Jean-Luc Godard, nos anos 1960: “Ele já não aguentava muito ficar em pé”, confidenciou o dono de uma empresa de táxi que atendia o diretor e foi figurante em um de seus últimos filmes CRÉDITO: AFP PHOTO_1960
Pelo contrário
Como o diretor Jean-Luc Godard planejou sua morte
Ariane Chemin | Edição 196, Janeiro 2023
Tradução de Claire Laribe
De Rolle, Suíça
“Roland? É Anne-Marie.”
A voz de Anne-Marie Miéville, mulher do cineasta Jean-Luc Godard, ecoou no telefone.
“Espero que seja notícia boa, e não uma notícia ruim”, disse o Roland Tolmatchoff, do outro lado da linha.
“Um pouco de ambas”, respondeu Miéville. “Vou te passar Jean-Luc.”
Quando alguém escolhe se preparar para a morte, tem tempo de ordenar a “valsa do adeus”. Godard ligou para Tolmatchoff talvez porque o ex-ator, assistente de direção, vendedor de ioiô, frequentador de feiras de antiguidades e livreiro suíço de 92 anos era o seu amigo mais velho (alguns meses apenas) e possuía a mesma coleção de lembranças do século passado: eles tinham 20 anos em 1950. E lá estava aquela voz única a ressoar no aparelho do velho senhor, ao mesmo tempo trêmula e grave, de tantos charutos fumados, abrandada por um ligeiro ceceio e um leve sotaque suíço.
“Roland, um abraço, vou embora.”
Godard morreu na manhã de 13 de setembro, aos 91 anos, após recorrer a um suicídio assistido, como autoriza a legislação da Suíça, país onde morava, na cidade de Rolle. Algumas semanas depois, na casa de repouso onde vive em Genebra, Tolmatchoff, nascido em Kharkiv, na Ucrânia, retomou o fio de sua vida e sua amizade com o cineasta da nouvelle vague.
Tolmatchoff tinha 8 anos quando, em 1938, sua mãe, fugindo dos bolcheviques, o levou com seus irmãos para o exílio na Suíça. “Acho que o meu pai, um ucraniano puro, contrário aos expurgos de Stálin, escritor diplomata que por francofilia me deu o nome do escritor Romain Rolland, foi devorado por lobos após escapar de uma prisão nas Ilhas Solovetsky, no Mar Branco”, conta ele. Com a sua longa barba branco-prata e o cabelo desgastado, Tolmatchoff se parece com Gandalf ou Saruman, os magos de O Senhor dos Anéis.
Durante a década de 1950, o Parador, um salão de chá na Place de Rive, em Genebra, era o reduto de um pequeno grupo que vivia apenas para o cinema. Godard, um jovem dândi meio suíço, meio francês, com óculos esfumaçados, era um deles. Cinéfilo autodidata, Tolmatchoff impressionou Godard com a sua audácia para com as meninas e o seu “arquivismo mental”: “Eu sabia de cor os créditos de qualquer filmeco, os nomes dos assistentes, técnicos de iluminação e decoradores.” Os dois amigos amavam os poemas de Jules Supervielle e os filmes de Marcel Carné e Julien Duvivier.
Na “caixa do tesouro” de Tolmatchoff – uma caixa de papelão guardada debaixo da cama hospitalar –, encontram-se algumas relíquias emocionantes dessa juventude emaranhada uma na outra, como dois ingressos do Palace, cinema em Lausanne com mais de meio século de idade. Os ingressos são de 1960, ano em que Godard estava filmando O Pequeno Soldado, seu segundo longa-metragem, e tinha arrolado Tolmatchoff como assistente. Certa manhã, o diretor cancelou as filmagens e mandou os técnicos e atores para casa. “Bem, o elenco era formado por minha mãe, minha irmã e minhas amantes da época”, conta Tolmatchoff. “Eu tinha escalado todo o elenco.” O motivo da suspensão das filmagens era que Godard havia marcado um encontro no cinema com Anna Karina, a estrela do seu filme. Em um dos dois ingressos cor-de-rosa, Godard escreveu: “Eu amo.” No outro: “Anna.”
Um ano depois, o ucraniano foi testemunha do casamento de Godard com Karina. Em 1967, voltou a ser testemunha de outro matrimônio do cineasta, agora com a atriz e futura escritora Anne Wiazemsky. Os dois casamentos foram realizados em Begnins, na Suíça, uma cidadezinha rica, verde e elegante, com uma vista límpida do Lago Léman. Na época da sua primeira união, o diretor de Acossado (1960) foi perseguido pela revista Paris Match, que fez uma chamada de capa das núpcias. “O prefeito tinha como escritório uma sala do albergue comunitário, ou seja, a Prefeitura era um bistrô”, conta Tolmatchoff. “É por isso que Godard escolheu a cidade duas vezes. Ele também queria se casar com Marina Vlady [atriz de seu filme Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela, de 1966], mas não deu certo.” Um pouco mais tarde, Godard dirá: “Anna Karina, Anne Wiazemsky […] desempenharam um papel nos meus filmes, Anne-Marie Miéville desempenhou um papel na minha vida.” Um comentário não muito elegante.
Godard passou a infância entre o 16e arrondissement parisiense e o cantão de Vaud, onde fica Begnins, cidade na qual seu pai, um médico, havia se estabelecido. Miéville nasceu e cresceu na Suíça, em uma família da pequena burguesia relojoeira, e casou-se com o publicitário francês Philippe Michel. Ela se tornou fotógrafa por ativismo: administrava a livraria Palestine, em Paris, encontrou Godard em 1972 e codirigiu com ele Aqui e em Qualquer Lugar (1976), uma reflexão sobre a manipulação das informações, a partir do caso palestino. Tornou-se companheira e cúmplice do diretor em uma dúzia de filmes, como Salve-se Quem Puder (A Vida), de 1980, Paixão, de 1982, Carmen de Godard, de 1983, e Detetive, de 1985 – época em que ela passou a assinar sozinha os seus próprios filmes. Eles se casaram em segredo, talvez doze anos atrás, segundo apuração do New York Times, ou seja, muito tempo depois de se conhecerem e se estabelecerem em Rolle, na metade dos anos 1970.
Por que escolheram Rolle? “Porque não está em lugar nenhum”, costumava responder Godard, que pensava ser a Suíça, por si só, com seus lagos, cidades, encostas, montanhas e céu, um cenário ideal de cinema. A 15 km de distância de Rolle fica a bela Nyon: Tintim passou por lá em O Caso Girassol, Pablo Neruda escondeu na cidade os seus casos de amor, os amantes de canções vão para lá nos festivais de verão. Quando criança, Godard jogou futebol ali e percorreu trilhas da região com os escoteiros. Rolle, por outro lado, é uma cidade que se atravessa sem fazer uma parada, como ocorre com os trens diretos de Genebra a Lausanne, que passam pelas plataformas da estação lançando um apito estridente antes de desaparecer.
Os 6 mil habitantes de Rolle parecem todos inclinados à vida burguesa, com suas casas confortáveis, situadas em ruas silenciosas, com seus pet shops, oficinas de ioga, de meditação, de “coaching emocional”, reflexologia podal. Breathe Life (Respire vida) diz um letreiro publicitário na Rue du Nord, a algumas centenas de metros da pequena casa de Godard, na Rue des Petites-Buttes, entre um templo protestante e uma igreja evangélica: duas sentinelas religiosas que pareciam vigiar Godard, à revelia dele, um descendente da grande família huguenote [protestante de orientação calvinista] Monod, os ricos fundadores do Banco de Paris e dos Países Baixos.
Para encontrar essa casa, não conte nem com a vizinhança nem com os aposentados passeando com seus cães, atividade que o próprio Godard costumava fazer, conduzindo Loulou-tout-fou (Lulu louquinho) ou Roxy. “Rolle é ainda mais discreta do que o restante da Suíça”, resumiu um comerciante da Grand-Rue. Não importa. O derradeiro lar do cineasta apareceu em seus últimos filmes e até mesmo nos de colegas que vieram à Suíça para conversar com ele ou implorar por uma unção. Uma cena do documentário Visages, Villages (Rostos, vilarejos), de Agnès Varda e JR, filmada em 2016, se tornou cult. Varda, que morreu em 2019, chora ao encontrar a porta do mestre fechada e um bilhete escrito para ela. Godard deu mesmo o cano, ou foi mera encenação?
Rue des Petites-Buttes. As persianas estavam fechadas – muitas vezes estavam assim quando Godard vivia. Depois de sua morte, os fãs desenharam haicais nas janelas de uma varanda cuja tinta está descascando: “JLG 4ever”, três iniciais que ficaram famosas por causa do autorretrato do diretor, JLG por JLG, filme lançado em 1994. Um girassol foi pendurado na janela. Sobre a caixa de correio, um buquê de plumas foi colocado em uma caneca estampada com uma reprodução ruim de Retrato de Clóvis Gauguin (A Criança Adormecida), de Paul Gauguin.
Em 1997, em Nós Ainda Estamos Todos Aqui, o penúltimo longa-metragem de Miéville, uma mulher (interpretada por Aurore Clément) diz ao seu companheiro (interpretado por Godard): “Eu amo o homem que você é, mas nem sempre posso suportar você.” A mulher do cineasta vive a 350 metros de distância, mas na frente da casa dele os nomes dos dois permanecem juntos, como nos créditos de um filme: JL Godard/AM Miéville.
“Como imaginar que ele não tenha tomado com ela a decisão desse suicídio programado?”, interroga o crítico de cinema Gérard Lefort, da revista Les Inrockuptibles. Havia muito tempo que Godard falava sobre sua morte, que flertava com ela, mas ressuscitava, arrojado e cheio de vida. Na juventude, às vezes batia a cabeça contra a parede de maneira estranha. Morto de ciúmes de Anna Karina, cortou seus ternos com uma navalha e fingiu cortar as veias. “Eu lembro que em duas ocasiões o diretor Eric Rohmer e eu, preocupados por não termos notícias dele, o procuramos por Paris inteira”, recorda Tolmatchoff. Eles o encontraram em um apartamento barato na Rue de la Harpe, com um retrato de Humphrey Bogart aos pés. “Em outro dia, eu o segui até o térreo de um estúdio no Quai aux Fleurs, aonde ele ia regularmente”, perto da Catedral de Notre-Dame. Rohmer disse ter encontrado Godard, certa vez, coberto de sangue depois de terminar um caso de amor.
Perdemos a conta das falsas mortes de Godard. Em 1971, durante um acidente de mobilete na Rue de Rennes, ele quase morreu de fato: ficou preso entre as ferragens de uma van e foi preciso levantar o veículo com um macaco mecânico para tirá-lo de lá. A partir desse milagre ele fez, nove anos depois, Salve-se Quem Puder (A Vida). Em 2013, um boato se espalhou por Paris: Godard estava muito doente. “Uma jornalista do Libération chegou a procurar o crítico de cinema Olivier Séguret para pedir que preparasse o obituário”, lembra Lefort, que também trabalhou no jornal, o favorito de Godard. “Precisamos ter o obituário pronto na gaveta”, explicou a jornalista. “Olivier permaneceu em silêncio”, conta Lefort, e não escreveu nada.
Dessa recusa nasceu um livro, Godard Vif (Godard vivo, 2015), uma espécie de antiobituário que pode ser visto na mesa do diretor no documentário Até Sexta, Robinson, realizado em 2022 pela pintora e diretora iraniana Mitra Farahani. Ela capturou as últimas imagens do cineasta: por um estranho jogo do acaso, seu filme, produzido pelo francês Jean-Paul Battaggia e montado pelo suíço Fabrice Aragno, foi lançado nos cinemas em 14 de setembro, um dia após a morte de Godard.
Battaggia e Aragno acompanharam Godard quase até o fim. “Eles são minha equipe de direção, tanto a minha cabeça quanto as minhas pernas”, disse o diretor muitas vezes. “Duas fadas” é como Olivier Séguret descreve os dois, que foram para o cineasta “assistentes de direção, assistentes de produção, continuístas, secretários, figurinistas, eletricistas, montadores, chefes maquinistas, engenheiros do som, encarregados dos restaurantes, dos táxis, do dinheiro e das garrafas de água”.
Duas pessoas indispensáveis que, por “respeito” e por recusarem uma amizade fácil demais, mantiveram um distanciamento formal “tal como Frédéric Moreau e Madame Arnoux, no final de Educação Sentimental”, compara Aragno, de 50 anos, com sua voz suave, citando o romance de Gustave Flaubert. Nem ele nem Battaggia, aliás, eram godardianos históricos. “Quando Godard me pediu em 2002 para trabalhar com ele, eu era mais [Abbas] Kiarostami e [Michelangelo] Antonioni”, diz Aragno, em seu estúdio de criação, instalado em um antigo armazém industrial em Lausanne.
Essa dupla compartilhou com três outras pessoas um grupo de WhatsApp dedicado a Godard. “O clube dos cinco”, conta, comovida, Matilde Incerti, assessora de imprensa do diretor desde Elogio do Amor (2001) e membro do grupo. Farahani também faz parte do grupo, assim como Nicole Brenez, historiadora e teórica de cinema que Godard conheceu sete anos atrás – maravilhado com a cultura e a destreza dela para encontrar arquivos, apelidou-a de “minha documentarista”. Essas pessoas – o mesmo número dos dedos de uma mão – eram como vigias zelando por ele. O grupo foi chamado de “Pelo contrário”, duas palavras com as quais Godard sempre gostava de começar suas frases, como se lançasse de imediato uma promessa de disputatio, de briga, de polêmica.
Tal como ocorre com pessoas facilmente irônicas, críticas e briguentas, Godard já não suscitava tantas lealdades. Suas provocações em 2014 para explicar que o ex-presidente socialista “François Hollande deveria nomear Marine Le Pen [líder da extrema direita] como primeira-ministra”, seus atrevimentos sobre os judeus como militante da causa palestina, cansativos para alguns, antissemitas para outros, haviam afastado muita gente. “A última vez que o visitei foi em 2015”, diz o ex-deputado Daniel Cohn-Bendit, camarada do diretor nos tempos de Maio de 68 e a quem Godard enviava uma mensagem todo dia 22 de março, aniversário dos protestos estudantis na Universidade Paris Nanterre, que deslancharam as manifestações na França em 1968. “Anne-Marie me agradeceu dizendo: ‘Ele é muito solitário e gosta quando as pessoas vêm visitá-lo’.” Essas palavras geralmente reservadas a idosos sem muitos amigos surpreenderam o ex-líder estudantil.
Foi entre 2014 e 2015 que, de repente, Godard começou a falar da velhice. Ele não jogava tênis havia cinco anos por causa de uma dor no joelho. Diante de Olivier Séguret, que estava de visita a Rolle, o diretor que na juventude plantava bananeira e andava com as mãos para impressionar suas namoradas, desabafou: “A gente sacrifica os animais, mas ninguém quer nos sacrificar, mesmo se a própria pessoa pede, nem mesmo um amigo médico… Claro, eu conheço um ou dois lugares onde às vezes digo a mim mesmo, quando ando por lá: ‘Eu poderia me jogar desse penhasco, seria uma morte certeira.’ Mas, ao mesmo tempo, penso cá comigo: ‘É assustador, vou ter medo de pular…’ Talvez, se eu fosse desta época, iria para o Oriente Médio – para uma ONG, não para os jihadistas, mas correndo riscos e esperando levar uma bala no lugar certo.”
Séguret não ficou chocado com essa confissão. O crítico de cinema Serge Daney (1944-92), sabendo que estava muito doente, uma vez lhe pediu, sem sucesso, para “arranjar para ele um pouco de digitalina”, como Séguret contou a Godard, que fez biquinho ao ouvir o caso. “Veneno eu não gostaria. Eu ficaria em dúvida sobre o resultado”, disse o diretor. Ele estava obcecado com o assunto. No mesmo ano, falou sobre isso ao jornalista Darius Rochebin, dessa vez para o grande público, na Televisão Suíça Romanda (TSR): “Se eu ficar muito doente, não quero ser arrastado num carrinho de mão. Muitas vezes pergunto ao meu médico, ao meu advogado: ‘Se eu lhe pedir barbiturato, não sei como se chama [ele queria dizer pentobarbital], ou morfina, você me daria um pouquinho?’” E lamentou nunca ter recebido uma resposta positiva.
Na época, ele confessava sentir-se “muito jovem” em sua cabeça. Milhares de projetos ainda jorravam da sua sala ou do seu ateliê repleto de pequenas câmeras e equipamentos digitais de última geração, na Rue des Petites-Buttes, em Rolle. “O corpo […] é interessante de acompanhar”, afirmou ele. Ao jornalista suíço até fingiu gostar de dissecar as evoluções físicas decorrentes da velhice, que, por sinal, tinha suavizado seu caráter. “O Jean-Luc Godard que tive a oportunidade de conhecer em 2015 queria rir, recorrendo a este savoir-faire que vemos em todos os seus filmes, em que ele vai do burlesco físico até o chiste mais sofisticado”, conta Nicole Brenez. “Ainda neste verão [na Europa, entre junho e setembro], Jean-Paul, Fabrice e eu recebemos por e-mail os enigmas e adivinhas que Jean-Luc inventava todos os dias.”
Mas, de repente, o cineasta parou de achar “interessantes” os estigmas do tempo. Ele já não tinha mais vontade de brincar. “O senhor Godard já não aguentava muito ficar em pé”, confidenciou Gino Siconolfi, proprietário da empresa de táxis Arc-en-Ciel, em Rolle, que fez corridas para o diretor durante vinte anos. “Perto do fim do verão, ele me disse que estava muito, muito cansado.” No fim de agosto, o cineasta lhe disse que aquela seria provavelmente “a última vez que passearia com seus cachorros à beira do lago” e até o estuário do Aubonne, como no seu penúltimo filme, Adeus à Linguagem (2014), no qual Siconolfi trabalhou como figurante. “Fiz duas cenas, não entendi bem o meu papel. Eu era o motorista de um homem importante.”
A decisão estava tomada desde o dia 3 setembro de 2022. “Ele vai embora”, anunciou Miéville a alguns amigos íntimos. “Ele pediu uma morte voluntária para escapar do infortúnio dos dias”, explicou Pierre Beck, ex-vice-presidente da associação Exit Suisse Romande,[1] escolhida pelo casal. “Desde 2013, as autoridades penais do nosso país autorizaram assistência ou suicídio para as pessoas que sofrem de polipatologias relacionadas à idade: perda de equilíbrio, da visão, da audição, todo esse conjunto de pequenas coisas que, isoladamente, não são necessariamente graves, mas que, juntas, tornam a velhice intolerável para alguns”, acrescenta Beck. “Não foi por causa de doença ou sofrimento”, confirma Séguret. “Ele estava exausto, deprimido e não podia mais trabalhar.”
Em 5 de setembro foi marcada a data: o suicídio assistido de Godard seria no dia 13 do mesmo mês. “Que não se veja na escolha da data algum sinal específico”, avisam seus amigos. No dia 11, um choque: outra glória do cinema suíço, o diretor Alain Tanner morreu em Genebra. O país estava de luto. Dois dias depois, o desaparecimento do franco-suíço Jean-Luc Godard ofuscou completamente o do diretor de A Salamandra. “Não tenho certeza, mas acho que tentei brincar com ele, dizendo: ‘Você não quer adiar a chegada do Exit?’ Mas, nesse tipo de coisa, quando está combinado, não há o que fazer”, conta Aragno.
Um dia antes da data marcada, Miéville avisou a alguns amigos próximos. Entre eles, Séguret e o jornalista Serge July, fundador do jornal Libération. July conheceu Godard por meio da sua ex-mulher, a jornalista e editora Blandine Jeanson, que, como atriz, fez três filmes com o cineasta. Em 2009, o próprio July foi corroteirista do documentário O Desprezo, sobre o filme feito por Godard em 1963, com Brigitte Bardot. Em Rolle, o homem que escolheu morrer, às vezes acrescentava algumas palavras às de sua mulher, na conversa com os amigos: “Adeus”, “Vou embora” ou, mais raramente, “Abraço”, como ele disse ao seu velho amigo Roland Tolmatchoff ao telefone.
Tolmatchoff colocou suas mãos compridas, com manchas da idade, em seu próprio rosto emocionado, como se fechasse uma cortina. Ele foi empresário do cantor Georges Moustaki e protegido do escritor Romain Gary em Los Angeles, mas, acima de tudo, em 1955, foi o belo ator de chapéu em Une Femme Coquette (Uma mulher faceira), curta-metragem de baixo orçamento rodado em 16 mm por Godard, baseado no conto O Sinal, de Guy de Maupassant. “Meu chapéu acabou na cabeça do [ator Michel] Piccoli e de muitos outros. Em Acossado, Michel Poiccard [interpretado por Jean-
Paul Belmondo] grita no carro as minhas onomatopeias quando eu dirigia o meu Opel Olympia ou o meu Galaxie.” Quando Poiccard diz “as garotas mais bonitas do mundo não estão em Londres nem em Estocolmo ou Paris, mas em Genebra ou Lausanne”, a referência, mais uma vez, é Tolmatchoff. Um dos amigos de Poiccard, aliás, tem o seu sobrenome. Todo esse passado conta na hora da despedida.
Poucos sabem o que aconteceu no dia seguinte, na cama de Godard, na casa de Miéville. E não são Aragno ou Séguret que vão contar. “Antes, eu trabalhava com marionetes. Não sou um falador, senão não estaria fazendo cinema”, avisa Aragno. Sabe-se que é necessária a presença de uma enfermeira e é costume recorrer a uma dose de 15 gramas de pentobarbital. “Um máximo de três minutos de sono antes de partir”, especifica Beck, da Exit Suisse Romande. Exit como “uma porta de saída, em caso de necessidade”, ele diz. Exit como o sinal luminoso que indica a saída em salas escuras: “É impossível que Jean-Luc não tenha pensado nisso”, diz Séguret, sorrindo.
“Ele está ao meu lado, acabou, ele está dormindo”, anunciou Miéville, na manhã de 13 de setembro, -para os amigos próximos. Às 9h58 (horário da França), o site do Libération publicou a notícia com exclusividade. Godard fez mais de cem filmes. Dentre os últimos, Adeus à Linguagem teve apenas 30 mil espectadores. Apesar de ter ganhado uma Palma de Ouro especial no Festival de Cannes, Imagem e Palavra (2018) foi exibido na França apenas no canal Arte. Mas há cenas de Acossado, Viver a Vida e O Demônio das Onze Horas – todos filmes dos anos 1960 – que se tornaram lendárias.
A notícia da morte do gênio deu a volta ao planeta. No Quiosque dos Amigos, em Rolle, Carmelo Conti, um ladrilhador local que foi até ali apostar em uma corrida de cavalo e nunca viu um filme de Godard, exibiu a foto que seu filho Tony lhe enviou de Los Angeles: mostrava o Nuart Theatre, em Santa Mônica, com um painel em letras vermelhas dizendo “Descanse em paz, Jean-Luc Godard”. “Todo mundo me conhece, mas ninguém viu meus filmes”, resumiu um dia o príncipe da nouvelle vague.
As mensagens começaram a chegar, algumas misteriosas, outras inesperadas. Em 16 de setembro, o jornal Le Monde publicou na página de obituários uma homenagem a Godard enviada de Milão: “Miuccia Prada lembra com emoção dos apelos intelectuais vividos por meio de seus filmes, que desempenharam um papel importante na própria formação cultural dela, e dos preciosos encontros que aconteceram ao longo dos anos”, disse a dona da grife Prada.
Pessoas próximas a Godard se lembram das longas manobras da bilionária de 73 anos para se aproximar do diretor sem dinheiro e tentar unir o nome da sua grife com o do expoente do cinema francês. Recordam-se em particular de um dia em que, devido ao mau tempo, o jato da estilista não pôde pousar perto de Rolle.
Um acordo foi feito em 2019. Dedicada à arte contemporânea, a Fundação Prada agora abriga, em Milão, uma reconstrução idêntica do ateliê suíço de Godard: o projeto Le Studio d’Orphée. O Leão de Ouro que Godard recebeu no Festival de Veneza, o seu último filme, o seu caderno e a sua escrita, os seus monitores de vídeo, “os últimos anos de sua vida estão ali, a sua vida está ali”, explicou Matilde Incerti, a assessora de imprensa do diretor. E também estão a raquete de tênis, a capa de chuva, um pequeno aspirador de pó Dyson. O suficiente para fazer alguém se perguntar, durante a visita: “Será que Godard não estava zombando um pouco da Prada e dos seus fãs?”
Pelo contrário… Nos anos 1980, Anne-Marie Miéville pensou se essas duas palavras não seriam, quando chegasse o dia, um epitáfio perfeito para o marido – no túmulo de um cemitério na Riviera suíça, como Vladimir Nabokov em Montreux ou Charlie Chaplin em Corsier-sur-Vevey? “Prefiro ser enterrado na floresta”, avisou Godard em 2019, durante uma entrevista à jornalista Elisabeth Quin, no canal Arte. Na floresta, sem caixão, na terra mesmo. “Mas eu não teria autorização para isso. Então, é melhor lançar minhas cinzas no lago. Afinal, é um pouco meu lago, já que [minha família e eu] vivíamos num vaivém entre Paris e a Suíça, e entre a Suíça e a Savoia”, região francesa fronteiriça onde seu avô materno tinha uma propriedade, entre as cidades de Yvoire e Thonon.
Ficou decidido que Godard seria cremado em 15 de setembro. “Fabrice e eu partiremos com a urna [levando as cinzas] num barco frágil”, disse Miéville, por telefone, a Tolmatchoff, como se se desculpasse por não levá-lo junto ao Lago Léman (o barco nem era tão frágil assim). Godard filmou tantas vezes os cais do “lago de Genebra”, como ele dizia, para irritar os franceses, com suas lanchas Riva e seus cisnes, suas bandeiras suíças vermelhas e brancas tremulando sobre o fundo azul – dá para imaginar o plano.
Alguns iniciados sussurram que se trata de uma referência à última frase de Sepulture South: Gaslight (1954), conto em que William Faulkner se lembra com meticulosa precisão das horas que antecedem o funeral de seu avô, e que Godard citou em 2017 em Grandeza e Decadência de um Pequeno Negócio de Cinema. Fala de “ossos vazios e pulverizados”, de “poeira inofensiva e indefesa”, de abolição das estações. Um pouco obscuro, mas uma coisa é certa: naquele dia de cinzas, caiu um temporal, a cor do lago mudou repentinamente, o vento começou a enrugar a superfície da água, e Godard voou para longe.
[1] Criada em 1982, a Exit Suisse Romande é uma entidade que oferece assistência e aconselhamento técnico aos cidadãos que pretendem exercer o “direito de morrer com dignidade” na Suíça.
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