Pero sin perder la broma
A revista que inferniza a monarquia espanhola se adapta aos tempos de crise
Fernanda Godoy | Edição 92, Maio 2014
Há 37 anos, todas as semanas o ritual se repete em Barcelona: ao redor de uma mesa, munidos de lápis e papel, os integrantes do conselho editorial de El jueves esboçam a capa da revista mais ferina da Espanha. A sátira resultante dessa catarse grupal já tirou do sério muitos políticos e até o rei Juan Carlos I, que acionou a Justiça para que fosse apreendida a edição 1 573, de julho de 2007, que retratava os príncipes Felipe e Letizia em ato sexual, supostamente o primeiro trabalho remunerado do herdeiro da monarquia. Explica-se: o governo socialista de José Luis Zapatero havia instituído um prêmio de 2 500 euros por bebê nascido no país.
Publicação de humor mais duradoura da história da Espanha, em outubro do ano passado El jueves comemorou sua longevidade ao atingir a marca de 1 899 edições, batendo o recorde de La Codorniz, extinta em 1978. Com uma circulação de 65 mil exemplares, aparece em nono lugar na lista das revistas semanais mais vendidas em 2013, segundo o relatório estatístico da imprensa realizado pela Associação para a Investigação de Meios de Comunicação da Espanha. Das oito publicações que a superam no ranking, sete são revistas de fofoca e celebridades, do tipo Caras.
“No início, em 1977, toda semana estávamos na Justiça. De repente, isso acabou. A Espanha se redemocratizou e passamos a ter problemas pontuais”, diz a diretora de redação, que atua na revista desde a primeira edição. Mayte Quílez tem 55 anos e mantém a forma com a atividade física que o medidor de frequência cardíaca no pulso direito denuncia. No rosto emoldurado por cabelos loiros curtos, destacam-se os olhos azuis vivazes, que fixam a atenção do interlocutor.
“sempre esteve um passo à frente, sempre disse as coisas na lata. Fizemos críticas à monarquia quando todo mundo a idolatrava. Hoje a máscara caiu, todos debocham da casa real”, diz o cartunista Maikel García, de 52 anos, há um quarto de século editor da página “Seguridasosiá”, que satiriza as condições de serviços como saúde pública e previdência social, e um dos cinco membros do conselho de redação de El Jueves [quinta-feira], que tem como slogan “A revista que sai às quartas-feiras”.
Em 2003, quando a publicação compilou piadas sobre a família real no livro Tocando los Borbones (um trocadilho com o sobrenome Borbón e a expressão “tocando los cojones”, que significa “enchendo o saco”), as principais emissoras de tevê se negaram a veicular anúncios. De lá para cá, escândalos como denúncias de fraude fiscal, lavagem de dinheiro e malversação de recursos públicos atingiram o genro do rei, Iñaki Urdangarin, e tisnaram a imagem da infanta Cristina, que enfrentou o constrangimento de repetir centenas de vezes, em depoimento à Justiça, que “confiava no marido”.
O excesso de gastos e a extravagância das viagens de Juan Carlos em caçadas na África acabaram provocando, em tempos de crise e arrocho dos demais gastos públicos, uma corrosão na credibilidade da família real. Em abril de 2013, a monarquia espanhola recebeu sua nota mais baixa na história, 3,68 (o máximo é 10) no barômetro do CIS (Centro de Investigações Sociológicas, órgão estatal de pesquisa). Hoje, vigora uma onda de programas, como o Polònia, da TV3 da Catalunha, e sites de humor, como elmundotoday.com, dedicados a escrachar a realeza.
A crise econômica, política e social dos últimos cinco anos aguçou o senso de humor dos espanhóis, que cobram uma crítica cada vez mais aguda. Os recorrentes malfeitos, porém, muitas vezes deixam exasperados os editores de publicações como El Jueves, com a sensação de que todas as blagues já foram feitas, de que os corruptos e os ineptos foram satirizados à exaustão.
“É preciso reprocessar a notícia, fazê-la passar pelo humor, e isso às vezes é complicado”, diz Mayte. Enérgica, ela comanda uma equipe de quarenta colaboradores e tenta pôr ordem no caos do universo masculino dos caricaturistas, sem prejuízo de um processo de decisão consensual, nada hierárquico. Segundo a diretora, os últimos tempos têm trazido tantas más notícias que frequentemente os desenhistas chegam mal-humorados à reunião, num estado de espírito pouco propício a fazer rir.
Com a crise, que deixou 6 milhões de desempregados (em torno de 25% da força de trabalho do país), multiplicaram-se as páginas de assuntos de atualidade, em detrimento daquelas dedicadas a personagens clássicos da revista, dos quais o mais antigo é “Martínez, el facha”, uma pilhéria com os fascistas saudosos do regime do “generalíssimo” Francisco Franco.
“Estamos cansados da corrupção, da crise, do desemprego. Sentimos falta de uma capa um pouco mais festiva, mas a realidade é o que é”, desabafou Mayte. Segundo pesquisa do CIS realizada em março, a corrupção é a segunda maior fonte de preocupação dos espanhóis (41%), atrás apenas do desemprego (82,3%), em entrevistas com respostas múltiplas. Os políticos aparecem de novo na lista dos problemas cruciais do país, com 26%, muito à frente de temas como saúde, educação ou imigração.
Maikel observa que El jueves começou sua carreira em plena transição para a democracia, após a morte de Franco, em 1975, uma fase em que a política enchia de esperança a sociedade espanhola. “Havia a sensação de que era possível consertar as coisas. Agora experimentamos o contrário: a política é uma merda, está coalhada de corruptos; é um problema, mais que uma solução”, diz o chargista.
“El Jueves é um retrato da sociedade. As pessoas agora são mais jovens durante mais tempo. Casam-se mais tarde, têm filhos mais tarde, então também compram a revista durante mais tempo”, diz Mayte, acrescentando a frase que é uma espécie de slogan autoirônico da revista: “A Espanha está cheia de ex-leitores de El Jueves.”
A edição eletrônica fica a cargo do desenhista Guille Martínez-Vela, de 31 anos. “Na web, todos os dias publicamos um artigo de humor político de atualidade, ou de humor absurdo com base na atualidade. E nas redes sociais adiantamos alguns tópicos da revista, para incentivar a compra e despertar a adesão de leitores jovens”, diz Guille, que também tem assento nas reuniões do conselho.
Por uma decisão estratégica adotada desde o início da publicação do site, o conteúdo da revista não está disponível na sua webpage. A diretora afirma que não quis repetir o erro dos jornais diários, que ofereceram de graça na rede o conteúdo vendido nas bancas. Para baixar uma edição de El Jueves, pode-se comprá-la por meio do www.kioscoymas.com ou baixar os aplicativos lançados recentemente para iPad e Android.
El Jueves, que nasceu independente, já pertenceu ao grupo Zeta, um dos mais influentes durante a transição da Espanha, hoje focado em publicações locais. Em 2006, o periódico foi vendido para o RBA, o conglomerado editorial que lidera o setor de revistas no país. A redação ocupa parte do 14o andar de um moderno edifício na avenida Diagonal, um eixo que corta Barcelona desde a beira-mar, atravessando o centro e apontando em direção a Madri. De lá, tem-se uma vista panorâmica da Sagrada Família de Gaudí ao fundo e, em primeiro plano, a Torre Agbar, criação do francês Jean Nouvel que os nativos comparam a um projétil ou um supositório gigante. O traçado da avenida, idealizado pelo catalão Ildefons Cerdà no século XIX, só foi concluído no bojo da metamorfose pela qual Barcelona passou para os Jogos Olímpicos de 1992. Assim como a cidade, a redação de El Jueves também foi remodelada. Nada de montanhas de papéis acumulados, nem vestígio de cigarro.
“Esta é a redação mais asséptica que tivemos, mas conservamos nosso cantinho, nosso bunker”, diz Maikel. “E somos a única revista da casa que obteve a permissão de pendurar alguma coisa nas paredes”, completa Mayte, apontando para a parede da sala de reuniões onde estão coladas as capas do último ano. Para ela, a história recente da Espanha pode ser lida naquelas capas. A coleção também serve de aide-mémoire para a diretora, que de vez em quando protesta: “Rajoy na capa de novo, não, pelo amor de Deus!” Mariano Rajoy, presidente do governo (que é como os espanhóis chamam seu primeiro-ministro) pelo conservador Partido Popular, é figurinha fácil nas portadas. Só este ano, já emplacou quatro. No dia em que piauí visitou a revista, estava em gestação a quarta capa de 2014 criticando o político galego. Ao receber o esboço feito pelo arte-finalista, Mayte botou os óculos, examinou atentamente a charge e pediu “cores mais fortes” no desenho e “mais contundência” no título.
Ela explica que o desenhista encarregado da arte-final tem que seguir o esboço nascido na reunião de pauta “tal e qual”: “Não há margem de interpretação”, resume. Para os demais envolvidos na produção da revista, a jornalista, que nasceu em Saragoza e adotou Barcelona quando se tornou universitária, é a referência, a pessoa que tem a chave para o humor de El Jueves.
Única não desenhista a ocupar a direção desde que a revista existe, Mayte lembra o medo que experimentou ao ser nomeada, em 2011, quando Albert Monteys abriu mão do cargo. “Eu me senti um pouco insegura, pois não sou uma pessoa criativa. Mas sou boa para lidar com a criatividade alheia, e aprendi a discernir o que é bom e o que não é”, ela diz.
Há, porém, temas que, de tão polêmicos e apaixonantes, acabam não entrando na publicação. Futebol, por exemplo, ou a independência da Catalunha. “Não tocamos no tema do separatismo porque temos medo de que não nos entendam”, diz Maikel, nascido em Barcelona. Para demonstrar que o fato de a sede estar na Catalunha não influencia sua posição, a revista já chegou a publicar um mapa localizando seus colaboradores nos variados pontos da
Espanha onde se encontram – Andaluzia, País Basco, Navarra, Aragón – e até na Argentina. Sobre futebol, a equipe aprendeu que fazer piada com algum clube é dor de cabeça garantida.
Outro assunto que continua praticamente tabu são os maus-tratos contra as mulheres. O consenso é que não há como fazer humor sobre isso. Mayte Quílez afirma que sempre rejeita insinuações de que El jueves seja uma publicação machista.
“Não é machista, é uma revista feita por homens. Quando eles falam de sexo, falam do ponto de vista do homem, porque não têm outro”, afirma. Por algum motivo que ninguém sabe explicar, o humor gráfico é uma arte para pouquíssimas mulheres. A diretora diz que gostaria de contratar mão de obra feminina, mas não há oferta. “Há temas que uma mulher trataria muito melhor, como o aborto ou a desigualdade salarial entre os gêneros. Sairia muito mais espontâneo, mais visceral.”
No plano internacional, a revista não hesitou em publicar charges do profeta Maomé, até para marcar posição quando uma publicação dinamarquesa sofreu ataques devido a heresia semelhante. Seus editores têm a liberdade de expressão como um valor sagrado, e se ressentem até hoje por não terem recebido o apoio incondicional dos demais órgãos da imprensa espanhola quando foi apreendida a edição que fazia graça com o casal de príncipes.
A preocupação em se fazer compreender por um público amplo em um mundo fragmentado é uma constante. “Estamos em uma sociedade na qual os hábitos e as referências estão cada vez mais compartimentados, não há uma corrente geral tão clara como antes”, diz Guille. Maikel sintetiza num exemplo as mudanças culturais: “Quando El jueves saiu, nos anos 70, havia dois canais de tevê na Espanha. Todo mundo via os mesmos programas.” Hoje, as pessoas que fazem a revista precisam conter o ímpeto de assistir só a suas séries favoritas na tevê a cabo ou no Netflix. É preciso zapear os canais abertos, buscar um panorama do que as pessoas estão vendo.
Mas a angústia gerada por um mundo em rápida mutação não consome o otimismo de Mayte: “É um milagre termos chegado até aqui. Quando entrei na revista, tinha 18 anos, não pensávamos no futuro. Nosso horizonte mais distante era o fim de semana seguinte. Não tenho a menor ideia do futuro. Há tantos especialistas vaticinando e não acertam nada…”
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