“Não se deve confiar num político que nunca perdeu eleição”, diz Luiz Paulo Vellozo Lucas sobre Hartung. “Quem nunca perdeu é porque mudou muito de lado” CREDITO: EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃFOTOGALERIA_2019
Peixe grande
O segredo do ajuste no Espírito Santo e a volubilidade política de Paulo Hartung
Rafael Cariello | Edição 152, Maio 2019
Paulo Hartung recebeu o convite no apagar das luzes de 2014, depois de encerrada a dura campanha eleitoral daquele ano. Havia saído vitorioso na disputa pelo governo do Espírito Santo e já preparava as medidas inaugurais de um terceiro mandato à frente do estado, quando soube que o chefe do Executivo fluminense, Luiz Fernando Pezão, gostaria de recebê-lo para uma conversa, no Rio de Janeiro. O encontro, à primeira vista corriqueiro, reunindo à mesa dois antigos aliados, cresceria em importância e significado nos anos seguintes, sobretudo quando rememorado por admiradores de Hartung.
O anfitrião havia sido vice de Sérgio Cabral por dois mandatos, e naquele momento tinha acabado de conquistar, pelo voto, o comando do Palácio Guanabara. Queria ouvir de Hartung – economista de formação e seu correligionário no PMDB – impressões sobre a economia brasileira e as finanças públicas nos dois estados, os maiores produtores de petróleo e gás no país.
Havia motivos de preocupação. Em dezembro de 2014, estimativas de integrantes do mercado financeiro reunidas no boletim Focus, do Banco Central, indicavam quase estagnação da economia no ano seguinte, com alta prevista do Produto Interno Bruto de pouco mais de 0,5% (um número que hoje parece ingênuo, diante da queda de 3,8% que sobreviria nos doze meses seguintes). Também o preço do barril de petróleo assustava. Depois de se manter acima dos 100 dólares até meados daquele ano, ajudando a encher os cofres capixabas e fluminenses, o valor da matéria-prima vinha caindo em um precipício, uma baixa seguida da outra, até alcançar a marca de 50 dólares, na passagem de 2014 para 2015. Os royalties recebidos pela produção da commodity costumavam representar algo entre 10% e 15% da receita, tanto no Espírito Santo quanto no Rio de Janeiro. Era uma boa quantidade de dinheiro, portanto, que vinha deixando de entrar nos cofres públicos, mês após mês. Como a atividade econômica de forma geral também rateava, e com ela os recursos que os estados arrecadam via impostos, a perspectiva era de queda forte nas receitas à disposição dos dois governadores.
Na conversa com Pezão, Hartung não dourou a pílula, mostrando-se pessimista “com o cenário brasileiro”, lembrou o engenheiro Julio Bueno, que também participou do encontro. À época ele era secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio, cargo que ocupava desde o primeiro governo Cabral. Pouco tempo depois, no início de 2015, Bueno assumiria a Secretaria da Fazenda do estado. Comandaria as finanças públicas fluminenses no pior período da crise, até meados de 2016, cumprindo a função, segundo ele próprio definiu, de “capitão do Titanic”.
Bueno estava presente ao encontro pela proximidade que tinha com Hartung. Engenheiro da Petrobras, havia se tornado presidente da BR Distribuidora nos anos finais do governo Fernando Henrique Cardoso. Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, e a dança das cadeiras na estatal, perdeu o cargo. Paulo Hartung tinha boas referências do executivo e decidiu convidá-lo para ser secretário de Desenvolvimento Econômico do Espírito Santo. Bueno desempenharia a função durante o primeiro mandato do político capixaba. Até ser roubado, digamos assim, por Sérgio Cabral.
O engenheiro que se tornou gestor público descreve o político capixaba como alguém “extremamente reservado”, sério – e que se leva a sério. “O Paulo é como a mulher de César: ele é e parece ser. E eu aprendi isso com ele. Porque eu sou sério também, mas se bobear eu não pareço ser, pelo meu jeito, pelo meu temperamento.” De fato, Bueno é uma espécie de caricatura do carioca boa-praça: informal, inteligente, bom de oratória, expansivo. “A primeira impressão do Paulo comigo foi de preocupação. Eu, carioca, extremamente brincalhão, né? Ele não.”
Naquele momento, contudo, finzinho de 2014, não era apenas o tipo de temperamento que separava Julio Bueno de Paulo Hartung. O engenheiro e o governador Pezão, embora confiassem na capacidade de Hartung, discordavam do cenário que o convidado anunciava. Na opinião dos dois, ainda era possível vislumbrar alguma salvação para as contas públicas do Rio. “Eu era mais otimista que o Paulo. Achava que venceríamos a crise ao longo do ano, em 2015, e aí voltaríamos a crescer. Voltando a crescer, pronto, a receita também cresce.”
O então secretário de Desenvolvimento ainda não sabia, mas naquele momento ele tinha dois problemas. O primeiro: ele estava errado. O segundo: ele ia herdar aquele erro.
Julio Bueno hoje admite que Hartung foi sábio ao se antecipar à crise. “Ele preparou um pouco antes o ajuste”, constatou. Evitou, assim, que a queda de receita que se materializou nos anos seguintes jogasse o Espírito Santo no mesmo tipo de flagelo financeiro que veio a atingir diversos estados, entre eles alguns dos maiores da Federação, como Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em todos esses casos, a brusca diminuição de arrecadação que acompanhou o período da segunda pior recessão da história brasileira, entre meados de 2014 e o final de 2016, trouxe à tona um iceberg, um problema estrutural, antigo: o contínuo aumento dos gastos públicos nos estados, sobretudo com pessoal. Algo que podia resultar da constante contratação de servidores, de reajustes salariais frequentemente acima da inflação e de dispêndios cada vez maiores com aposentados – ou, não raro, de uma combinação desses três fatores.
“O problema é despesa com pessoal”, me disse a economista Ana Carla Abrão, especialista nas contas públicas dos estados. Como os governos não podem, nem devem, apenas pagar salários e aposentadorias – precisam também construir e manter escolas, estradas, comprar equipamentos para a polícia e os bombeiros etc. –, a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no ano 2000, estipulou um limite de 60% da receita corrente líquida dos estados para dispêndios com folha de pagamento de ativos e inativos. Não adiantou muito impor esse teto. Entre 2010 e 2014, enquanto o montante que os estados arrecadavam dos cidadãos subia em média 3,7% anuais (em valores reais, ou seja, acima da inflação), os gastos com pessoal cresceram 5,4% ao ano (além da reposição da inflação). Assim, em 2017, segundo dados oficiais do Tesouro Nacional, catorze estados já gastavam mais do que o limite de 60% das suas receitas com o funcionalismo público.
Isso segundo as contas das próprias secretarias de Fazenda locais, muitas delas subestimadas. “Se a gente fizer as contas direito, estamos falando do comprometimento de 75% da receita com o pagamento de ativos e inativos, em média. Tem estados que têm 80%, 85% da receita comprometida. É absolutamente insustentável”, avalia Abrão. Com uma fatia tão grande do orçamento inevitavelmente dedicada ao pagamento de salários e aposentadorias, a queda de receita nem precisa ser tão expressiva para que o estado se veja subitamente diante da escolha de ter que fazer a manutenção das viaturas de polícia ou pagar as gratificações dos policiais militares; honrar os salários dos professores ou manter as paredes das escolas de pé.
O cenário que Abrão descreve é ainda mais grave porque as finanças nos estados são bastante engessadas, o que dificulta qualquer tipo de ajuste quando a receita cai bruscamente, como aconteceu nos últimos anos no Brasil. Se uma empresa tivesse que enfrentar uma situação semelhante, sua primeira providência seria demitir empregados. Funcionários públicos, contudo, têm estabilidade no emprego, e não podem ser facilmente dispensados. De resto, os estados são responsáveis por uma parte expressiva de alguns dos principais serviços oferecidos à população, como segurança, saúde e educação, o que de fato exige um grande número de funcionários.
Mas não é só quando comparados à iniciativa privada que os gestores estaduais dão a impressão de ter as mãos atadas. Se em Brasília o governo federal começa a gastar mais do que arrecada, como vem acontecendo nos últimos anos, ele sempre pode emitir títulos públicos, tomando recursos emprestados diretamente dos cidadãos. A dívida pública cresce, como tem acontecido, mas os salários não deixam de ser pagos, nem os serviços são cortados – pelo menos não a curto prazo. Os estados não têm esse recurso. Não podem emitir títulos, não podem fazer dívida dessa forma. Precisam viver de maneira muito mais estrita daquilo que arrecadam. Se o dinheiro acaba, funcionários e fornecedores simplesmente deixam de receber.
O resultado dessa dinâmica foi sentido na pele por Julio Bueno. “Qual era a tese? A tese é que a gente ia fazer receitas extraordinárias para atravessar 2015, e que o Brasil ia crescer.” As receitas extraordinárias vieram, pelo menos em parte. Entre outras medidas, o Rio fez acordos para receber antecipadamente, com abatimento, multas milionárias aplicadas pelo estado, mas que estavam sendo questionadas na Justiça. O dinheiro não foi suficiente, contudo, para cobrir o déficit.
Tampouco a retomada da economia que Bueno desejava, mesmo que modesta, aconteceu. “O que aconteceu?”, perguntou o ex-secretário, de forma retórica, ao me narrar num escritório na praia do Flamengo, no Rio, seu período à frente da Fazenda fluminense. “A economia embicou pra baixo. A arrecadação desabou. Aí, meu irmão, quebrou! Até novembro de 2015, a gente se virou. Eu cheguei até novembro pagando em dia.” Depois dali, os salários começaram a atrasar. “Eu tinha que escolher para quem pagava”, disse. “Foram noites maldormidas para escolher.”
Em julho de 2016, com manifestações de professores na porta de sua casa, Bueno pediu demissão. “Parece até que eu não pagava porque não queria. Me chamaram de ladrão. Foi um horror, morri de vergonha. Aí eu decidi ir embora.”
O governo do Rio ainda conseguiu recursos com o governo federal para garantir uma realização minimamente organizada dos Jogos Olímpicos, em agosto. “A gente pagou os salários, fez o metrô, pagou a polícia, equipou o que precisava e fez as Olimpíadas”, explicou Bueno. Algum tempo depois do encerramento dos jogos, o secretário de Segurança José Mariano Beltrame, que havia representado, muitos anos antes, uma esperança de reforma e de melhoria no modo de atuação da Polícia Militar no Rio de Janeiro, também deixou o cargo. “Ele sabia que não ia ter um tostão depois das Olimpíadas”, contou Bueno. Seguiu-se uma deterioração ainda maior da infraestrutura de segurança pública, acompanhada de piora nos índices de criminalidade.
“Eu sinceramente tive a veleidade de achar que o Rio de Janeiro ia se resolver com as UPPs”, as Unidades de Polícia Pacificadora, me disse Bueno, em seu escritório. “Quando veio a UPP, aquela quantidade de investimento, eu olhava e dizia: ‘Vai resolver.’ Hoje eu morro de desgosto, de tristeza. Sou um estudioso das finanças, continuo escrevendo e tal, mas com pessimismo.”
Paulo Hartung costuma se referir em público ao fato de ser baixinho, às vezes comparando sua estatura (1,66 metro) com o tamanho diminuto de seu estado. Já passou dos 60 anos (nasceu em abril de 1957) e possui uma calva pronunciada, mas não aparenta a idade. Ex-atleta, seu corpo é magro e forte, com mãos grandes. Nas poucas vezes em que nos encontramos, lidava comigo de maneira quase sempre séria e desconfiada. Ao longo das suas quatro décadas de vida pública, mudou muitas vezes de partido e também de rumo, ganhando certa fama de imprevisibilidade entre aliados e adversários.
Foi o que aconteceu em 2014. Hartung surpreendeu ao anunciar que iria mais uma vez concorrer ao governo do estado, no Espírito Santo. Anos antes, entre 2003 e 2010, no período de rápido crescimento econômico da era Lula, ele havia cumprido dois mandatos à frente do Executivo local, numa administração reconhecida por colocar as contas capixabas em dia e por reorganizar a administração pública. Deixara o governo com recordes de popularidade e fizera o sucessor, Renato Casagrande, do PSB, eleito em primeiro turno, em 2010, com impressionantes 82% dos votos.
Era o mandatário socialista, naturalmente candidato à reeleição e que chegara ao Palácio Anchieta com seu apoio, que Hartung agora decidia enfrentar. A justificativa para a reviravolta e o inevitável rompimento entre os dois estava nas contas públicas. “Eu fiz uma campanha em que tratei do quê? Disse que o estado estava de novo flertando com a desorganização fiscal”, explicou Hartung na sede do governo capixaba, no final do ano passado, às vésperas de deixar o poder.
No início de 2014, três técnicos de reconhecida competência do estado – os três, à época, próximos de Hartung – divulgaram um estudo que chamava a atenção para o aumento dos gastos públicos acima do crescimento da receita na administração Casagrande, em particular devido à elevação dos dispêndios com pessoal. No documento, os economistas Haroldo Corrêa Rocha e Ana Paula Vescovi e o engenheiro Rodrigo Medeiros mostravam que, apenas entre 2011 e 2013, o poder público local havia contratado um montante de novos servidores bastante superior aos que haviam sido incorporados à folha durante todos os oito anos dos dois mandatos anteriores, sob Hartung.
O jornal A Gazeta, principal diário de Vitória, deu notícia do levantamento no início de março. “Governo do estado com as contas em xeque”, dizia o título. De fato, as despesas cresceram acima do incremento da receita no governo de Renato Casagrande, mas num ritmo menor do que na média dos estados brasileiros – um período em que, sob incentivos do governo Dilma Rousseff, com dinheiro barato ofertado ou garantido por Brasília, muitos mandatários elevaram os dispêndios locais. No Espírito Santo, as despesas cresceram 4,5% ao ano, em termos reais, entre 2011 e 2014, enquanto a receita subiu em média 3,8%, anualmente. No Rio, os dispêndios cresceram bem mais: 6,4% ao ano, contra uma alta anual da arrecadação de 3,3%. Em Minas Gerais, os gastos subiram 5,1% ao ano, contra incremento de 2,8% das receitas. Visto em perspectiva, Casagrande estava longe de ser o grande vilão das contas públicas brasileiras, naquele período.
Para Hartung, contudo, pouco importavam essas comparações. Seu problema era local, e ele fez campanha alertando os eleitores de que as despesas no estado estavam “subindo de elevador”, enquanto a receita subia “de escada”. Eleito, antes ainda de assumir o governo, não deixou dúvidas sobre a dureza do ajuste que se avizinhava. “Vamos ter que comer um saco de sal em 2015 para arrumar essa situação”, anunciou. Também pediu à Assembleia Legislativa que desconsiderasse o orçamento para o ano seguinte, peça que Casagrande havia enviado ao Legislativo.
Mesmo sem ter ainda tomado posse, encarregou Ana Paula Vescovi – uma das autoras do estudo sobre a situação fiscal do estado, que viria a ser sua secretária de Fazenda – de rever a peça orçamentária. No novo diploma, a economista baixava a previsão de receita para o ano seguinte em 1,3 bilhão de reais, um corte de aproximadamente 8% no montante de recursos que estaria disponível para o governo. Botava no papel, assim, o cenário de nuvens carregadas, com queda nos impostos e nos royalties, que o governador eleito do Espírito Santo havia descrito para Pezão.
Hartung tinha, naquele momento, dois problemas. O primeiro: ele e sua equipe estavam certos (ao final de 2015, a queda de receitas seria praticamente igual àquela prevista por Vescovi em dezembro de 2014). O segundo: ia precisar fazer os gastos caberem naquele acerto, ou seja, fazer as despesas não ultrapassarem a minguada arrecadação que pingaria nos cofres capixabas, dali por diante.
Como se isso não bastasse, novos problemas surgiram menos de um ano depois, no final de 2015. A paralisação das operações da mineradora Samarco, após o desastre de Mariana, impactou o Espírito Santo, por onde era transportado e processado o minério de ferro explorado em Minas. A atividade da empresa, sozinha, equivalia a cerca de 5% do PIB capixaba. O “saco de sal”, em 2016, seria maior e mais fundo do que Hartung ou Vescovi tinham imaginado.
A recessão de 2015 se traduziu numa retração de 2,1% do produto estadual. Em 2016, o que já era ruim virou um desastre – queda de 5,3% do PIB. As receitas voltaram a despencar. Era preciso fazer um corte de gastos de tal magnitude que talvez se revelasse impossível.
Como o mais difícil é cortar pessoal, quase todo ajuste fiscal no Brasil começa pelos investimentos, a despesa mais maleável. Não foi diferente no Espírito Santo. Essa rubrica, que havia se aproximado de 2 bilhões de reais em 2014, seria trazida para pouco mais de 600 milhões, em 2015. Despesas discricionárias e de custeio – contratos de aluguel, gastos com passagens aéreas, diárias, combustível, locação de automóveis, energia elétrica, água, telefonia – também foram revistas. Por fim, gastos com pessoal foram contidos. Em 2015 e 2016, o governo capixaba não concedeu um centavo de aumento para os seus servidores.
Em fevereiro de 2017, os policiais militares reagiram com uma greve, deflagrada no momento em que Hartung havia se ausentado do estado para cuidar de um problema de saúde. Viajara a São Paulo para fazer um exame médico. Confirmada a suspeita de tumor na bexiga, ele teve que ser operado – e recebeu a notícia da paralisação ao voltar do centro cirúrgico para o quarto do hospital.
Por três semanas, os policiais se ausentaram das ruas do Espírito Santo. A população fez estoques, e evitou sair de casa. Houve saques, arrastões. Os homicídios deram um salto: mais de duzentas pessoas foram assassinadas, em pouco mais de vinte dias. Hartung não cedeu. O movimento terminou sem que os policiais recebessem qualquer tipo de reajuste. “Se eu desse aumento, o estado quebrava”, argumentou o ex-governador, no final do ano passado, prestes a completar uma administração que nunca atrasou o pagamento de salários e aposentadorias.
O tamanho da economia de gastos promovida pelo governo do Espírito Santo naqueles dois anos – 2015 e 2016 – talvez tenha representado um esforço inédito na história das finanças públicas do país, me disse o economista Guilherme Tinoco, funcionário do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Tinoco conhece e acompanha as contas estaduais.
Em 2015 e 2016, as despesas na gestão Hartung – todos os gastos que o governo do Espírito Santo fazia – caíram em média 13,7% ao ano, já descontada a inflação. Em média, a contenção de gastos em todos os estados brasileiros, nesse mesmo período de crise, provocou uma queda muito menor nas despesas totais – de 3,4%.
Segundo dados reunidos por técnicos do Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, os gastos com pessoal ficaram estáveis nesses mesmos dois anos no conjunto das 27 unidades da Federação (indicando como é difícil cortar esse tipo de despesa, mesmo em momentos de debacle econômica). No caso do Espírito Santo, contudo, eles caíram, em termos reais, 8% em média a cada ano. Quando se consideram apenas os servidores ativos (ou seja, excluindo-se os gastos com aposentados), a despesa sob Hartung caiu impressionantes 11% a cada ano, em 2015 e 2016.
“É muito difícil fazer um ajuste desses”, me disse Tinoco. “Esse número é bizarro”, afirmou o economista, referindo-se à queda total da despesa. Quando questionado sobre a economia com pessoal – “realmente uma queda muito forte” –, Tinoco declarou, da primeira vez em que nos falamos, que lhe faltavam informações para poder saber como ela havia sido realizada. “Quanto disso foi controle de salário? Quanto foi controle de contratação de pessoal? Travou? Não contratou mais ninguém e ainda reduziu os salários? Ou não, ainda contratou mais um pouquinho, mas promoveu uma queda gigantesca de salário? Eu não consigo abrir esses dados, não consigo saber. O que a gente tem é o desempenho do conjunto dos estados, para comparar. Na média brasileira, os gastos com pessoal ficaram estáveis em 2015 e 2016. No Espírito Santo, caíram 8% a cada ano. É demais, né?”
Dois meses depois dessa conversa, eu afinal conseguiria informações sobre a variação na quantidade de funcionários públicos no Espírito Santo. Segundo dados da Secretaria de Estado de Gestão e Recursos Humanos local, em dezembro de 2014, logo antes de Hartung assumir, havia 62 037 servidores ativos do Poder Executivo no estado. Quatro anos depois, em dezembro de 2018, eles eram 51 899. Um corte de 10 mil pessoas, em apenas um mandato. Uma queda de mais de 16% no total de funcionários do Poder que mais emprega.
Certamente vinha daí parte da resposta às dúvidas do economista do BNDES. Mas restava a questão. Se funcionários não podem ser facilmente demitidos, se os gastos com pessoal são tão rígidos – e são –, como havia sido possível cortar tanta gente e fazer tamanho ajuste?
No final do ano passado, prestes a concluir o seu mandato, Paulo Hartung encarnava uma espécie de paradoxo político. Havia desistido de concorrer à reeleição e a qualquer outro cargo público no pleito de 2018 (seu principal oponente na política capixaba, Renato Casagrande, venceria com facilidade a disputa pelo Palácio Anchieta). Decidira também se desfiliar do MDB, sem se integrar a nenhum outro partido. Nada disso impediu que continuasse a ser procurado por governadores recém- eleitos, por políticos em geral, economistas e organizações da sociedade civil.
Entre novembro e fevereiro, participou de dois eventos do banco BTG, em São Paulo; de um seminário na Casa das Garças, um think tank de políticas econômicas e sociais, no Rio; de um encontro sobre gestão pública e educação promovido pela Fundação Lemann em Oxford, no Reino Unido; e de um debate na Fundação Fernando Henrique Cardoso, na capital paulista, entre outros compromissos. Embora anuncie a intenção de não voltar a concorrer a cargos eletivos no Espírito Santo, Hartung não esconde a ambição de participar da política nacional.
Uma das pessoas com quem conversa com frequência – e com quem articula o seu futuro político – é o economista Arminio Fraga. “O Paulo é um herói de todos os que acreditam que a austeridade é uma coisa boa”, me disse Fraga, na sede da Gávea Investimentos, a gestora de recursos que fundou no início dos anos 2000, no Rio. Ele e Hartung se conheceram quando o político capixaba era senador, no final dos anos 90, e o economista ajudava a reorganizar as finanças do país, na presidência do Banco Central. Mantiveram contatos esparsos por muitos anos, até se reaproximarem definitivamente em 2014, contou Fraga.
O economista afirma que, naquele momento, sentia-se “muito pronto” para voltar à vida pública. Havia participado da campanha presidencial de Aécio Neves, pelo PSDB, e vislumbrou a possibilidade de mais uma vez assumir um cargo no governo. A derrota da candidatura tucana não enterrou a vontade de continuar a fazer política. Começou a procurar pessoas que pudessem lhe ensinar “as boas lições”. Uma delas foi Hartung, elogiado por conhecidos seus. Logo os dois passaram a conversar, cada vez com mais frequência. O político capixaba “tem família no Rio”, explicou o ex-presidente do BC, o que facilitava os encontros. “A gente janta, ele vai à Casa das Garças, vai dar uma palestra. Conversamos, batemos papo. É um tremendo luxo ter ele por aí.”
Arminio Fraga passou então a apresentar Hartung aos políticos que vinham lhe pedir conselhos ou conversar sobre os destinos do Rio e do Brasil. Chegou a sugerir, num encontro com outros economistas na Casa das Garças, que o capixaba se apresentasse, no ano passado, como candidato ao governo fluminense. Como a ideia foi recebida com entusiasmo pelos colegas de profissão, ligou para o amigo e fez a proposta. Paulo Hartung declinou.
Foram muitas as pessoas apresentadas por Fraga a Hartung, mas talvez o encontro político decisivo promovido pelo ex-presidente do Banco Central tenha sido com Luciano Huck. O economista havia se aproximado do apresentador de tevê assim que Huck começou a considerar a possibilidade de se candidatar à Presidência da República, em 2017. “Foi ele quem me procurou. O Luciano é uma pessoa de imensa energia, de capacidade de ação, de execução, de conexão. Ele me procurou, foi uma coisa rápida, fácil. A ideia de falar com o Paulo Hartung também foi rápida. No momento em que essa conversa esquentou, eu disse ao Luciano: ‘Temos que falar com o Paulo. Ele é um cara que sabe fazer, tem a credibilidade, é uma pessoa fundamental.’”
Huck e Hartung jantaram juntos na casa de Arminio Fraga. “O Paulo foi incrível”, lembrou o anfitrião. “Ele disse que acreditava naquele projeto. Pode chamar de liberal, social-democrata, progressista. Ele disse que acreditava, que podíamos contar com ele para qualquer coisa. Durante o jantar, deixou muito claro: qualquer coisa significava ‘ajudar com a chapa’, frase dele, ou outra função qualquer. Falamos que talvez ele pudesse ser chefe da Casa Civil. Ele disse: estou dentro, estou junto.”
O projeto da candidatura não foi adiante, mas “a relação se manteve”. “Hoje não existe uma mobilização eleitoral, mas as pessoas seguem mobilizadas”, explicou o economista, referindo-se a gente que se reuniu em torno da possibilidade de uma candidatura de Luciano Huck. Comentei com Arminio Fraga que os nomes dele, de Huck e de Hartung eram frequentemente associados à possibilidade da criação de um novo partido no país. “Eu não creio que isso seja para já”, ele me disse. “Não sou do ramo. Mas é óbvio que, em algum momento, faz sentido a ideia de se criar um partido novo, ou a de se criar um espaço que permita a construção de um projeto com as ideias adequadas, um projeto que se comunique com a população. Mas está um pouco cedo agora. Não há por que correr tanto. A minha avaliação, salvo melhor juízo de pessoas como o Paulo Hartung e o próprio Luciano, é que dá para esperar um pouco, conversar, conversar muito. Política é em grande medida conversa.”
Dias depois, fui conversar com Luciano Huck. A meio caminho da casa do apresentador, no Rio, enquanto o táxi atravessava o túnel que liga a Gávea ao bairro de São Conrado, o nome de Paulo Hartung surgiu na tela do meu celular. Na mensagem enviada por WhatsApp, ele aparecia numa foto com o próprio Huck e com o empresário Eduardo Mufarej, fundador do RenovaBR e entusiasta, no início de 2018, da candidatura do apresentador. Os três haviam participado naquela manhã de um encontro, no interior de São Paulo, do conselho da organização criada por Mufarej.
Em sua casa, Huck falou com desenvoltura e autoridade tanto sobre o RenovaBR quanto sobre o movimento Agora!. Perguntei a diferença entre as duas organizações de “renovação da política” de que ele participa – e das quais Hartung se aproximou, nos últimos meses. O RenovaBR atua como um “curador de gente”, que oferece cursos a líderes potenciais e ajuda os futuros candidatos a “lapidar os seus skills [talentos]”, explicou o apresentador. Tabata Amaral, deputada federal pelo PDT de São Paulo, foi bolsista lá, em 2018. A entidade agora se prepara para formar candidatos que participarão dos pleitos municipais de 2020.
O Agora!, por sua vez, está passando por uma transformação, entrando numa nova fase, segundo Huck. O movimento vai se dedicar a ser um centro de discussão e formulação de políticas públicas, um “hub de boas práticas”. “A gente vai começar a compilar o que tem de mais legal, e a desenhar no Agora! o projeto de país em que a gente acredita.” Hartung, disse Luciano Huck, está participando “ativamente” dessas discussões. “No núcleo duro de discussão de projeto de país, você precisa ter o Paulo Hartung na mesa.”
O ex-governador do Espírito Santo conta com um grupo de aliados e admiradores importantes também em São Paulo. O economista Marcos Lisboa, que foi secretário de Política Econômica quando Antonio Palocci era o ministro da Fazenda, no primeiro mandato de Lula, o define como “o melhor gestor público que tem”, “a melhor liderança política” do país.
Na conversa com Lisboa, lembrei-me do modo como um jornalista capixaba havia caracterizado Hartung: “um peixe grande num aquário pequeno”, referência à importância que o ex-governador vinha ganhando no debate público, mas também à possível limitação de ele ter como base política um estado com poucos eleitores, sem grande expressão nacional.
A opinião do meu colega de profissão depois seria formulada pelo próprio Hartung, numa das entrevistas que fizemos. “Eu sempre achei que o trabalho bem-feito aqui no estado estava me levando para uma possibilidade de posição na política nacional”, ele me disse, no Palácio Anchieta. “O que eu achava possível? Talvez compor uma chapa na posição de vice. Isso que acabou sendo trabalhado em algum momento. Para ser candidato a presidente você precisa ter escala. O Espírito Santo não dá escala. É um estado com pouco eleitor.”
Essa não parece ser a opinião de Marcos Lisboa. Ao me ouvir repetir o argumento de que Hartung vinha de um estado pequeno, ele insistiu que essa circunstância tinha pouca importância – e lembrou que o ex-presidente Fernando Collor havia saído de Alagoas direto para o Palácio do Planalto.
No início de fevereiro, durante um debate sobre as finanças nos estados promovido pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, foi a vez do cientista político Sergio Fausto, que mediava a conversa entre Hartung e o senador Antonio Anastasia, ex-governador de Minas Gerais, sugerir mergulhos em águas mais vastas para o “peixe grande”.
Antes de encerrar o evento, anunciou que gostaria de fazer um último comentário. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sentado na primeira fila do auditório, fez menção de também querer dizer alguma coisa, quase ao mesmo tempo. Após um breve momento de dúvida sobre quem iria falar, o líder tucano pediu que Fausto fosse em frente e desse o seu recado.
O cientista político comentou então que, “salvo pelo Collor, que foi um episódio um pouco acidental, não houve presidentes da República que tenham saído dos governos estaduais nos últimos anos”. E completou, voltando-se para Anastasia e para Hartung: “Ouvindo as duas palestras de hoje, eu espero que essa escrita seja quebrada, mais cedo do que tarde.”
Ágil, Fernando Henrique emendou: “Bom, então eu não preciso dizer mais nada.”
Paulo César Hartung Gomes nasceu no interior do Espírito Santo, na cidade de Guaçuí, perto da fronteira com Minas Gerais, mas mudou-se ainda criança para Vitória. Herdou o sobrenome que usaria na política da mãe. “É alemão”, ele disse. “Gente que veio para o Rio Grande do Sul, depois migrou para Minas e finalmente para o Espírito Santo.” O pai, contador e comerciante bem-sucedido, simpatizante do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, infundiu nos filhos o hábito da leitura. “Eu me lembro do meu pai sentado, lendo. Recebia o jornal do Rio, que chegava dois dias atrasado.”
O jovem com gosto pelos livros e esportista (participou da seleção capixaba de handebol) aproximou-se da política na faculdade de economia da Ufes, a Universidade Federal do Espírito Santo, no final dos anos 70. As entidades de representação dos estudantes se reorganizavam no país naquele período, e o futuro economista, integrante do PCB, o Partidão, tornou-se o primeiro presidente do reconstruído Diretório Central dos Estudantes, na Ufes.
Alguns de seus principais aliados, e muitos dos quadros técnicos que o acompanhariam pelas décadas seguintes, também se formaram ali – ou nessa mesma época. Haroldo Corrêa Rocha, que sob Hartung foi secretário de Planejamento na Prefeitura de Vitória e depois secretário de Educação, no governo estadual, foi seu contemporâneo na faculdade. Luiz Paulo Vellozo Lucas – que anos mais tarde se tornaria um dos principais quadros do PSDB – estudava no Rio na década de 70, na UFRJ, mas também integrava o pcb e fazia a ligação entre as lideranças fluminenses e os novos comunistas do seu estado.
Em 1982, já desiludido com as brigas intestinas do Partidão – conflitos que se seguiram à volta de Luís Carlos Prestes do exílio –, Hartung decidiu concorrer, pelo PMDB, ao cargo de deputado estadual. Foi eleito. Depois cumpriria um segundo mandato na Assembleia Legislativa capixaba, entre 1987 e 1990. Nesse meio tempo, participou da fundação do PSDB, o Partido da Social Democracia Brasileira.
Em 1990, mudou de patamar. Eleito para um mandato federal, na Câmara dos Deputados, destacou-se na lida com assuntos econômicos e se tornou vice-líder da bancada tucana, capitaneada por José Serra. Logo deixaria o Legislativo, seduzido pela possibilidade de gerir a capital de seu estado. Venceu as eleições de 1992, realizou uma boa administração – com equilíbrio fiscal –, saiu muito bem avaliado da Prefeitura de Vitória e fez o sucessor: o ex-integrante do Partidão e agora também tucano Luiz Paulo Vellozo Lucas.
A capital ia bem, sob Hartung e depois Vellozo Lucas, mas o Espírito Santo nem tanto. A saúde financeira do governo estadual era precária. Algo parecido – dificuldades para fazer os dispêndios públicos caberem nas receitas – acontecia um pouco por toda parte, em diversos estados e municípios. Mas no caso capixaba os problemas orçamentários, ao se agravarem, acabaram se convertendo num desarranjo administrativo generalizado – e numa crise política de características inéditas.
No Brasil, de forma geral, as assembleias legislativas costumam ser dóceis aos desejos dos governadores. No Espírito Santo, contudo, ao longo dos anos 90 e no início dos anos 2000, a Assembleia local, controlada por políticos como o ex-bicheiro José Carlos Gratz, conseguiu emparedar os ocupantes do Palácio Anchieta, subvertendo os termos da costumeira relação entre Executivo e Legislativo no país. De repente quem dava as cartas na política local não era mais o governador, mas um pequeno grupo de deputados pouco republicanos.
A crise de certa forma havia nascido com o Plano Real. Ao pôr fim à inflação, o programa de estabilização criara dificuldades para os gestores públicos. Antes, no período do descontrole de preços, muitos conseguiam uma folga orçamentária recebendo as receitas em dia, mas atrasando tanto quanto fosse possível os pagamentos. Como os valores devidos a funcionários e fornecedores não eram reajustados, os custos dos dispêndios públicos eram artificialmente reduzidos, corroídos pela inflação – o que não acontecia com as receitas.
“Se você postergasse o gasto, conseguia gerar um flow [fluxo] financeiro que te ajudava muito”, explicou o economista capixaba José Teófilo Oliveira, ex-
professor da USP que viria a ser secretário da Fazenda no primeiro governo Hartung. “Muitas empresas viviam assim também. O Real quebrou esse negócio.”
No caso capixaba, a situação se agravou como consequência de uma escolha desastrada feita por Vitor Buaiz, primeiro governador eleito pelo PT no país, pouco depois de assumir o Executivo, em 1995. “O governo Vitor se caracterizou por uma decisão equivocada quanto à política salarial”, avaliou Oliveira. “Os economistas do PT argumentavam que a inflação ia voltar, que o Plano Real iria fracassar. Convencido disso, ele decidiu dar um aumento salarial de 25% para o funcionalismo, na largada do mandato. Só que, para azar dele, a inflação acabou. Essa decisão desestruturou o governo, que já estava numa situação de equilíbrio financeiro precário. Começaram os grandes atrasos salariais.”
Os problemas continuariam no governo seguinte, do tucano José Ignácio Ferreira, dando origem ao chamado “parlamentarismo capixaba”. A preponderância que a Assembleia veio a ter sobre o Palácio Anchieta é explicada pelo cientista político Mauro Petersem Domingues, professor da Ufes, da seguinte maneira: “Os governadores não tinham muito como distribuir benefícios aos deputados para garantir a lealdade deles. O que aconteceu foi que um grupo bem articulado de deputados, que tinha um perfil mais mafioso, digamos assim, conseguiu estabelecer essa liderança de dentro da Assembleia.”
Numa entrevista para a Folha de S.Paulo, em 2002, José Carlos Gratz explicou como havia conseguido se eleger presidente do Legislativo por três vezes consecutivas, além de contar com o apoio inconteste de quase todos os trinta deputados da Casa: distribuindo recursos, que financiavam as campanhas de seus futuros colegas. “Esses otários aqui, quantas vezes eu for deputado, eles têm que votar em mim” para presidente da Assembleia, disse.
As “ajudas” do grupo de Gratz, segundo Domingues, não iam apenas para os parlamentares. “Eles passaram a distribuir recursos também para os funcionários da Casa. E para o Tribunal de Contas. Criaram assim um mecanismo de chantagem muito poderoso: ameaçavam rejeitar as contas do governador ou de prefeitos, controlando a classe política local.”
O poder do grupo era usado em barganhas de interesse mútuo com empresários aliados, que recebiam benefícios fiscais. Empregos públicos também viraram moeda de troca. “De 1990 a 2005, não entrou nenhum professor efetivo no estado” – ou seja, por concurso público –, me disse Haroldo Rocha, que cuidaria da pasta da Educação, sob Hartung. Os professores eram nomeados em grande número para cargos temporários, precários, indicados por políticos.
Lelo Coimbra, que foi vice-governador de Hartung no primeiro mandato, e havia sido integrante da Assembleia nos anos 90, afirma que muitos parlamentares eram “donos” de vagas no serviço público. “Teve deputado que chegou a ter mil pessoas indicadas na máquina do Estado”, disse Coimbra. “Um dos deputados tinha, na área da Educação, 1 200 pessoas.”
No final dos anos 90, Paulo Hartung achou que havia chegado a hora de disputar o governo do Espírito Santo. Vinha de uma experiência bem-sucedida na administração municipal, e acreditava que teria chance de ser escolhido candidato na convenção local do PSDB. Para sua surpresa, perdeu a vaga, conquistada em 1998 por José Ignácio Ferreira – mas, num acordo fechado logo em seguida, ganharia o direito de concorrer ao Senado pelo partido. Eleito, já em Brasília, não demorou para começar a se movimentar com o objetivo de viabilizar a sua candidatura ao Palácio Anchieta no pleito seguinte, em 2002.
O momento era bom para o senador em seu estado natal, mas não para um candidato tucano. No segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso enfrentou uma série de problemas econômicos e políticos – da crise cambial, em 1999, ao racionamento de energia elétrica, em 2001 –, com impactos negativos em sua popularidade. No Espírito Santo, o tucano José Ignácio, refém da Assembleia, era percebido como fraco e corrupto. As ambições imediatas falaram mais alto, para Hartung, do que qualquer projeto partidário.
Alberto Goldman, à época deputado federal pelo PSDB de São Paulo, se recorda de ter sido convidado para um almoço na casa de Hartung, em Brasília, no segundo semestre de 1999. “Foi uma coisa estranha. No meio da semana estivemos, eu e o Serra, na casa dele. Ele nos convidou para uma moqueca capixaba, para que discutíssemos o futuro do partido. Fomos lá, conversamos sobre o partido, o futuro do país, as questões todas. Deve ter sido numa quarta-feira, algo assim. De repente, na sexta ou no sábado, pela televisão, recebo a notícia de que ele tinha saído do partido. ‘Meu Deus do céu, acabei de comer uma moqueca com ele, a comida ainda está aqui na garganta!’”
Segundo Goldman, em nenhum momento durante o almoço Hartung expressou qualquer insatisfação com o PSDB. “E de repente ele sai do partido, não sei por quê, não entendi por quê. Nunca pedi explicações, e ele também não deu.”
Hartung afirma que deixou o partido que tinha ajudado a fundar por causa dos problemas locais da legenda, no Espírito Santo. O destino seguinte foi o PPS. Roberto Freire, presidente da sigla que tinha sua origem histórica no velho Partidão, diz que recebeu o político capixaba com “muita satisfação”. “De certa forma, era a volta do filho pródigo, porque ele tinha militado no PCB. Eu o conhecia dessa época.”
Dois anos depois, em 2001, seria a vez de Freire ser surpreendido. “Lamentamos muito a saída dele. Eu lamentei muito, inclusive fiquei um pouco constrangido com a forma como ele saiu. Saiu de um partido que o tinha recebido dando a ele o que era devido, até por ele ser um grande quadro político. Ele era líder do PPS no Senado.” A sigla de Freire, segundo Hartung, não lhe dava “estruturação de campanha” no Espírito Santo. “Tempo de televisão, essas coisas.”
Foi pousar então no PSB, que teria como candidato a presidente, em 2002, Anthony Garotinho, à época governador do Rio de Janeiro. O movimento se explicava por razões nacionais e locais. No Espírito Santo, crescia a insatisfação da sociedade civil e do empresariado com as práticas políticas da Assembleia. O cientista político Mauro Petersem Domingues avalia que o “basta” coletivo que afinal foi dado “ao poder do Gratz e do grupo dele na Assembleia teve a ver com o momento em que esse grupo tentou chantagear as grandes empresas do estado”.
Em 2001, a Xerox do Brasil, ao anunciar que estava fechando a sua unidade no Espírito Santo, afirmou em carta aberta que vinha recebendo cobranças de propina. “Esse sistema de corrupção montado na Assembleia tinha muitos tentáculos”, me disse o economista José Teófilo Oliveira. “Eles chegaram ao cúmulo de proibir a plantação de eucalipto num dia, para chamar a Aracruz Celulose a pagar para ter aquela lei revogada. É impressionante. Eles foram muito ousados. As grandes empresas foram achacadas ou sofreram tentativas de achaque. Mas o ‘basta’ foi muito mais amplo. A Igreja Católica participou, o arcebispo de Vitória, a Igreja Batista, a OAB, muita gente boa.”
O movimento da sociedade que queria mudanças políticas no Espírito Santo tinha como principais lideranças políticas Max de Freitas Mauro, do PTB, que havia sido governador no fim dos anos 80, e Paulo Hartung, que se encontrava então transitando entre diferentes partidos. Ambos decidiram se lançar ao governo. Mauro tinha o PT na sua coligação. Segundo Luiz Paulo Vellozo Lucas, Hartung considerou que era necessário fazer um movimento à esquerda, indo para o PSB. “Porque o adversário dele seria Max Mauro. Do PTB com o pt. Ia ser o palanque do Lula. O Paulo morria de medo de uma oposição à esquerda. Ele não queria ser o candidato da base do Fernando Henrique.”
Haroldo Rocha tem avaliação parecida. “O Paulo se aproximou do Lula antes da eleição de 2002. Ele tem muita sensibilidade para entender o movimento da política. Ele viu que o PSDB, o governo Fernando Henrique… tinha terminado aquele ciclo. Cumpriu. Então, o Paulo viu antes. Ele começou a conversar com Lula, José Dirceu, em 2002.”
Luiz Paulo Vellozo Lucas, que à época era prefeito de Vitória, continuou no PSDB. Mas ajudou na eleição do amigo e aliado. Depois que Hartung já havia se mudado para o PSB, o Supremo Tribunal Federal determinou que as candidaturas federais e estaduais, naquele ano, deveriam ser “verticalizadas”: as alianças locais tinham que seguir a mesma lógica das coligações nacionais. Isso inviabilizava que a frente liderada por Vellozo Lucas, unindo PSDB, PFL e outros partidos de centro, apoiasse formalmente Hartung, como era o plano original. Juntas, essas siglas tinham direito a quase dez minutos de televisão. Se não lançassem candidato, o tempo seria distribuído igualmente pelos demais – o que iria beneficiar também Max Mauro, o adversário a ser batido.
A solução, segundo Vellozo Lucas, foi lançar uma candidatura “laranja”. “Um candidato que também se chamava Paulo. Paulo Ruy. Entrava o Paulo Ruy, fazia a propaganda, falava do programa de governo: saúde, educação etc. Aí saía um Paulo e entrava o outro Paulo, pedindo voto. O Paulo Ruy funcionava, no programa, como se fosse o âncora. Ele não pedia voto para si. Eram os projetos que o outro Paulo iria fazer. Paulo Ruy era meu secretário, engenheiro, depois virou secretário do Paulo. O estúdio onde eram feitas as duas propagandas era o mesmo. A coordenação da propaganda de televisão era a mesma. Era minha.”
Luiz Paulo Vellozo Lucas também participava, à época, da coordenação do programa de governo do candidato tucano à Presidência, José Serra. Paulo Hartung ganhou a eleição em primeiro turno. “A minha expectativa era a de que ele apoiasse o Serra no segundo turno”, contou Vellozo Lucas. “Mas ele nem atendia o telefone. Em 2002, o Paulo fugiu do Serra como o diabo foge da cruz.”
Questionado sobre esse episódio, Hartung me disse que Serra é um “amigo querido”: “Ele nunca deixou de falar comigo.” Em seguida acrescentou que já havia avisado ao presidenciável tucano, antes mesmo de a campanha começar, que suas alianças no Espírito Santo não lhe permitiam “abraçar uma candidatura a presidente, nem no primeiro, nem no segundo turno”.
No governo, Hartung conseguiu centralizar poder e retomar o controle da Assembleia. Em grande medida como resultado da atuação do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, o grupo de José Carlos Gratz foi escanteado da política capixaba. Inúmeros benefícios fiscais – que favoreciam empresas amigas, no tempo em que a Assembleia dava as cartas – foram cancelados. A reorganização da cobrança dos impostos, associada ao crescimento econômico do período 2003 a 2010, maior no estado do que os já altos índices conseguidos nacionalmente, permitiu que a arrecadação desse um salto.
Ainda entre 2003 e 2006, a capacidade arrecadatória vinha crescendo impressionantemente em todos os estados brasileiros – a uma média de 8% ao ano. No Espírito Santo, o salto foi ainda maior: os recursos à disposição do governo Hartung cresciam quase 12%, em média, ano após ano. José Teófilo Oliveira, que comandou a Fazenda estadual de 2003 a 2008, estima que nenhum outro estado da Federação tenha aumentado tanto a receita de icms nesse período quanto o Espírito Santo.
Os gastos com pessoal, contudo, cresceram menos, cerca de 4% a cada ano. O resultado é que, ao fim do primeiro mandato de Hartung, a fatia da receita despendida com servidores havia diminuído, ficando entre as menores do país – uma realidade que, apesar das flutuações nos mandatos e governos seguintes, continua a valer até hoje. Em 2017, apenas São Paulo destinava uma fração menor do seu orçamento para o pagamento de ativos e inativos.
Antes do fim da década passada, os poços de petróleo capixabas também começaram a produzir cada vez mais óleo e gás. “Nós pulamos de 16 mil barris por dia para 400 mil barris”, lembrou Hartung. “Esse troço empurrou tudo.” A circunstância de tudo ir bem na economia ajudou o governador a montar, no poder, um espectro de alianças que ia da esquerda à direita, arrastando tudo que se encontrava pelo caminho. Numa entrevista que me concedeu no início de fevereiro, o expresidente Fernando Henrique Cardoso se referiu a Hartung, no período em que esteve no poder, como “o dono, entre aspas, do Espírito Santo”.
Prestes a completar o primeiro mandato, Paulo Hartung trocou novamente de partido, mudando-se afinal para a legenda que tradicionalmente é capaz de conciliar tantos interesses distintos: o PMDB. “Fiquei pouco tempo no PSB. Foi uma passagem, uma baldeação”, ele me disse, menos como quem se justifica do que como alguém que constata um fato.
Na política nacional, o ex-tucano se aproximava cada vez mais do presidente Lula e do pt, com reflexos nas escolhas locais. Luiz Paulo Vellozo Lucas, que foi prejudicado por Hartung em suas ambições políticas nesse período – e que até recentemente se manteve fiel ao projeto partidário e ideológico do PSDB –, é crítico à concentração de poder que ocorreu no Espírito Santo. “Eu dizia que, na democracia, o poder é um animal que não se reproduz em cativeiro. Ele precisa de debate. Precisamos discutir o que me une e o que me separa de você – e que fique claro para todo mundo.”
Com a aproximação das eleições de 2010, Hartung precisava escolher um sucessor. Tudo indicava que Ricardo Ferraço, seu vice, seria o candidato. A ideia era que Hartung se desincompatibilizasse do cargo de governador, deixando Ferraço no comando da máquina e com maiores chances de vitória. Quando chegou a hora de anunciar que ia deixar o Palácio, contudo, Hartung mudou de ideia.
“Ele fez todo mundo achar que sairia do governo para ser candidato ao Senado”, lembrou Vellozo Lucas. “Fez um livro, falando de seus dois mandatos. Fez uma sessão solene, que seria de despedida. A coluna de política da Gazeta anunciou: Paulo está saindo, vai ser candidato a senador. Ricardo já estava com a mudança para o palácio dentro do caminhão. Chegou no dia, o Paulo fez o discurso de despedida, botou o discurso no bolso e disse: tenho uma coisa para anunciar para vocês, eu não vou sair.”
Perguntei a Ricardo Ferraço se ele havia sido pego de surpresa pela decisão de Hartung, lá atrás, em 2010. “Claro que fui surpreendido. Todo nosso planejamento era na direção de que eu fosse candidato”, respondeu. “O Paulo é um homem imprevisível, politicamente falando. Em que pese ele ter qualidades, que não são poucas, é absolutamente imprevisível.” Essa característica, continuou Ferraço, acaba prejudicando quem está próximo, os aliados. “É como se você estivesse caminhando numa estrada. E, caminhando junto com você, um conjunto de aliados. Aí você faz que vai virar para a direita e vira para a esquerda. Ou o contrário. Gera muita confusão.”
Mais enfático, Vellozo Lucas diz que “certamente é mais fácil ser adversário de Paulo Hartung do que aliado”. “Não é que seja fácil ganhar dele. Ganhar dele é dificílimo. Ele é muito competitivo. Mas é muito difícil ser aliado dele.”
Haroldo Rocha afirma que o ex-chefe “surpreende muito as pessoas porque ele guia a própria vida”. Rocha admite que isso provoca reações. “Às vezes as pessoas falam: ‘Pô, ele só pensa nele.’”
O próprio Hartung, ao comentar a insatisfação de ex-aliados, me disse que em certo momento ganhou corpo no Espírito Santo a queixa de que ele não cumpria acordos. “Tinha uma época que era um inferno, isso. Eu quase acreditei. ‘Não cumpre acordo, não façam um acordo com ele porque ele não cumpre.’ Aí eu tive que fazer uma frase: não é que eu não cumpra acordo, é que eu sou ruim de fazer acordo; quando fizer, eu cumpro.”
Ainda em 2010, depois de ter desistido de passar o governo para Ricardo Ferraço, Paulo Hartung anunciou que ia apoiar Renato Casagrande, do PSB, então senador, para o Palácio Anchieta. Segundo Hartung, a decisão foi tomada com base em pesquisas eleitorais, que indicavam maior chance de vitória para Casagrande.
“Eu preparei meu sucessor, que era o meu vice”, contou Hartung. “Ele foi importante no governo inteiro. Só assumiu missão estruturante no governo. No ano eleitoral, as primeiras avaliações que fizemos com pesquisa davam bons sinais para o Ricardo. Quando o processo entrou mesmo, ele estagnou nas pesquisas, e o Renato Casagrande veio subindo. Como essa decisão foi tomada? Eu e ele, Ricardo. Abrimos a pesquisa, lemos juntos.”
Hartung acabou apoiando um político que, embora fizesse parte de sua grande rede de sustentação, não era o seu “plano A”. Diante da insistência de Casagrande em ser candidato, e apesar da manifestada preferência inicial por Ferraço, o governador escolheu abraçar o projeto que tinha mais chances de vitória.
A estratégia deu certo. Foi mais uma eleição vencida por Hartung, apoiando o político que depois ele viria a retirar do poder. Das eleições de que participou diretamente, como candidato, Hartung venceu todas. Em 2010, Vellozo Lucas também concorreu ao governo do estado, pelo PSDB, contra Casagrande, e perdeu.
“Na minha convivência com Paulo, aprendi que não se deve confiar num político que nunca perdeu eleição”, ele me disse, no Rio. Por quê? “A vida na política é ganhar e perder. Você tem convicções. Às vezes você está mais forte, às vezes está mais fraco. Às vezes você perde, às vezes você ganha. Alguém que nunca perdeu é porque mudou muito de lado. Fez o que foi necessário para não perder. Esse é o maior problema quando eu olho a história de vida do Paulo. Das muitas coisas boas que ele fez, e das ruins.”
No dia seguinte àquele em que tomou posse para o terceiro mandato, em janeiro de 2015, Paulo Hartung fez um decreto estabelecendo “diretrizes e providências para contenção de gastos”, naquele ano, no governo do Espírito Santo. O documento é minucioso. Em meio às muitas determinações, ficou famosa, entre os capixabas, a ordem para que se suspendesse a contratação de “serviços de coffee break” em eventos, recepções ou homenagens.
Especificamente quanto à contenção de custos com pessoal, a peça continha duas diretrizes importantes. Numa delas, estabelecia a meta de redução em 20% do total despendido pelo Poder Executivo com o pagamento de servidores comissionados, no prazo de sessenta dias. Servidores comissionados não precisam realizar concurso para assumir postos na administração pública; são por definição livremente indicados pelos mandatários de turno – o que faz deles um contingente facilmente demissível, em contraste com os funcionários efetivos, concursados, que têm estabilidade no emprego. O problema é que eles representam, em geral, um universo pequeno da folha de pagamento. Segundo dados da Secretaria de Gestão, havia no Espírito Santo, em dezembro de 2014, 3 406 comissionados, para um total de 62 037 servidores ativos do Poder Executivo. Se o ajuste exigido fosse feito com um corte de 20% nesse número, teria como resultado a demissão de pouco menos de 700 pessoas.
A segunda diretriz de economia de custos com pessoal estabelecida por Hartung tinha como alvo um outro grupo de funcionários, servidores que mantinham um vínculo empregatício bastante peculiar com a administração pública. No decreto, ele determinava a redução, também em sessenta dias, de no mínimo 20% do “número de contratados em regime de designação temporária” – ou seja, gente contratada por prazos curtos de tempo, que a princípio deveria ser nomeada apenas em casos excepcionais, para cobrir a ocasional ausência de servidores efetivos, até que um novo concurso fosse realizado.
Se uma determinação como essa fosse imposta ao Rio de Janeiro em 2014, seu impacto seria muito pequeno para a contenção de gastos. Ela diria respeito a um universo de não mais do que 3% do total de servidores do estado, ou cerca de 5 500 funcionários, segundo dados contidos na Pesquisa de Informações Básicas Estaduais, do ibge.
No caso do Espírito Santo, contudo, os funcionários em regime de “designação temporária”, segundo a Secretaria de Gestão local, eram pouco mais de 22 mil em dezembro de 2014, logo antes de Hartung tomar posse, em meio a um total de pouco mais de 62 mil servidores ativos do Poder Executivo. Ou seja, cerca de 36% de todos os funcionários do Poder que mais emprega. Aproximadamente um terço das pessoas que trabalhavam para o governo do Espírito Santo não eram, a rigor, funcionários públicos efetivos. Não tinham os mesmos direitos. Cortar pelo menos 20% de 22 mil trabalhadores faz uma boa diferença na hora de se fazer ajuste fiscal. Ajuda, facilita bastante o trabalho de quem precisa conter gastos.
“Efetivo você não pode reduzir, é uma dificuldade”, disse Dayse Lemos, que foi secretária de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2015 e 2018. “Então a gente reduziu naquilo que era possível. Foi isso que ajudou a reduzir o valor total da folha.”
Nos anos mais duros da crise, 2015 e 2016, quando o Espírito Santo precisava fazer uma redução rápida e profunda de gastos, a gestão Hartung conseguiu cortar mais de 7 mil postos de trabalho no Poder Executivo. Uma baixa de 12% na quantidade de servidores em apenas dois anos – um sonho para qualquer estado brasileiro em dificuldades, mas inacessível para muitos deles.
Desse total de cargos eliminados naqueles dois anos, 497 corresponderam a cortes entre os comissionados; 2 937 a postos efetivos, gente concursada que se aposentou e não foi reposta; e 3 719 à eliminação de postos entre as designações temporárias.
Há muitos anos o Espírito Santo se destaca como um dos estados que mantêm as maiores frações de “temporários” entre os seus servidores. Perguntei a Vânia Pacheco, gerente da Pesquisa de Informações Básicas Estaduais, no ibge, se a quantidade de funcionários capixabas em regime temporário lhe chamava a atenção. “Bastante”, ela me disse. “Mas eu não tenho como lhe dar uma explicação” de por que isso é assim, informou.
Haroldo Rocha, o secretário de Educação sob Hartung, tinha a explicação. Os professores e demais funcionários da sua pasta sempre representaram uma das maiores frações de funcionários a serviço do estado – e há muito tempo cerca de 60% ou mais deles são temporários. “Somos campeões, disparado. Tem décadas que nós somos o número 1 em quantidade de temporários”, comentou Rocha, na primeira vez que nos encontramos, em Vitória. “É excelente, isso.”
Além de ser facilmente cortável, esse grande contingente de funcionários com vínculo precário também ajuda no controle das despesas com inativos, um pesadelo na maioria dos estados brasileiros. “Ele não é efetivo, não é funcionário público, não alimenta a despesa de aposentados.” Quando um efetivo se aposenta e não é substituído, ainda assim ele continua a pesar nas contas do estado, só que na folha de inativos. No caso dos temporários, um cargo cortado é um custo total que é eliminado.
A maior margem de manobra do Espírito Santo para ajustar gastos com pessoal entre 2015 e 2018 só foi possível, me disse Haroldo Rocha, por uma política de contenção das contratações por concurso – e manutenção do largo uso de funcionários temporários – propositalmente perseguida por Hartung em seus dois mandatos anteriores, entre 2003 e 2010. A prática que ajudou o estado a fazer o ajuste fiscal remontava ao tempo do controle da Assembleia por um grupo de parlamentares corruptos – quando deputados eram “donos” de centenas de cargos na educação, e empregavam pessoas em troca de votos –, mas foi mantida, deliberadamente, nos dois primeiros mandatos de Hartung. “Uma coisa que foi gerada de forma ruim”, explicou Rocha, acabou se tornando um fator positivo nas mãos dos gestores locais, a seu ver, nas duas últimas décadas.
“Isso é uma coisa que a gente herdou lá dos anos 90, mas aí, nos nossos oito anos de governo, a gente aprofunda isso. Podíamos ter feito o outro movimento. Criado cargos. Mas não é isso que a gente achava que ia resolver o problema”, argumentou. “Nesses oito anos de governo, o govenador controlava com mão de ferro a realização de concursos.”
Evitaram assim, segundo Rocha, cometer um “erro estrutural” praticado em outros estados. “O que é erro estrutural? É entupir de pessoal efetivo”, os funcionários públicos concursados, com todos os direitos previstos. “Erro básico, o que mais se comete. Porque a despesa com pessoal, seja ativo, seja inativo, ela tem uma inércia de crescimento. Tendo receita ou não. Mas, se você tem um peso grande de temporários, você vai lá e ajusta.”
Os números confirmam a história contada pelo ex-secretário. Em dezembro de 2002, às vésperas de Hartung tomar posse para o seu primeiro mandato, havia 25 150 temporários entre os pouco mais de 62 mil funcionários ativos do Poder Executivo. Resultado em grande medida, segundo os relatos de Lelo Coimbra e Haroldo Rocha, das práticas espúrias dos deputados corruptos locais. Oito anos depois, em dezembro de 2010, quando Hartung estava prestes a passar o poder para Casagrande, tanto o número total de funcionários quanto o de designações temporárias no Poder Executivo haviam caído – eram 55 917, ao todo, e 20 335 temporários. Mas a proporção de temporários sobre o total permanecia alta: 36%, em 2010, contra 40%, em 2002.
Quando consultei Hartung sobre esse fato, ele me disse que a circunstância de terem uma fração grande de funcionários por designação temporária “sempre ajuda”. “Por quê? Também o impacto sobre o conjunto de aposentados é menor. São aposentados do INSS. Não é pelo fundo público, aqui, que são pagos, pela aposentadoria do estado. Essa transição vem lá de trás, desde o estado desorganizado da década de 90. Ao invés de fazer grandes concursos públicos para poder repor, nós optamos, de caso pensado, pela estratégia de não fazer isso. Fizemos concursos públicos de forma homeopática, de dois em dois anos. Recrutando lentamente.”
O deputado estadual Sergio Majeski, do PSB, é professor e um crítico severo do excesso de servidores temporários no Espírito Santo. Segundo ele, os docentes que têm esse tipo de vínculo empregatício com o estado têm menos garantias até mesmo do que funcionários da iniciativa privada.
“A legislação não ampara esses trabalhadores. O estado pode cortar esse vínculo na hora que ele quiser. O temporário não tem segurança nenhuma. É um sucateamento do trabalho.” Esse tipo de prática, além disso, é inconstitucional, ele disse. “A Constituição deixa muito claro que designação temporária é o que o nome diz: trabalhos temporários em circunstâncias excepcionais. A educação não se enquadra em nenhuma dessas duas coisas. De forma nenhuma um estado poderia manter esse índice de designações temporárias.”
Pressionado pelo Ministério Público, o governo estadual aprovou uma lei, no final de 2015, que segundo a secretária Dayse Lemos “disciplina as contratações temporárias”. O objetivo do documento é fazer com que a parcela de servidores temporários no estado caia ao longo do tempo. “Mudamos também a forma de seleção. Era por indicação. Agora existe um processo seletivo simplificado”, disse Lemos.
Regis Mattos Teixeira, que foi secretário de Economia e Planejamento no último mandato de Hartung, admite que o largo uso de servidores temporários gera “questionamentos”, mas defende o recurso a funcionários com esse tipo de vínculo, no lugar de funcionários públicos concursados. “Do ponto de vista da gestão, as designações temporárias facilitam muito.”
Mattos Teixeira, como Haroldo Rocha e Dayse Lemos, disse que a grande proporção de temporários ajudou no ajuste fiscal. “De cerca de 60 mil servidores, no total, foram 4 mil que saíram, logo nos primeiros meses”, afirmou. “O fato de ter um número proporcionalmente maior de servidores em designação temporária nos deu a condição de reduzir esse número. Os estados que não têm temporários ou têm pouca designação temporária não teriam essa margem, ou teriam uma margem menor.”
Apesar dos cortes de professores – e da grande parcela de funcionários temporários entre os docentes –, o trabalho de Hartung e de Haroldo Corrêa Rocha à frente do ensino público capixaba é celebrado por especialistas. Entre 2013 e 2017, nenhum outro estado avançou mais no Ideb – o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, que mede as taxas de aprovação e o desempenho dos alunos – do ensino médio do que o Espírito Santo.
Desde 2015, avaliações constantes do conhecimento dos estudantes, feitas várias vezes por ano, passaram a informar os funcionários da Secretaria de Educação dos ajustes e correções necessários em cada escola. A mudança na qualidade de gestão do sistema de ensino ajuda a explicar o salto do estado, e o relativo bom desempenho dos alunos capixabas em português e matemática.
Haroldo Rocha defende que foi possível fazer mais – melhorar a qualidade da educação – com menos – um número menor de docentes – porque a fração da população em idade escolar tem diminuído no estado. “Tinha professor sobrando antes”, disse. “Como a matrícula está caindo, nós ficávamos com salas de aula vazias.”
As relações entre política e gestão da educação estiveram em pauta num seminário promovido pela ONG Todos pela Educação em fevereiro, em São Paulo. Paulo Hartung estava entre os convidados a falar, num evento que reuniu os principais especialistas da área. Outro palestrante era o cientista político norte-americano Ben Schneider, professor do MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Diante do ex-governador capixaba, Schneider defendeu que não bastam “campeões da educação” – políticos e gestores que implementem reformas positivas – para que as boas práticas de ensino tenham efeitos duradouros. Sistemas partidários fortes, afirmou o cientista político, são fatores importantes para o sucesso de reformas educacionais, que em geral exigem sucessivos governos para serem bem implementadas.
O cientista político brasileiro Fernando Bizzarro, doutorando em Harvard e especialista em partidos, argumenta que legendas fortes contribuem para o sucesso de reformas difíceis por alargarem o horizonte de atuação dos gestores públicos. Algumas mudanças enfrentam fortes resistências e têm custos imediatos altos. O exemplo típico é o da promoção de novas regras para a Previdência, mas a mesma lógica vale para reformas educacionais, que também sofrem oposição de interesses corporativos. Partidos sólidos, capazes de impor disciplina programática aos seus líderes, contam com a possibilidade de colher no futuro os frutos de políticas que demoram a se materializar – ou de serem cobrados por eventuais descasos. Estão mais propensos, portanto, a arcar com o ônus imediato dessas iniciativas.
“Digamos que o que explica as escolhas do Hartung sejam características idiossincráticas dele”, declarou Bizzarro. “Se ele vai embora, termina o mandato, não tem nada que nos garanta que aquelas políticas vão continuar. Elas estavam ali por causa do Hartung. Agora imagina o que aconteceria se fosse um partido a organizar essas políticas. Você pode ter um governo do Fernando, mas eu estou ali como um líder do partido. Aquelas políticas são as políticas do partido. Se eu por algum motivo sou removido, amanhã o partido está lá – e vai insistir para que aquelas políticas continuem.”
Paulo Hartung havia admitido, na primeira entrevista que me concedeu, que nunca foi “bom de partido”. “Você vai conversar por aí e vai descobrir isso rapidamente. Eu nunca fui organizador de partido. Sempre tive dificuldade com isso.”
Em parte, Hartung se comportou de acordo com os incentivos que recebeu, seguindo as regras que delimitavam as suas possibilidades de escolha. Suas muitas mudanças de partido, antes de concorrer pela primeira vez ao Palácio Anchieta, por exemplo, correspondem bem ao que Fernando Bizzarro descreve como a dificuldade que as legendas têm, no Brasil, de controlar as elites locais – essas lideranças podem mudar com muita facilidade de sigla e escolher para onde levar os seus votos, dentro da ampla oferta partidária do país, uma das maiores do mundo.
O frágil comprometimento partidário de Hartung continuou, de toda forma, depois que ele chegou ao poder, motivo de reclamações entre aliados e ex-aliados. Nas eleições municipais de 2016, Lelo Coimbra, do PMDB, mesmo partido do então governador, decidiu se candidatar à Prefeitura de Vitória. Na verdade, Coimbra não era apenas da mesma legenda do mandatário. Espécie de fiel escudeiro de Hartung, ele havia acompanhado o líder capixaba desde os tempos do movimento estudantil, mudado de sigla a cada movimento de Hartung, seguindo sempre os seus passos, além de ter sido seu vice-
governador, entre 2003 e 2006. Apesar de toda a fidelidade do peemedebista, Paulo Hartung não o apoiou em 2016.
Quando questionado sobre essa escolha, Hartung ofereceu a mesma explicação que dera no caso de Ricardo Ferraço, seu vice e também correligionário, em 2010: tinha pesado as chances eleitorais do aliado, e elas não eram boas. “Eu pedi para ele não ser candidato. Ele não tinha vocação para a disputa majoritária. Eu disse isso a ele como estou te dizendo. De maneira direta. Não é fácil eleger o Lelo.”
Coimbra se lançou, mesmo assim, mas não chegou ao segundo turno, disputado entre Amaro Neto, apresentador de um programa policial na tevê, e Luciano Rezende, antigo aliado de Hartung que, como Casagrande, como Vellozo Lucas, também havia rompido com o governador. Ao comentar o resultado parcial dos votos em Vitória, no dia das eleições, o jornalista Gerson Camarotti afirmou, na GloboNews, que Amaro Neto tinha o apoio de Hartung. Recebeu então a mensagem – que havia partido, segundo o jornal A Gazeta, do próprio Hartung – de que o então governador não tinha apoiado ninguém naquela eleição. O jornalista fez o registro, diante das câmeras, mas não perdeu a oportunidade de observar que de toda forma Hartung havia deixado de apoiar o candidato de seu próprio partido, Lelo Coimbra, “o que é igualmente muito ruim”.
Em 2018, Hartung voltaria a desagradar aliados, ao adiar até o limite de todos os prazos a decisão de concorrer ou não à reeleição. Afinal, preferiu desistir. Sem candidato forte para o Executivo, mas também como resultado dos ventos anti-establishment que varreram a política brasileira, muitos dos antigos aliados de Hartung foram derrotados nas urnas.
Lelo Coimbra, que tentava se reeleger deputado federal, perdeu o cargo. O mesmo destino teve o vice-governador, César Colnago, que também postulava uma vaga na Câmara. Ricardo Ferraço havia recebido o pedido de Hartung, na undécima hora, para que concorresse ao governo, mas considerou que seria uma aventura lançar-se ao Palácio Anchieta de improviso. Manteve a candidatura ao Senado, e também perdeu.
“O Paulo é engraçado”, me disse Ferraço, em Vitória, no início deste ano. “Depois que ele deixou de ser candidato, depois que me convidou para ser candidato e eu não topei, ele se afastou. Nós vivíamos um processo eleitoral, e era mais ou menos como se não fosse com ele. Ele tocou o dia a dia do governo como se não houvesse eleições. Continuou focado no mandato. Tanto que o vice dele perdeu eleição para deputado federal. Não tem precedente de vice-governador que tenha perdido para deputado federal.”
Mais tarde, na mesma conversa, Ferraço voltaria ao tema do comportamento de Hartung. “Rapaz, acho que o Paulo nessas horas liga o ‘foda-se’ e trabalha em torno daquilo que é mais importante para ele. Não importa o que vai acontecer com os aliados. O Paulo assistiu à luta eleitoral como se não fosse com ele. Ligou o velho e tradicional ‘foda-se’. Conhece isso, não?”
O ex-vice-governador afirma, contudo, que o saldo dos anos de Paulo Hartung como gestor é louvável. “Independente dessas características do ex-governador, que eu não considero saudáveis, o saldo do que ele fez e do que ele liderou no estado é muito positivo”, me disse Ferraço.
Lelo Coimbra tem avaliação semelhante. Declarou não ter ressentimentos. “Na política, quem guarda mágoas acaba amarrando o pé no passado.” Também disse que o balanço da trajetória de Hartung – e do seu grupo de aliados e ex-aliados – era superavitário: “Acho que a história de todos nós tem um delta muito positivo.” Feitas as contas, tudo somado e subtraído, o ex-governador ficava no azul. J
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