é um homem forte, ereto, de raciocínio rápido, cuja aparência desmente os seus 90 anos. Em seu apartamento, no Leblon, ele contou que sua primeira conversa com Jobim durou mais de duas horas. O general é um entusiasta do programa de defesa. “Nunca houve isso no Brasil”, disse, enquanto a copeira lhe servia uma xícara de café. Embora considere um avanço, ele acha que o Brasil caminha a passos lentos. “A ideia é ótima, só que os recursos são pingados.” E apresentou as contas: os Estados Unidos têm um orçamento anual de 400 bilhões de dólares; a China, de 120 bilhões; e o Brasil, de 11 bilhões de reais. O orçamento deste ano, de 15 bilhões, foi cortado em 4,3 bilhões.
“Como falar em estratégia de defesa quando falta comida no quartel?”, disse o general. Seu rosto ganhou um ar de preocupação. Remexeu-se no sofá e explicou seu ponto de vista: “Não sou maníaco por defesa, mas está claro que, dentro de duas, três décadas, nossos patrimônios estarão expostos”, disse. “Do ponto de vista de orientação e planejamento, estamos bem. É inédito termos um documento tratando de estratégia de defesa. Mas o catastrófico é que não temos recursos para aplicar. Há quantos anos se fala em comprar jatos para a Força Aérea? O submarino ainda levará anos para ficar pronto. Eu sei que o cobertor é curto, mas é preciso ter grandeza e pensar que o Brasil está crescendo e não pode ficar tão vulnerável.”
Numa quinta-feira de julho, Nelson Jobim marcou apenas um compromisso na agenda, na parte da manhã: participar da comemoração dos 80 anos de Fernando Henrique Cardoso, no Senado. De terno escuro e gravata azul-clara, foi o único ministro do governo a participar da cerimônia. Quando o aniversariante chegou, Jobim sentou-se à mesa armada no palco do auditório do Senado, cercado de políticos do PSDB e do DEM. Fez questão de falar e chamou seu discurso de um monólogo para Fernando Henrique. “Fui seu amanuense, ou escrivão, durante a Constituinte”, brincou. “Fui seu ministro da Justiça e indicado por você para o Supremo Tribunal Federal. Se estou aqui hoje, Fernando, é por tua causa.” E encerrou o discurso com uma citação que causou surpresa na mesa e na plateia: “Nelson Rodrigues dizia que, no tempo dele, os idiotas entravam na sala, ficavam quietos num canto ouvindo todo mundo falar e depois iam embora. Mas hoje, Fernando, os idiotas perderam a modéstia.”
Ao fim da cerimônia, à uma da tarde, Jobim foi para o gabinete do senador Fernando Collor, onde ficou por mais de uma hora conversando sobre a questão da liberação dos documentos sigilosos, projeto do qual o ex-presidente discorda. No amplo gabinete de Collor, enquanto o chefe falava com o senador de Alagoas, seus assessores recordavam episódios do tempo de caserna. Seu assessor parlamentar, o coronel Gonçalves, explicava por que, no meio militar, é mais difícil haver corrupção. “O cara que rouba é desprezado pelos outros”, sustentou. E contou o seguinte caso da sua época de cavalaria.
Um tenente “pelagem sete” roubara o dinheiro da compra de cavalos. Ao ser indagado sobre o que era “pelagem sete”, o coronel pediu para que não interrompessem a narrativa. O fato é que o dinheiro desapareceu do quartel. Como estavam todos de folga, à exceção de um soldado raso de plantão, este acabou levando a culpa. “Sabe como é, chamamos o soldado para um diálogo franco e ele confessou o roubo”, disse. Ao ser indagado se o soldado tinha sido torturado, o coronel pediu novamente para não ser interrompido. Ao seu lado, o almirante Mendes disse: “Anos dourados.”
Gonçalves continuou a narrativa. Afirmou que o tal tenente “pelagem sete” apareceu no quartel de Karmann Ghia, relógio importado, pagando jantar para todo mundo. Logo desconfiaram de que fora ele o autor do roubo, e não o soldado. O tenente foi julgado e condenado. Cumprida a pena de prisão de um ano e oito meses, voltou ao quartel. Foi desprezado pelos camaradas, que só o chamavam de “crioulo safado, pelagem sete”. Na cavalaria, as cores dos animais são classificadas por número. O “pelagem sete” é o cavalo negro.
O coronel passou a discutir a questão de liberação do homossexualismo nas Forças Armadas. Perguntado se havia muitos homossexuais na tropa, reagiu: “Peraí, muitos também não.” Disse não ter posição definida sobre o assunto, mas contou que, numa entrevista que deu a um programa de “uma espécie de Ana Maria Braga de Natal”, foi questionado sobre isso. “Eu respondi com uma pergunta: ‘Se a senhora tivesse um filho louro, alto, de olho azul, gostaria que ele fosse comandado por um gay? Pense bem, no quartel é tudo aberto. Os banheiros não têm porta. Lá, ninguém tem medo de abaixar para pegar o sabonete. Mas, e se for liberado?’” A apresentadora, disse ele, acabou concordando com sua tese de que um comandante gay poderia acabar causando constrangimento ao resto da tropa.
Jobim deixou a sala de Collor e foi para o Ministério, onde almoçou rapidamente. Enquanto comia uma salada, comentou a discussão da liberação de documentos sigilosos do Estado. “É muita trapalhada, a Ideli é muito fraquinha e Gleisi nem sequer conhece Brasília”, falou, referindo-se à ministra das Relações Institucionais e à da Casa Civil.
Disse que o Collor não criaria empecilhos, mas que estava chateado porque, enquanto ele discutia o projeto, foi atropelado por um pedido de urgência na votação, feito pelo senador Romero Jucá, da base governista. “Ele se sentiu desrespeitado, não havia razão para o pedido de urgência”, afirmou Jobim. Na conversa, Collor lhe contou que faria um discurso contra o projeto e Jobim lhe pediu que não o fizesse, no que foi atendido. “Eu disse a ele que havia muito espaço para negociação e que, se ele fizesse o discurso atacando o governo, estreitaria essa possibilidade.” Perguntado sobre por que havia tantas idas e vindas no governo na relação com o Congresso, Jobim não teve dúvidas: “Falta um Genoíno para ir lá negociar.”
José Genoíno se candidatou a deputado, não se elegeu e, no começo do ano, Jobim o chamou para ser seu assessor. Antes de convidá-lo, porém, informou a presidenta da sua intenção. “Mas será que ele pode ser útil?”, perguntou-lhe Dilma. E ele respondeu: “Presidenta, quem sabe se ele pode ou não ser útil sou eu.”
Jobim acha que há uma resistência muito grande ao ex-deputado no Palácio. Ele é um de seus melhores amigos. Conheceram-se durante a Constituinte e, embora militassem em partidos diferentes, sempre se respeitaram. “O Genoíno é muito competente, sabe tudo de legislação e de Congresso”, disse. O ex-deputado trabalha numa sala ao lado do gabinete de Jobim e participa de todos os assuntos do Ministério. “O tema defesa me atrai”, disse ele, que foi guerrilheiro no Araguaia e hoje cultiva uma relação de camaradagem com os militares. “Não podemos olhar a história somente pelo retrovisor. Temos que dirigir olhando também para a frente. Não dá para pensar em revanchismo.”
O projeto de lei de acesso à informação pública foi encaminhado ao Congresso ainda durante o governo Lula, que classificou os documentos entre reservados, secretos e ultrassecretos, que poderiam permanecer nos arquivos até um século. Houve reações de desagrado de todos os lados. A esquerda achava que os documentos referentes aos crimes da ditadura seriam colocados no rol dos ultrassecretos. O Itamaraty temia que questões relativas a fronteiras pudessem causar mal-estar nos vizinhos.
“Parte do PT e da oposição fez um escarcéu, dizendo que o projeto proibia a abertura de documentos sigilosos da época da ditadura”, disse Genoíno. “Mas isso não existe.” Pegou um documento todo marcado, que entregara dois dias antes ao ministro, e leu o seguinte trecho: “Todas as informações e documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticados por agentes públicos não poderão ser objeto de restrição ao acesso.” Esse artigo foi colocado pela presidenta. Ou seja, não haverá sigilo nesses assuntos. As restrições se limitam a questões de fronteiras, como a Guerra do Paraguai, e à vida privada e à honra, que tem uma limitação de 100 anos. Os documentos referentes a questões estratégicas, como tecnologia sensível, centrífugas, enriquecimento de urânio e programa espacial, nem sequer constavam ali. “Muitos senadores estão criando caso por causa dessas questões que nem foram incluídas no projeto”, disse.
O que ficou acertado é que todos os documentos secretos ficarão fechados por 25 anos, e os ultrassecretos por cinquenta anos. Os documentos que se referem à vida privada e honra, por 100 anos. Será escolhida uma comissão com integrantes de vários ministérios para fazer a seleção dos documentos. Documentos referentes a direitos humanos não terão restrição de acesso. Aqueles referentes à tecnologia sensível ficaram de fora. Portanto, não serão divulgados.
Às oito da noite, Jobim ainda estava no gabinete, acompanhado de Genoíno. Preparava-se para ir a uma festa na embaixada americana. Pouco antes, a presidenta o convocara para uma reunião no dia seguinte, no Palácio, para tratar da Lei do Sigilo. Perguntei-lhe a quem ele se referira, pela manhã, quando falou dos “idiotas soberbos”, no discurso em homenagem a Fernando Henrique. Respondeu que não se dirigira a ninguém em particular. Mas contou que, quando era juiz do Supremo, ao defender um dos seus pares, o ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, dos ataques da imprensa, citou a mesma frase, referindo-se à jornalista Dora Kramer, d’O Estado de S. Paulo. Nunca mais se falaram. “Eu não me dou com ela e ela não se dá comigo”, disse.
Depois, no entanto, afirmou que o recado da manhã era para os que faziam intriga através da imprensa. “Os que não escrevem para a posteridade.” Jobim diz não se importar com os ataques que lhe fazem: “O José Paulo Pertence costumava dizer que eu tenho coragem de gaúcho e couraça de jacaré. Tenho mesmo.”
Quando era presidente do Supremo, petistas o acusavam de ser o líder do governo no STF. “Aqueles advogados petistas, o Fábio Konder, o Celso Bandeira de Mello, viviam me atacando e os jornalistas eram os idiotas que vocalizam essas pessoas”, afirmou. “Depois, no governo Lula, a oposição dizia que eu era o líder do PT no Supremo. Eu achava graça, porque continuei decidindo do mesmo jeito de sempre.” Chegou a recortar todas as charges contra ele, enquadrá-las e colocá-las na entrada do seu gabinete no Tribunal. “Teve uma caricatura minha que saiu na revista Bundas”, contou. “Foi quando fui eleito o bundão do mês. Aquela eu adorei, ficou muito bonita.”
Aos 14 anos, Jobim já media 1,90 metro, mas não se dava conta de sua força. “Eu tinha a síndrome do cachorro pequeno”, contou. “Brincava com meus amigos achando que era do tamanho deles.” Descobriu sua força quando brigou, num jogo de futebol, com um garoto que o chutara. “Joguei o guri no chão e bati a cabeça dele na pedra.” Foi contido pelos amigos. “Não aconteceu nada com ele, mas me dei conta de que tinha perdido o controle”, contou. “Fiquei com medo de mim.”
Ainda menino, ele tinha obsessão pela pontualidade. Se precisasse pegar um trem, digamos, às onze da manhã, fazia questão de chegar à estação uma hora antes. Sua mãe o deixava lá, voltava para casa, e depois retornava à estação para embarcá-lo. (Sigmund Freud, que tinha a mesma obsessão, autoanalisou-se e concluiu que a angústia pela pontualidade era sintoma de uma neurose primária: medo de morrer.)
O dia 31 de março de 1964 o pegou no 1º ano da faculdade de direito. Sua família, do PSD, apoiou o golpe. Não participou da contestação de 1968 e não fez política na universidade. No início dos anos 70, seu pai foi eleito presidente da Arena, o partido da ditadura, em Santa Maria. Formado, concorreu a uma vaga na direção da seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil. Só nos anos 80 entrou na política para valer, sendo eleito deputado pelo PMDB.
Na Constituinte, ficou amigo de José Serra, com quem foi morar quando seu casamento acabou. Serra tem inveja de Jobim. “Ele dorme em qualquer lugar, de qualquer jeito, chega a dormir quinze minutos dentro de um táxi”, disse o ex-governador paulista. “Para um insone como eu, chega a ser irritante.” Quando moraram juntos, dificilmente se encontravam: Serra chegava em casa depois da meia-noite e o amigo dormia; quando acordava, Jobim já saíra.
“O Jobim deu uma cara ao Ministério da Defesa, e vem fazendo um excelente trabalho”, disse Serra. Ele acha que o ministro tem uma característica não muito disseminada entre os políticos de todos os partidos: “Ele estuda. Quando deve se posicionar sobre um assunto, pode ter certeza de que o estudou a fundo.” Certa vez, ele pediu a Serra que lhe preparasse uma bibliografia de livros de economia, para que pudesse dominar a questão. O tucano lhe passou uma lista com dezenas de livros, “e ele leu todos”.
Mesmo no governo Lula, Jobim jamais se afastou de José Serra. Numa viagem a São Paulo, para visitar o amigo, Jobim sentiu uma pontada na mama durante o voo. Na casa de Serra, o ministro falou sobre a dor. Serra logo pediu que o ginecologista José Pinotti, que estava com eles, o examinasse. Tanto Serra insistiu que Jobim concordou. Pinotti examinou-o, achou que havia algo errado e falou para ele ir ao seu consultório na segunda-feira. Do consultório, foi direto para o hospital, diagnosticado com câncer de mama. Retirou as duas.
Na campanha presidencial, o ministro Alexandre Padilha sugeriu, numa reunião no gabinete de Lula, que todos os ministros gravassem um programa em apoio a Dilma Rousseff. Jobim pediu a palavra. “Presidente, o senhor sabe que sou muito amigo do Serra”, disse. “Ele foi meu padrinho de casamento. Por razões pessoais inamovíveis, eu não posso fazer campanha senão para o Serra. No entanto, por razões institucionais removíveis, não posso fazer campanha para o Serra: sou ministro do seu governo. A primeira é inamovível, a segunda está em suas mãos.” Jobim riu ao lembrar o episódio. Lula lhe disse: “Nelson, esquece isso. Padilha, não mete o Nelson na campanha porque ele adora o Serra, e eu não entendo o porquê.” Jobim tornou público, no mês passado, numa entrevista a Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, que votou no tucano na última eleição presidencial.
Foi Serra quem apresentou Jobim a Adrienne, quando ela era procuradora da República. Depois, ela foi chefe do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, e veio a trabalhar um ano nas Nações Unidas, em Nova York. Quando foi chamada a efetivar-se no cargo, declinou do convite com uma resposta que surpreendeu os chefes: “Eu vou voltar para o Brasil porque emprego a gente arruma fácil. Marido não. E eu vou cuidar do meu.”
Ela tem personalidade forte. Adrienne é quem decide tudo na vida do casal: do restaurante a viagens de férias e programas de fim de semana. O casal costuma passar temporadas na casa de João Araújo, em Angra. “A relação é muito harmoniosa”, disse o produtor. Jobim tem outra visão: “Ela manda, e eu obedeço.”
Jobim é um hedonista: adora comer e beber bem. “Se deixar, ele devora tudo”, diz Araújo. O ministro também gosta de conforto e de se hospedar em hotéis caros. Na França, já ficou no Plaza Athenée, com Adrienne e um casal de amigos, o empresário Joel Barcelos, ex-dono da Brasif, e a mulher. A serviço, costuma ficar em hotéis de trânsito listados pelo Exército.
Jobim se define como um político de centro-esquerda. “Nunca fui marxista”, disse. Ele foi influenciado por Max Weber, Harold Laski e pelo trabalhismo inglês. Entre as figuras históricas, tem grande admiração por Charles de Gaulle. “Ele tinha uma visão histórica, uma concepção de nação, e manteve a França independente do poderio americano”, disse. Adora ler, principalmente literatura inglesa, e, durante anos, fez um curso de filosofia, em Brasília, com amigos do Supremo. Apesar da formação jurídica, tem gosto pela matemática e pela lógica. É comum fazer anotações usando uma linguagem simbólica decalcada dos Principia Mathematica, de Bertrand Russell.
Há alguns meses, Jobim voltou a se envolver com política partidária, da qual havia se afastado desde que deixou o Congresso. Mas, filiado ao PMDB desde sua fundação, ele nunca o abandonou. O primeiro contato com parlamentares do partido se deu há dois meses. O deputado Osmar Terra, do Rio Grande do Sul, lhe telefonou pedindo que participasse de uma reunião com alguns integrantes do PMDB descontentes com os rumos do partido. Ele lhes disse que não poderiam deixá-lo nas mãos dos fisiologistas. “Cargos fazem parte do processo político, mas são decorrência de temas específicos”, afirmou. “E qual a posição do PMDB em relação à saúde, à agricultura, à energia? Ninguém sabe.”
Quanto a Jobim, ele pretende continuar no cargo de ministro da Defesa – a despeito das avaliações de colunistas de que, com o elogio a Fernando Henrique e a admissão do voto em José Serra, estaria forçando a sua saída do governo. Mas não quer continuar ministro para ajudar o PMDB. Seus motivos nem sequer são políticos. “A única razão que me faz ficar no Ministério é porque me dá prazer”, disse. “Se deixar de ser prazeroso, eu saio.”
Leia Mais