"Vamos tomar um uísque lá na mesa do Zózimo" era um convite que se ouvia em várias partes da redação quando a edição de sábado já estava fechada e todos ─ em busca de um energético ─ se preparavam para adiantar a de domingo FOTO: JOËLLE ROUCHOU
Parque de diversões
O Jornal do Brasil nos tempos do colunista Zózimo Barrozo do Amaral
Joaquim Ferreira dos Santos | Edição 121, Outubro 2016
Ninguém sabe o autor da frase, mas, apesar do conteúdo chulo, ela apresentava boa elaboração redacional e só pode ter sido criada por um jornalista. Tinha objetividade, uma urgência no pedido da informação. A frase circulava com desenvoltura pela redação do Jornal do Brasil e de tanto ser usada já não queria dizer exatamente o que lhe era explícito no texto. Era um cumprimento entre os da classe. Tinha se transformado numa saudação mais brincalhona do que sacana. Um de seus usuários empolgados era o colunista social Zózimo Barrozo do Amaral. Ele chegava a uma roda e, como se quisesse dar o tom para a conversa, que em seguida só poderia ser eivada de brincadeiras, repetia o bordão que era comum a seus companheiros de redação: “Come-se alguém por seu intermédio?” Um dia, ao cumprimentar um contínuo com o bordão, ouviu dele a sincera afirmativa: “A minha irmã.” Era sério. A moça, informou o rapaz, fazia programas pagos.
A redação carioca do JB, na avenida Brasil, 500, era um imenso salão de cerca de 300 metros de comprimento. Foi a última redação romântica, do tipo em que, num trote clássico, mandava-se o estagiário descer à oficina para pegar a calandra (um cilindro pesadíssimo, que, naturalmente, não era para ser pego). A repórter Norma Couri está entre suas delicadas e derradeiras “vítimas”. De vez em quando estourava uma guerra de bolinhas feita com laudas – as folhas de papel barato, de trinta linhas e 72 toques cada uma, onde se escreviam os textos, batidos à máquina. Elas vinham com espaço no alto para as marcações dos diagramadores, seres munidos de borrachas, lápis e réguas, arma que eles usavam para medir ou, batendo com força na mesa, quebrar a concentração de quem escrevia. O clima era de gandaia criativa e compreensão sobre o que fosse a função do jornalismo. Quando o secretário de Segurança tentou impedir que o repórter Romildo Guerrante cobrisse a área de trânsito no Rio de Janeiro, Carlos Lemos, chefe da reportagem, disse a Guerrante que continuasse suas funções e desconhecesse as ameaças: “Quando o secretário de Segurança mandar aqui, pego meu chapéu.”
Havia heroísmo e sensação de que se cumpria missão de cidadania num clima de camaradagem. Nos anos 80, por exemplo, o repórter Luarlindo Ernesto passou uma temporada dormindo ali porque estava brigado com a mulher. Gozava-se algum companheiro dizendo ser ele “um notório atrasador de jornal”. As máquinas de escrever eram de teclas escuras. Por causa delas evitava-se a expressão “escrever”. Muito pedante. Falava-se “machucar as pretinhas”. Os textos eram produzidos com cópias em carbono: uma folha ia para o editor, a outra ficava com o repórter. Os telefones das fontes eram anotados num fichário coletivo consultado o tempo todo por todos, o “Seboso”, tão merecedor do nome que um dia amanheceu com um aviso zombeteiro: “Interditado pela Saúde Pública.”
De um lado do prédio havia os galpões, os contêineres e os guindastes do cais do porto do Rio. De outro, a avenida Brasil. Era longe de tudo. O único vizinho era o cemitério do Caju – e houve quem achasse um mau prenúncio. Quando o jornal transferiu-se da avenida Rio Branco para aquele endereço, em julho de 1973, os repórteres precisavam caminhar pelo menos 500 metros para comer alguma coisa nos cafundós de São Cristóvão. Os restaurantes do prédio, o “PTB”, mais popular, e o “UDN”, mais caro, para editores, tinham comida repetitiva. Mas tudo valia a pena, porque a redação monumental tornara-se a mais bonita do país. O prédio era um escândalo de modernidade arquitetônica: heliporto no cocoruto, mármores no saguão da entrada – e gastos.
O proprietário do jornal, Manoel Francisco do Nascimento Brito, apostava que a cidade se desenvolveria por ali, só que a expansão seguiu pela Barra da Tijuca. Pouca gente foi na direção daquele fim de mundo, depois da Rodoviária Novo Rio, um início do sertão carioca. O prédio do JB foi projetado com a mesma megalomania que os Bloch, os Civita e os Mesquita estavam tendo na construção da sede de suas empresas e seria o início das dificuldades financeiras futuras de todos esses grupos. O JB era ocupado pelo crème de la crème do jornalismo. Alberto Dines tinha dado um ar sofisticado ao grupo, escolhendo jornalistas com tendências literárias que falassem línguas e prezassem os bons modos. O projeto de todos era ser culto. O responsável pela página de turfe, Marcos Ribas de Faria, produzia também críticas de teatro. Contudo, para o leitor não ficar confuso, assinava a primeira com um nome de cavalo: Escorial, sensação do turfe nos anos 50 e 60. Junto com Zózimo, Escorial disputava o apreço pelo uso e abuso da expressão ça va sans dire (desnecessário dizer), sendo talvez a única coluna de turfe do mundo, fora da França, que a usasse. Sobravam luxo e mão de obra: a editoria de Turfe tinha um repórter, Oscar Griffiths, encarregado apenas da cronometragem dos treinos dos cavalos pela manhã.
Quando era estudante de jornalismo, a repórter Joëlle Rouchou recortava as críticas publicadas pelo Conselho de Cinema – guia cinematográfico do JB – e se emocionou ao realizar o sonho, de toda a sua geração, de trabalhar com os ídolos no Caderno B, o suplemento de cultura do jornal. E lá estava ela conversando, metade em francês, metade em português, com Zózimo e seu assistente, Fred Suter. Muito papo furado bilíngue depois, um dos dois olhava o relógio e dava o toque de recolher: “Allons’ambór”, dizia, querendo significar o carioquíssimo “vam’bó”, com o “embora” pronunciado com sotaque francês.
Uma das frases preferidas de Zózimo para falar do ambiente de trabalho era “ganha-se pouco, mas é divertido”. O ascensorista do elevador dos fundos, um senhor negro celebrizado pela alcunha de “Vovô”, parava no andar da redação e informava com voz grave: “Sexto andar, área de lazer.” Às vezes, trocava o anúncio para “parque de diversões”. Em que outro ambiente de trabalho, a não ser na redação do JB dos anos 70, um funcionário poderia telefonar para o superior hierárquico e justificar sua ausência nos seguintes termos: “Hoje eu não vou porque estou me sentindo muito bem”? A frase foi dita certa vez pelo redator Joaquim Campelo, no que foi imediatamente liberado de qualquer prática funcional.
O editor de Economia Silvio Ferraz recebia no Natal cestas com bacalhau, lata de azeite, castanha e todo aquele presépio comestível que acompanha a data. Cumpria o ritual de sempre: distribuía os produtos entre o pessoal da editoria, porém subvertendo a hierarquia profissional. O contínuo ganhava o produto mais caro da cesta. Ao final, Silvio ligava para o empresário Abilio Diniz, responsável pelo mimo, agradecia e pedia que ele ouvisse a alegria da redação – e todos, repórteres, redatores, contínuos e ele próprio, o editor, gritavam em uníssono um “Feliz Natal”.
Chamava-se a isso de salário ambiente – a capacidade de empresa e funcionários transformarem o espaço de trabalho em algo agradável que não deixasse de ser produtivo. O JB, independentemente de crises financeiras, atravessou o final do século XX como referência de jornalismo moderno. Era uma academia da profissão: Elio Gaspari, Walter Fontoura, Carlos Castello Branco, Armando Strozenberg, Zuenir Ventura, Carlos Lemos, Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa – e repórteres dotados de faro animalesco: Oldemário Touguinhó, Carlos Rangel, Tato Taborda, Dacio Malta, Tarcisio Holanda, Sérgio Fleury, Macedo Miranda, Norma Couri, Tim Lopes. Uma química exata de charme e inteligência que poucas vezes se repetiria em outras redações. Vestia-se a camiseta da organização, e com muito gosto as lindas recepcionistas do andar térreo, em uniformes parecidos com os das aeromoças de voos internacionais, levantavam-se quando adentrava o recinto, de pé-direito monumental, o imperador do reino, Maneco Primeiro e Único. Seus passos ecoavam no imenso espaço. Manoel Francisco do Nascimento Brito se dirigia ao elevador, já reservado para que seu uso fosse exclusivo, sem o compartilhamento de funcionários. Havia pompa. O orgulho de trabalhar ali matava de inveja os coleguinhas do Globo, que costumavam tropeçar em Roberto Marinho no elevador e nem sempre se lembravam de pedir desculpas àquele quase igual, que não à toa era citado nas matérias como “nosso companheiro diretor-redator-chefe”.
A repórter Bety Orsini, do Caderno B, recebeu uma proposta para duplicar o salário e assinar uma coluna em outro jornal. Agradeceu. Disse que a proposta para a transferência era boa, obrigada, mas no JB tinha sempre alguém na mesa ao lado chegando de Paris ou de Viena, quando não era ela própria quem estava com o pé no jato, e isso não tinha preço. Ficou onde estava. Não era pelo dinheiro, e sim pelo savoir-vivre. E a alegria vinha de um acontecimento natural, sem qualquer engendramento operado pelo RH, e não significava relaxamento com o trabalho. Ninguém falava em reengenharia, sinergia ou outro palavrão inventado no Departamento de Pessoal e que no futuro as redações aceitariam como parte da manufatura do jornalismo – e o ambiente, ao contrário, ficaria careta, hospitalar, com cara de escritório chato.
O nordestino Alberto Ferreira, chefe da editoria de Fotografia, já era um ícone do jornalismo, entre outros motivos por ter sido o autor da foto-síntese de Pelé, aquela em que o jogador, com o corpo na horizontal, como se deitado no ar, a perna direita levantada, fazendo ângulo de 90 graus, dá uma bicicleta. Ferreira dedicava o sucesso na profissão ao apoio dos seus santos da umbanda. O laboratório que comandava era lavado às sextas-feiras com sal grosso e atrás da porta havia um despacho com espadas-de-são-jorge, moedas e guias ao Senhor do Bonfim. Na Olimpíada de Moscou, em 1980, quando os sistemas para a transmissão de fotos insistiram em se manter inoperantes, Ferreira não vacilou. Diante dos repórteres que o acompanhavam na missão, cantou hinos de macumba e se pôs nu diante do aparelho, fazendo passos de uma coreografia que, julgava, liberaria o sinal de transmissão. Infelizmente não liberou.
Esse grande fotógrafo intuitivo também era baloeiro e esticava no chão do laboratório os enormes balões juninos que ajudava a confeccionar e eram proibidos pela polícia. Ferreira misturava-se a mitos intelectuais do JB, entre eles o do copidesque. O dramaturgo Nelson Rodrigues dizia que o romancista Marcel Proust, se trabalhasse ali, seria reescrito impiedosamente pela equipe de copidesques, um escrete de homens dedicados a impor na imprensa nacional um texto de qualidade. Eram nomes como Eduardo Coutinho (o futuro documentarista), Cícero Sandroni (o futuro imortal da Academia Brasileira de Letras), Fernando Gabeira (o futuro sequestrador do embaixador americano Charles Elbrick, best-seller com suas memórias dos tempos de guerrilheiro), João Máximo (o futuro biógrafo de Noel Rosa), Mário Pontes e Marcos Santarrita (ambos futuras referências da crítica literária) e o já citado Joaquim Campelo (futuro braço direito de Aurélio Buarque de Holanda na confecção do seu dicionário). Um dia, a propósito, Campelo conversava com Silvio Ferraz numa esquina da redação quando passou o editor do Informe JB, Elio Gaspari. “Cuidado, Silvio, cuidado”, disse Gaspari, evidentemente brincando. “Mas por quê, Elio?” “Vá ver o que o dicionário desse senhor escreveu sobre a palavra ‘foda’. Diz que é coisa ruim.”
Campelo, entre outros verbetes do Aurélio, escreveu também o da palavra “passaralho”. Não havia alguém mais autorizado. Ele era o autor da palavra. Criou-a durante uma bebedeira com o colega Jorge Cabral, num bar do Flamengo. Os dois conversavam sobre as demissões que, em 1973, sucederam-se à saída de Alberto Dines. No voo livre das ideias, os dois juntaram pássaro com você-sabe-o-quê e deu-se o sinônimo para demissões em massa. Outra palavra inventada por Campelo foi “pré-estreia”, a partir de avant-première. Era o tempo em que os jornalistas brincavam com as palavras.
As repórteres do Caderno B eram lindas e da boa classe média da Zona Sul carioca. Formavam-se na PUC ou na UFRJ, vestiam-se em butiques modernas como a Aniki Bobó, a Frágil, a Bee, a Krishna, todas de Ipanema. Se a “estagiária de calcanhar sujo”, personagem de Nelson Rodrigues, existiu de fato, não trabalhou no B. As dali eram todas deliciosamente asseadas, o bronzeado, a pedicure e tudo o mais em dia. Ditavam moda, despertando uma invejazinha nem sempre branca entre as colegas da reportagem geral. A vitrine do B, com sua capa dedicada a uma matéria de mais fôlego, era um altar cult e consagrava a cada edição os nomes de suas autoras: Cleusa Maria, Susana Schild, Maria Lucia Rangel, Lena Frias, Patricia Mayer, Mara Caballero, Norma Couri, Emília Silveira, Diana Aragão e Deborah Dumar. Era a primeira safra que surgia nas redações desde que os livros do filósofo canadense Marshall McLuhan tinham inventado os estudos modernos das comunicações e transformado os jornalistas em astros do pop. Foi a época em que a profissão passou a ser ocupação a que só os formados em escolas de jornalismo tinham direito.
A invasão feminina foi importante para tornar mais delicada ainda a leveza do ar e notabilizar aquela redação como marco de funcionalismo descontraído. No início da década de 70, a apenas 400 quilômetros de distância, Julio de Mesquita Neto viu uma mulher na redação de O Estado de S. Paulo. Era Adélia Borges. Ele perguntou ao editor Fernando Pedreira o que ela fazia. Quando soube que era repórter mandou afastá-la. “Reportagem não é para mulheres.” O Rio, além de Albeniza Garcia e Marisa Raja Gabaglia, no Globo, já tinha tido pelo menos duas repórteres célebres, ambas no JB, entre os anos 50 e 60: Ana Arruda e Silvia Donato.
Aos poucos, a mulher conquistava espaço em meio a um trabalho antes tão masculino – mas não sem problemas. Uma recepcionista, no final dos anos 70, teve os seios apalpados pelo editor da revista Domingo, Isaac Piltcher. Ele ficaria conhecido como “O Amigo do Peito” – entretanto, apesar dos protestos (houve passeata na avenida Rio Branco), a história levou à demissão da moça. De resto, a mistura desses personagens – mulheres modernas, jornalistas intelectualizados e a turma de boêmios da antiga – fez com que o folclore deixado na memória de todos fosse menos de decepções que alegrias. Era um estilo de trabalho que se despedia.
Lutero Soares, o chefe de reportagem, colocou uma boa verba nas mãos do repórter Carlos Rangel para que ele fosse descendo o Nordeste em direção à redação e mandasse reportagens sobre a seca terrível que afligia a região. Quinze dias depois, sem nenhuma notícia, o telefone tocou na redação e, do interior da Bahia, o gerente de um hotel perguntou se trabalhava na casa o repórter Carlos Rangel. Diante da confirmação, ele cumpriu o doloroso dever de comunicar que o rapaz jazia inapelavelmente morto num dos quartos. Romildo Guerrante, o repórter que recebia a ligação, tapou o bocal, gritou para a redação, “Gente, o Rangel morreu”, e enquanto era cercado de curiosos continuou a conversa, para saber onde era a cidade, como se faria o traslado do corpo e demais burocracias fúnebres. Foi quando o gerente cortou o que dizia e avisou: “Desculpe, mas a médica acabou de chegar do quarto e disse que o rapaz tá vivo. Os lábios roxos, vômito em toda a cama, palidez cadavérica e batimento cardíaco só escutável com aparelho, mas tá vivo, graças a Deus.” Rangel estava apenas fulminantemente bêbado. No dia seguinte, quando, recuperado, ligou para Soares, recebeu a ordem de voltar imediatamente. Tinha bebido a verba da reportagem, porém nada lhe foi cobrado.
A equipe de repórteres era de primeira linha, o que não servia de impedimento a brincadeiras que se despediam, com os dias contados pela necessidade de se enquadrar a redação ao comportamento burocrático dos outros andares. O repórter-médico Fritz Utzeri e Sérgio Fleury, craque em descobrir personagens anônimos pelas ruas da cidade, fizeram uma brincadeira com o colega João Batista de Freitas, especialista em meio ambiente. Já que ele gostava tanto da natureza, colocaram meio quilo de camarão em sua gaveta, justamente naquela em que Freitas guardava a gravata. Quando ele, pautado para uma entrevista mais formal, foi pegar a gravata, viu o embrulho malcheiroso. Viu também, pelo canto do olho, ao fundo da redação, os colegas prontos para a gargalhada. Com naturalidade, pegou a gravata, deu o nó e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, enfiou embaixo do braço o pacote que já fedia muito e o levou para a rua. Ao chegar lá fora jogou tudo no lixo e comprou uma gravata nova, mas tirou dos amigos metade do prazer da brincadeira.
Esses personagens, mitos do jornalismo, criavam para a edição do dia seguinte clássicos que seriam discutidos nas universidades. Empilhavam estatuetas do Prêmio Esso, o principal da época, e se ofereciam graciosamente como cases da profissão. Tocavam o barco nos bastidores do mesmo jeito alegre, carioca, que desde os anos 60 Dines gostaria de ver refletido nas páginas do jornal. O pauteiro José Gonçalves Fontes, que exercia a função com uma caneta esferográfica atrás da orelha, caiu na asneira de confessar o diagnóstico que acabara de receber do otorrino. Estava perdendo a audição. No dia seguinte, os repórteres falavam com ele mexendo os lábios, só que sem emitir som – para dar no infeliz a ideia de que, sim, estava inteiramente surdo.
À esquerda, no fundo da redação, negociando com o pessoal da Esportes, o contrabandista “My Friend” vendia o uísque que a turma bebia em todas as editorias, discretamente, a partir das sete da noite de sexta-feira, quando se iniciava o chamado “pescoção” (o fechamento adiantado da edição de domingo e de parte da de segunda-feira, que ia pela madrugada adentro). Zózimo adotara a prática desde que chegara ao jornal. Bebia o seu santo uísque dentro de um copinho plástico de café. Não comprava de My Friend – recebia as garrafas das fontes de informação. “Vamos tomar alguma coisa lá no Zózimo” era um convite que se ouvia em várias partes da redação quando a edição de sábado já estava fechada e todos – em busca de um energético – partiam para o pescoção.
A cena acabaria num romance de Ivanir Yazbeck, o diagramador que também escrevia. Em seu livro A Noite em que Jane Russell Morreu, ele está tratando de seu protagonista apelidado “No Name”:
No Name havia acabado de chegar e se preparava para a rotina, de modo que dispôs de uns dez minutos para servir de cicerone à sobrinha, me apresentando aqui e ali aos colegas de redação […].
Alguns eu conhecia de nome, como Zózimo Barrozo do Amaral, o famoso colunista, que ocupava uma sala reservada a ele e à secretária.
No Name pediu licença a Zózimo, que interrompeu o texto de uma nota para nos receber de modo simpático. Os dois combinaram uma dosezinha de uísque, após o fechamento da coluna, ali mesmo no reduto de Zózimo. Era um hábito das sextas-feiras: uns mais chegados ao colunista ali compareciam para a comemoração alcoólica pelo encerramento da semana: um uísque servido em copinhos e sorvido à caubói. Mais à frente, José Carlos Oliveira, o famoso Carlinhos, que eu amava pelas crônicas…
Era uma redação de personagens históricos, alguns exóticos. Mais adiante, agora de volta à vida real, quem cumprimenta todos é o assessor de imprensa Armando dos Santos, acima dos 50 anos, responsável na ditadura pela imagem do ministro dos Transportes, Mário Andreazza. Santos não dava notícias, o que deveria ser sua função. Dizia apenas aos repórteres: “O menino está muito satisfeito com o seu trabalho” – e todos já sabiam que “menino” era Andreazza e que tudo não passava de arrematada mentira, pois a maioria jamais estivera com o ministro. Parecia um esquete com bordão dos programas populares de humor na tevê.
Armando Nogueira já era um cronista importante de esportes, dono de um modo poético de exaltar a bola como se fosse a mulher amada, aquela a ser acarinhada com delicadeza e fantasia para dentro da cama, ou melhor, para dentro da rede, e não com o pé rude dos chutões. Sua jornada de trabalho começava às seis da manhã, ao lado do jovem Antonio Augusto Dunshee de Abranches, sobrinho da condessa Pereira Carneiro, quando assumia o cargo de pauteiro, o homem que decidia os assuntos a serem cobertos pelos repórteres naquele dia. Nogueira cunhou uma frase célebre do seu duro e madrugador ofício. “Não leva a vida na flauta quem vive de fazer a pauta”, dizia. Para as estagiárias, Nogueira batia uma pauta falsa: “Saber dos planos do novo diretor do Zoológico, o doutor Leão.”
Tempos depois, uma pauta dessas, nas mãos de uma repórter esperta e de um advogado de porta de cadeia, poderia servir aos autos como prova de assédio. Era o tempo em que um repórter ficava ao telefone fazendo a ronda das delegacias e outro, a ronda dos cemitérios. Na editoria de Política, a única função de Paulo Vidal, ex-militar, era decifrar o Almanaque do Exército e ajudar os repórteres a falar com generais.
A redação do JB, sob a regência de Dines até 1973, e depois, até 1982, liderada por Walter Fontoura, era um divertido ninho de cobras. Raul Ryff, Apicius, Villas-Bôas Corrêa, Carlos Leonam, Wilson Figueiredo, Araújo Netto, Sandro Moreyra, João Saldanha, o fotógrafo Evandro Teixeira… Toda essa gente parava o que estivesse fazendo quando passava, de três em três horas, o carrinho do café. Empurrado por uma funcionária, ele parava na editoria de Economia e todos largavam seus lides, suas pirâmides invertidas e outras técnicas redacionais para, esperando a vez, conversando, adiar por muitas décadas, no estilo JB, o aportuguesamento da palavra stress.
Zózimo estava sempre por ali. Usava suas relações para ajudar os colegas, e foi assim que encaminhou a repórter Emília Silveira para uma cirurgia plástica com Ivo Pitanguy, da mesma forma que outros conseguiram empréstimos com o Banco Nacional de Minas Gerais. Sempre rindo, era citado como um dos personagens mais típicos do bom astral da redação.
A repórter Susana Schild já o encontrara esquiando em Courchevel, nos Alpes franceses, e tinha a impressão de que Zózimo deslizava na neve com a mesma felicidade com que se movia em torno do carrinho de café. Num coffee break no meio da redação, ouviu os primeiros sinais de uma nota. Ele estava impressionado com uma quadrilha de japoneses que assaltava em São Paulo – e para gargalhadas de Schild, começou a citar os nomes que sua imaginação supunha serem os dos quadrilheiros e só no dia seguinte provocariam o mesmo efeito, de riso frouxo, nos leitores: “Saltaro Banko, Mataro Kaixa, Kontiro Nakara, Kataro Nique e Fujiro Nakombi.”
Subia quem quisesse ao parque de diversões do 6º andar, porque até o final dos anos 70 não havia seguranças na portaria dos fundos do prédio fazendo uma triagem dos visitantes. Os artistas, ainda sem assessores de imprensa, iam pessoalmente às redações. Nunca houve algo tão sensacional como na redação do Globo, onde a atriz Kryka Ohana ficou nua para protestar contra a não divulgação de seu show, mas havia um festival de tipos regular. O cantor Daminhão Experiença, de tranças rastafáris, sentou-se uma vez no chão do Caderno B e apresentou todas as músicas do seu LP alternativo, com letras na ininteligível língua praticada no planeta Lamma, de onde ele dizia ter vindo. Ganhava-se pouco, só que Zózimo tinha razão. Divertidíssimo. No mesmo momento passava ao lado de Experiença, de batina e cachecol, mesmo no verão, dom Marcos Barbosa, autor de artigos religiosos e ultraconservadores publicados na página de “Opinião”. Simulando ainda mais seriedade, o padre viu Experiença com seus enormes cabelos e vestido em andrajos. Deu uma breve parada e fez o sinal da cruz em direção à cena, como se a benzesse e imortalizasse.
De dom Marcos ficou na história um episódio ocorrido durante a gravação de um programa no 7º andar, onde se localizavam os estúdios da Rádio JB. Com seus paramentos religiosos, ele lia alguma palavra de ordem da Igreja contra o aborto e a homossexualidade, quando num dia o volume do retorno do som o incomodou. Com as palmas das mãos voltadas para baixo, balançando, fez o sinal clássico para o operador, do outro lado do vidro, pedindo que diminuísse o som. O rapaz, envolvido pela religiosidade da figura de dom Marcos, entendeu que este lhe fazia um sinal para que se postasse de joelhos – e assim o fez.
Ao contrário do que dizia o famoso samba de Billy Blanco sobre os estatutos da gafieira, o ambiente da redação não exigia qualquer respeito. Vibrava-se a liberdade de comportamento. Em alguns dias, Zózimo trabalhou de smoking porque precisava emendar o fechamento com uma festa, o que levava ainda mais fantasia para o ambiente. O repórter Ricardo Boechat, que assessorava o colunista social Ibrahim Sued em seu escritório do Globo, brigou definitivamente com os maus modos do “Turco” e foi se abrigar durante um mês na coluna do amigo. Ficou impressionado com as brincadeiras, trilhões de gargalhadas. Acostumado aos esporros de Sued, à necessidade de recolher dezenas de notas que fossem do gosto dele, demorou a entender os pedidos carinhosos do novo chefe, que sussurrava: “Relaxa”, “Pega leve”, “Fica calmo.”
Um dia a atriz Lúcia Veríssimo, que havia sido cortejada com uma nota sobre suas graças, apareceu. Para nada. Sentou-se no colo do autor da nota e, como se fosse uma pin-up, agradeceu, fazendo um carinho no rosto de Zózimo, já transformado num pimentão envergonhado. Essa farra de personalidades inteligentes, jornalistas que eram incentivados a exercitar uma maneira particular de ver o mundo, aparecia impressa no jornal – e o leitor tinha a sensação de participar da mesma festa.
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Trecho de Enquanto Houver Champanhe, Há Esperança: Uma Biografia de Zózimo Barrozo do Amaral, a ser lançada em novembro pela editora Intrínseca.