Meu pai ficou imóvel, a expressão de espanto congelada no rosto. Tentaram chamá-lo e sacudi-lo, mas ele não reagiu. Era como se estivesse morto. Quando eu o toquei, ele estava frio ILUSTRAÇÃO: PIERRE MORNET AT MARLENAAGENCY
Presença
Ele chegou do mesmo jeito como voltava do trabalho todos os dias, o terno escuro amassado, a gravata meio torta, um ar de cansaço no rosto. Senti uma alegria imensa quando ouvi o barulho familiar das chaves e depois meu pai entrou pela porta
André Cardoso | Edição 63, Dezembro 2011
Quando meu pai foi embora, perguntei à minha mãe quando ele voltaria. Ela me encarou algum tempo com olhos vermelhos e depois me respondeu com uma voz que parecia carregar o peso todo do mundo:
– Ele não volta mais, filho.
Aqueles foram dias confusos. Nós três – eu, minha mãe e meu irmão mais velho – parecíamos recolhidos e fechados para o resto do mundo, apesar dos inúmeros parentes e conhecidos (gente que eu nunca vira antes) que se sucediam na sala de estar, em visitas nas quais muito pouca coisa, estranhamente, parecia ser dita. Lembro-me de navegar numa neblina quase palpável de tristeza, uma tristeza cujo motivo não era compreendido por mim, apesar da ausência do meu pai. Às vezes eu me trancava, sozinho, no banheiro para chorar escondido, tomado de um pesar que eu nunca havia sentido antes e também de uma vaga sensação de vergonha. Minha mãe ora se isolava de mim e de meu irmão, como se não existisse nada além da sua tristeza, ora me afogava em abraços e carinhos, tentando me consolar de uma perda que eu mal entendia. Custava-me conceber que meu pai não voltaria mais, que ele havia partido para algum lugar onde não poderia mais encontrá-lo. Como isso seria possível, se ele sempre estivera presente?
Imaginem a minha surpresa quando descobri que tinham mentido para mim, pois ele voltou dois ou três dias depois de ter sumido. Ele chegou do mesmo jeito como voltava do trabalho todos os dias, o terno escuro amassado, a gravata meio torta, um ar de cansaço no rosto. A única diferença é que estava ainda mais pálido do que de costume. Lembro que, nas primeiras semanas depois daquela noite, foi essa perpétua palidez que mais me espantou. Isso e o ar de cansaço que também nunca ia embora.
Mamãe estava pondo a mesa e deixou cair um prato. Mesmo sendo ainda tão novo (tinha 8 anos na época), lembro que esse pequeno incidente – o prato escorregando da mão frouxa de minha mãe, a expressão de completo espanto que deu a seu rosto um estranho ar abobalhado e vazio – me pareceu gasto e absurdo, como uma cena muito repetida de um desenho animado. Foi um momento um tanto cômico, até porque senti uma alegria imensa quando ouvi o barulho familiar das chaves e depois meu pai entrou pela porta. Lá estava ele de pé no meio da sala, minha mãe paralisada de espanto e incompreensão, incapaz de pronunciar uma única palavra, enquanto eu olhava intrigado dela para meu pai e meu irmão mais velho, que aparecera de repente na porta do corredor, onde se deixara ficar também imobilizado pelo pasmo, os olhos arregalados e a boca estupidamente aberta.
Ficamos os quatro um instante sem saber o que fazer – digo os quatro porque meu pai parecia de início tão desorientado quanto nós. Lembro-me de que fui o primeiro a vencer o torpor e ir correndo para abraçar o meu pai, talvez porque aos 8 anos seja mais fácil aceitar as alegrias inesperadas com que a vida às vezes – já naquela época eu sabia o quanto isso seria raro – resolve nos surpreender. É possível também que, de nós quatro, eu tenha sido o que ficou mais feliz com a súbita aparição de meu pai depois de uma ausência que se apresentava tão ameaçadora e que fora relativamente breve no fim das contas. Estranhei que nem minha mãe, nem meu irmão tivessem se juntado a mim naquele abraço, preferindo se manter afastados, nem demonstrassem alegria ou alívio ao vê-lo; em vez disso, aparentavam apenas espanto, confusão e, creio eu, um pouco de horror. Meu pai, por sua vez, não fez o estardalhaço que eu esperava quando corri para abraçá-lo, contentando-se em me dar o beijo distraído de costume, com lábios frios de quem acabava de sair na garoa.
No jantar, minha mãe e meu irmão ficaram calados a maior parte do tempo. Só eu perguntava a meu pai onde ele estivera e como tinha sido a viagem. Minha mãe me olhou escandalizada depois dessa última pergunta, e foi um olhar tão inusitado que nem percebi que meu pai não me respondeu. Em vez disso, ele começou a falar como de costume, contando incidentes do trabalho, fazendo comentários sobre colegas que nem sequer conhecíamos, reclamando dos pequenos contratempos que envenenavam o seu dia a dia, mas que ocupavam por completo a sua mente e sem os quais ele não parecia capaz de viver. Era como se ele estivesse voltando de um dia normal de trabalho, em vez de estar regressando de uma viagem, e essa circunstância, que de início me causou uma estranha sensação de inadequação, logo me deu um enorme conforto. Meu pai estava ali, exatamente como todos os dias, fazendo as mesmas queixas e contando as mesmas histórias a que eu mal prestava atenção, pois pareciam se repetir em todas as refeições. Eu estava contente em ouvir a sua voz, que tinha o mesmo timbre de sempre, mas parecia um pouco mais calma, um pouco mais distante. Cada sílaba sua parecia insistir que nada de extraordinário havia acontecido, que ele simplesmente havia voltado da rua, da mesma forma como haveria de voltar todas as noites.
Essa sensação de normalidade deve ter acabado contaminando a minha mãe e o meu irmão, cuja expressão de espanto foi-se suavizando e se sedimentando, sem nunca desaparecer por completo – na verdade, penso ver um pouco desse espanto em seus rostos até hoje, mas isso pode ser apenas uma sobra das impressões que me ficaram daquela noite. De qualquer forma, creio que a aparência de normalidade tenha sido um alívio para eles também, pois evitava perguntas e explicações. Mesmo sendo tão novo, pude perceber certo constrangimento no ar, como se perguntar ao meu pai como era possível que ele estivesse de volta depois de uma ausência que deveria ter sido definitiva fosse uma indelicadeza, uma insinuação de que seu lugar não era mais ali, na mesa da família, como se o enorme pesar que ele havia causado com sua falta o tivesse transformado num estranho cuja presença era agora uma invasão.
Ao longo de todo o jantar, meu pai conversou distraidamente conosco. Como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse nada de mais na sua volta. Pode ser que as minhas recordações desse primeiro jantar estejam equivocadas, misturadas às lembranças de outros jantares, os que vieram antes da partida de meu pai e os inúmeros outros que vieram depois. Não duvido que a sensação de estranha naturalidade que hoje associo a esse jantar seja fruto do meu desejo – da minha esperança – de que tudo poderia voltar a ser como antes. Lembro-me inclusive, como se isso fosse uma prova irrefutável de que a antiga ordem das coisas estava restabelecida, de que meu pai repetiu os mesmos comentários que costumava fazer a respeito da comida. Seu retorno inesperado não o comoveu o bastante para levá-lo a esquecer sua eterna implicância com o frango assado que fazia sua aparição à nossa mesa todas as quartas-feiras e que foi tratado com a irritação de sempre, sem o menor vestígio de sentimentalismo. O frango foi parar no seu prato, mas ficou intocado, como o resto da comida. Meu pai parecia ter-se esquecido de comer. Minha mãe e meu irmão também quase não comeram. Todos tinham ar distraído. Naquela noite, fui mandado para cama mais cedo.
No dia seguinte, acordei com um susto. Um susto estranho, pois tinha sido causado por algo muito familiar: o zumbido agudo e irritante do barbeador do meu pai, contra o qual lutava o som alto do rádio sintonizado no noticiário matinal. Fiquei deitado, imaginando a cena que encontraria no banheiro se me levantasse: meu pai no seu roupão azul velho e puído, esfregando com furor obsessivo o barbeador no rosto, inchando primeiro uma bochecha e depois a outra para deixar a pele mais lisa, o que o obrigava a fazer caretas que eu achava cômicas. Aos poucos, minha irritação por ter sido acordado mais uma vez pelo estardalhaço matinal do meu pai foi-se atenuando, ou melhor, essa mesma irritação foi-se tornando um conforto justamente por ser tão habitual. Era mais uma prova de que minha mãe havia mentido sobre a partida de meu pai e de que ele iria ficar conosco para sempre. Por isso mesmo me levantei e fui observá-lo terminar de se barbear no banheiro. Quando acabou, fui olhar o resto de sabão e pelos que sempre sobrava na pia e que meu pai não conseguia limpar completamente, talvez porque seria um indício concreto e inquestionável da presença dele. O sabão estava lá, mas não havia um único pelo. Nos dias seguintes, minha curiosidade de criança me levou a examinar cuidadosamente a pia depois que meu pai saía do banheiro. Nunca havia um único pelo. Aquele detalhe aparentemente sem importância me deixou assombrado. O ritual que meu pai seguia todas as manhãs e que tanto me irritava era completamente inútil: sua barba não crescia mais. Mesmo assim, ele nunca deixou de cumpri-lo.
Naquela manhã, minha mãe se levantou no último instante antes de preparar o café. Acho que não tinha dormido nada à noite. Lembro-me do seu olhar atônito e vermelho por cima das olheiras. Até hoje, quando penso na minha mãe, são esses olhos que eu vejo. Não creio que tenha havido qualquer explicação noturna entre os dois, pois minha mãe parecia ainda mais perplexa e perdida do que no dia anterior. O café da manhã não foi muito diferente do jantar. Meu pai comentou as notícias do momento com a mesma mistura de acidez e resignação de todos os dias. As torradas ficaram abandonadas no prato, enquanto ele folheava o jornal, absorto, soltando aqui e ali alguma observação indignada sobre o último escândalo político, quase como quem cumpria um dever. O café remexido com um tilintar frenético nunca chegou à sua boca.
Depois do café, que foi deixado sobre a mesa assim como o jantar da véspera, meu pai se levantou e foi para o trabalho. Ainda me lembro da aflição que senti quando essa cena cotidiana se repetiu, apesar da calma com que ele abriu a porta da frente ao sair. E se dessa vez ele de fato não voltasse? Algo ainda estava errado, pois minha mãe continuava muito agitada e não parecia aliviada com o retorno de meu pai. O resto do dia foi de expectativa para mim. Algum tempo depois de meu pai sair, telefonaram para minha mãe do trabalho dele. Por algum motivo, pelo que pude perceber do que minha mãe disse, estavam tão surpresos e atônitos quanto ela ao vê-lo de volta ao trabalho. Depois desse telefonema, minha mãe passou a maior parte da manhã calada, sentada à mesa da cozinha, os mesmos olhos perplexos do café da manhã, fitando a parede de azulejos brancos à sua frente, até se lembrar de que tinha que me dar o almoço e me mandar para a escola. Só quando a condução chegou é que tirou o pijama para me levar até a portaria. Entregou-me à condução sem que sequer lhe ocorresse se despedir de mim. Na escola, fiquei a tarde inteira torcendo para que meu pai voltasse à noite, no horário de costume. Mesmo temendo que algo estivesse errado, ainda acreditava que a sua presença faria com que tudo voltasse definitivamente ao normal.
Quando cheguei da escola, encontrei minha mãe correndo de um lado para o outro da cozinha, administrando várias panelas que estavam no fogo ao mesmo tempo. Até hoje, quando entro na cozinha, sempre me vem por um instante a sensação de pressa e atividade com que me deparei naquela tarde. Sozinha em casa durante a tarde, minha mãe resolvera fazer, por via das dúvidas, um jantar de boas-vindas para o meu pai, caso ele voltasse novamente à noite. Enquanto virava o rosbife no forno e o regava com molho, explicou que essa era a coisa certa a fazer. Eu e meu irmão, muito obedientes diante da solenidade da ocasião, fomos tomar banho sem demora e depois nós três, com uma cerimônia que eu não conseguia entender, mas à qual aderi quase sem sentir, nos preparamos para esperar o meu pai.
Ele chegou de noitinha, como de costume, exatamente como no dia anterior. Dessa vez, minha mãe conseguiu sorrir. Nem o seu sorriso nem o jantar que preparara com tanto cuidado, porém, causaram maior impressão do que o frango assado da véspera. Meu pai fez algumas observações sem entusiasmo sobre a comida, como quem cumpre uma obrigação, mas encheu o prato com energia. Fez algumas perguntas rotineiras sobre o nosso dia na escola, mal ouvindo nossas respostas, e retomou as velhas reclamações sobre o trabalho, sobre a incompetência dos colegas e a falta de juízo do chefe, sempre no tom fatigado com que nos fazia o relatório de seu dia, antes de ir embora. No entanto, mesmo parecendo tão cansativo, o assunto era fascinante a ponto de fazê-lo esquecer completamente da comida, que mais uma vez ficou abandonada no prato, sem que ele levasse à boca uma única garfada sequer. Na verdade, nunca mais vi o meu pai comer.
Minha mãe não reclamou, não disse nada, mas logo depois de recolher a mesa telefonou para meu tio, o irmão de meu pai. Alguns minutos depois ele chegava à nossa casa com a mulher e os dois filhos. Parecia ainda mais surpreso do que a minha mãe com a volta inesperada do meu pai e foi gritando logo da porta que queria vê-lo, e que só acreditaria vendo. Meu pai, no entanto, não quis falar com ele. Não que tenha tentado evitá-lo. Já estava devidamente instalado diante da televisão e olhou espantado para as visitas inusitadas – meu tio raramente vinha à nossa casa e jamais aparecia durante a semana, ainda mais trazendo a família a tiracolo. Meu pai então ficou mudo e imóvel. Não é que ele estivesse fazendo algum esforço para ignorar meu tio e meus primos; ele simplesmente ficou sentado na poltrona, de boca aberta e olhos arregalados, a expressão de espanto e incompreensão congelada no rosto. Tentaram chamá-lo e até sacudi-lo, mas ele não reagiu. Era como se estivesse morto. Quando eu o toquei, ele estava frio.
Minha mãe e meu tio fecharam todas as crianças no quarto do meu irmão, enquanto os adultos conversavam no quarto de meus pais. Ouvi meu tio insistir quase berrando que deviam chamar um médico, mas minha mãe não quis, argumentando com uma voz trêmula que não adiantava, que ele ficaria assim pelo resto da noite, mas que no dia seguinte estaria bem de novo. Talvez algo assim já tivesse acontecido na noite em que meu pai voltou pela primeira vez, talvez àquela altura ela já soubesse. Discutiram ainda algum tempo, dessa vez em voz baixa, enquanto eu, meus primos e meu irmão tentávamos distrair uns aos outros com alguma brincadeira a que nos entregávamos sem grande entusiasmo, pois todos estávamos pensando no corpo imóvel abandonado na sala. Botaram-me na cama mais tarde naquela noite, logo depois de meu tio ir embora, para nunca mais voltar. No dia seguinte, acordei novamente com o barulho do meu pai fazendo a barba no banheiro.
O resto da semana passou na mais perfeita rotina. Logo percebemos que no mundo de meu pai agora já não existiam fins de semana: ele ia trabalhar da mesma forma, com a exatidão de costume. Nos primeiros dias depois da crise durante a visita de meu tio, fiquei com medo de me aproximar dele, mas a calma com que atravessava as manhãs e noites conosco, a naturalidade com que nos repetia as peripécias do trabalho e a constância com que nos fazia as mesmas perguntas sobre provas e amizades na escola em pouco tempo me tranquilizaram. Logo aprendi a lhe dar sempre as respostas que ele esperava e que ouvia distraído, mas que, eu acreditava, lhe traziam algum alívio e certamente não provocariam uma reação semelhante à que teve com a visita de meu tio. Logo entendi que a rotina era muito importante para meu pai – acho que sempre tinha sido – e que qualquer desvio dela, por menor que fosse, poderia trazer consequências desagradáveis. Isso ficou muito claro para todos nós – até minha mãe, que, acredito eu, já sabia, mas não tinha percebido ainda até que ponto a situação do meu pai era inflexível – no segundo fim de semana depois da volta dele. Era sábado e mais uma vez, para meu espanto, meu pai foi trabalhar de terno e gravata, como sempre (ainda me lembro de como me sentia desorientado nesses primeiros dias, ao mesmo tempo que considerava o comportamento bizarro de meu pai bastante engraçado). Sozinhos em casa com minha mãe, eu e meu irmão começamos a ficar muito agitados: queríamos sair para brincar, fazer qualquer coisa, sair da prisão do apartamento.
Meu irmão tanto insistiu que minha mãe acabou permitindo que ele fosse brincar na casa de um amigo da escola. Não lembro o que ela fez comigo; acho que fomos passear em algum parque, meio sem saber o que fazer com aquele dia que parecia tão vazio. Lembro-me apenas de que já estávamos em casa no final da tarde e, um pouco antes da hora em que meu pai deveria voltar do trabalho, o telefone tocou. Era meu irmão pedindo para dormir na casa do amigo. Minha mãe não queria deixar, mas, mais uma vez, teve de enfrentar a resistência do meu irmão, que encontrou na mãe de seu colega uma aliada insistente. Finalmente, minha mãe cedeu e deixou que meu irmão ficasse por lá. Quando meu pai chegou, o jantar já estava pronto, a mesa estava posta, mas, obviamente, meu irmão não estava lá. Meu pai chamou por ele ao se sentar à mesa e, ao reparar que estava faltando um prato e ouvir a explicação de minha mãe, mais uma vez pareceu morrer diante de nós. Ficou sentado, o corpo flácido jogado em cima da cadeira, os olhos abertos sem enxergar nada, a boca aberta numa incompreensão muda. Eu e minha mãe jantamos na cozinha e, naquela noite, ela me mandou ir dormir bem mais cedo. Acho que tinha chorado, pois fiquei com a imagem de seus olhos vermelhos ao me pôr na cama, mas é possível que eu esteja misturando as lembranças daquela noite com as de várias outras noites – nossos dias agora eram sempre muito parecidos. Tenho certeza, porém, de que me levantei de madrugada, ouvindo o pesado silêncio do apartamento, e fui devagarinho até a sala, me esgueirando pelo corredor como se estivesse fazendo algo proibido. Meu pai continuava sentado na mesma cadeira, a cabeça recortada contra a janela, os olhos vazios refletindo a luz enviesada da iluminação da rua. Não tinha se mexido um milímetro sequer. Suas mãos estavam frouxas e frias, como no dia da visita de meu tio, e quando eu o toquei não houve nenhuma reação. Voltei para cama, assombrado com a presença imóvel do corpo de meu pai na sala, sozinho no escuro.
Nunca mais, nem eu, nem meu irmão, dormimos fora e nunca mais nos ausentamos da mesa do jantar. Também aprendemos que nunca deveríamos trazer ninguém para casa enquanto meu pai estivesse presente. Era relativamente seguro falarmos de novos conhecidos na escola, pois meu pai simplesmente ignorava seus nomes e atribuía aquilo que contávamos a seu respeito a pessoas que já conhecia. Depois de algum tempo, percebemos que era mais fácil usar apenas os nomes já conhecidos, já que meu pai não acompanhava as pequenas novidades que ocorriam no nosso cotidiano fora de casa, que ele sempre traduzia naquilo que já lhe era familiar. Dentro de casa, nada mudava, nem mesmo os pratos que se sucediam com perfeita regularidade no jantar ou a decoração dos quartos à medida que íamos crescendo. A rotina de meu pai havia se tornado a nossa religião.
Levou muito tempo até eu compreender o que havia acontecido com meu pai – uns dois anos, talvez. Sempre soube que havia algo de errado, que a vida de meus colegas passava por mudanças, enquanto a nossa continuava sempre a mesma. Havia viagens, novos irmãos, separações, descobertas, novas atividades e mudanças de plano inesperadas.
Na nossa família, ao contrário, tudo era previsível, nossos dias se organizavam em torno das idas e vindas de meu pai ao trabalho, da meticulosa religiosidade com que se arrumava todas as manhãs, dos fins de noite passados diante da televisão, sempre ligada nos mesmos programas, de jantares que pareciam se fundir uns nos outros, pois haviam se tornado um ritual em que praticamente as mesmas palavras eram repetidas.
Depois de dois anos, à medida que o otimismo e a ingenuidade dos meus 8 anos foram ficando para trás, comecei a perceber o quanto a sensação de que nos repetíamos sem escapatória era literal. Os pequenos incidentes de escritório que meu pai relatava durante o jantar não só pareciam os mesmos, como, depois de algum tempo, comecei a perceber que eles eram de fato os mesmos, repetidos à exaustão num padrão recorrente. As suas reclamações sobre o trabalho se repetiam como o trinado triste de um pássaro engaiolado que canta todas as manhãs. Pior: os seus comentários sobre as notícias do jornal também não mudavam. Ele repetia sem parar as mesmas lamentações sobre escândalos que já tinham sido esquecidos e substituídos por outros, semanas ou até meses atrás. Uma vez, cheguei a substituir o jornal da manhã por outro guardado havia dias e meu pai o leu aparentemente sem atinar com a diferença. Nunca mais repeti essa pequena crueldade. Tinha sido doloroso demais constatar que as notícias, assim como as eventuais novidades que trazíamos da escola, simplesmente não o atingiam.
Intrigado e confuso, resolvi confirmar a constatação a que eu acabara de chegar com meu irmão, que a essa altura já estava em franca adolescência. Mesmo assim, ainda mantínhamos uma forte cumplicidade, desenvolvida ao longo de anos trabalhando juntos para preservar a imutável rotina do meu pai, poupando-o cuidadosamente de qualquer tipo de surpresa. Essa tarefa tinha o seu preço e meu irmão parecia a cada dia mais irritado, ao mesmo tempo que o esforço de esconder de meu pai sua irritação só fazia aumentar sua revolta. Quando nos encontrávamos em casa momentos antes de meu pai voltar do trabalho, era comum que meu irmão deixasse escapar pequenas explosões de mau humor que minha mãe fazia o possível para suprimir antes que meu pai entrasse pela porta de casa. Nem sempre ela foi bem-sucedida, e pelo menos umas duas vezes a rebelião de meu irmão se manifestou como um desafio direto ao meu pai, com os resultados que eram de se esperar: meu pai desfalecido à mesa do jantar (uma vez com o rosto dentro do prato de comida que, como sempre, permanecia intocado), meu irmão recolhido a um exílio horrorizado em seu quarto, eu e minha mãe tentando juntar os cacos da normalidade enquanto comíamos na cozinha.
Foi numa dessas ocasiões em que a revolta do meu irmão ameaçava surgir à superfície que finalmente tive coragem de lhe perguntar o que havia acontecido com nosso pai, por que ele repetia sempre as mesmas coisas, por que ele não parecia perceber que o mundo mudava à sua volta. Creio que no fundo eu sabia que, se fizesse essas perguntas num momento em que meu irmão estivesse mais controlado, ele não contaria tudo ou deixaria que minha mãe o interrompesse. Mas minha mãe estava ocupada na cozinha e meu irmão precisava falar com alguém.
– Você ainda não entendeu? Então vou explicar: nosso pai morreu há uns dois anos.
Tinha morrido de repente, resultado de uma doença mal explicada, um aneurisma ou um ataque cardíaco, não sei. Na época eu não tinha condições de entender e os eventos que se seguiram a sua morte, obviamente, tiraram toda a relevância desse fato. O que meu irmão me contava agora é que ele tinha ido trabalhar, como todas as manhãs, mas não passara do ponto de ônibus. Ali ficou sentado pelo menos uma hora até alguém finalmente estranhar a imobilidade daquele senhor que parecia cochilar encostado no anúncio de um sabonete hidratante. E lá permaneceu horas depois de constatado o óbito, aguardando a chegada de uma ambulância que o recolhesse. Lembro que, ao saber disso, fiquei muito aflito, imaginando-o exposto lá durante tanto tempo, sem que ninguém viesse pegá-lo, apesar dos inúmeros telefonemas de minha mãe para a defesa civil, tarefa que depois transferiu para uma tia que veio tomar conta de mim e de meu irmão enquanto ela zelava pelo corpo. Imaginei a falta de dignidade e a incongruência do corpo do meu pai, frouxo dentro do terno de trabalho, recostado num anúncio de sabonete que vendia vitalidade. “Um horror”, diria minha mãe mais tarde, num misto de choque e indignação. Hoje, acho que a brancura imaculada e leitosa do sabonete hidratante deve ter funcionado muito bem como a primeira honraria fúnebre prestada a meu pai.
Morto estava e morto deveria ter ficado, não tivesse a morte revelado nessa ocasião uma ineficiência tão gritante quanto a do serviço de ambulâncias responsável por retirar o corpo do meu pai da rua. Mas três dias depois ele entrava novamente pela porta de casa e sentava-se à mesa do jantar como se nada houvesse acontecido. Desde então ele voltou a nós diariamente, seguindo de forma impiedosa a rotina a que já estava acostumado, e, se algo a contrariasse, ele se tornava um corpo morto. Essas ocasiões eram um lembrete impiedoso de que estávamos de fato na presença de um defunto, cuja morte causávamos por qualquer observação desatenta, qualquer desvio do padrão que ele estabelecera com tanta naturalidade e aparentemente sem a menor intenção.
Acho que o mais estranho nessa revelação de meu irmão talvez tenha sido o fato de eu não ter ficado realmente surpreso. Talvez no fundo eu já soubesse, como minha mãe na época da visita de meu tio. Talvez a própria regularidade dos hábitos de meu pai tivesse um efeito tranquilizador do qual eu ainda não queria abrir mão. De qualquer forma, era mais fácil lidar com a presença da morte desde que ela não fosse explícita – daí nosso afã, que a revelação de meu irmão só fez aumentar, de poupar o meu pai de qualquer contrariedade e de qualquer interrupção em sua rotina. Quando chegou minha vez de entrar na adolescência, eu já sabia que qualquer confronto com meu pai seria inútil e deveria ser evitado a qualquer custo. Me conformei em ser eternamente um menino de 8 anos para ele. Sempre tinha sido um bom aluno e continuei sendo. Se por acaso eu me encontrava inquieto por algum motivo, era fácil para meu pai atribuir minha perturbação a um nervosismo descabido em relação a alguma prova. Sempre tinha sido um menino quieto, e continuei sendo, por toda a minha vida.
Apesar de toda a sua revolta, meu irmão ainda aguentou mais dez anos, até que um dia, sem avisar ninguém, arrumou suas coisas e foi embora. Ao contrário de meu pai, nunca mais voltou. Ainda falei com ele algumas vezes, principalmente pouco depois que ele foi embora. Ele telefonava quando sabia que meu pai não estaria em casa e tentava me convencer a ir embora também. Nunca consegui perdoá-lo pelo seu egoísmo ao nos deixar para trás. Meu pai, ao perceber sua ausência, recaiu em seu estado de morte absoluta. Isso se repetiu todas as noites, ao longo de semanas. Eu e minha mãe tivemos que conviver muito tempo com o corpo estendido na sala. Até que, finalmente, uma noite ao voltar do trabalho, meu pai ignorou a ausência de meu irmão. Ele o esqueceu completamente, como se nunca tivesse existido.
Passei a ter muito cuidado para que nada acontecesse comigo – nenhum acidente, nenhum incidente vergonhoso, nenhuma escapada inesperada com amigos –, que pudesse acarretar minha ausência ou trazer alguma mudança drástica na minha maneira de viver e que poderia, com sua surpresa, acarretar a morte (ainda que temporária, mas concreta, gritante, real) de meu pai. O que aconteceria se eu fosse embora? Ele me esqueceria também? Eu deixaria de existir para ele, do mesmo modo como o meu irmão? Minha mãe teria de conviver sozinha com o corpo morto na sala de jantar, e eu não conseguia suportar a ideia dos olhos vazios de meu pai fitando a luz da rua sem poder vê-la, mais um objeto meio escondido no escuro do apartamento, sem fazer barulho. E se, quando eu fosse embora, sua morte se tornasse permanente e ele não entrasse nunca mais pela porta depois do chacoalhar tão familiar de suas chaves na fechadura? Eu não suportava a ideia de ser o responsável por terminar essa existência, ainda que monótona e precária, essa repetição interminável de pequenos trejeitos que a essa altura constituíam o que eu entendia ser o meu pai. Me lembrava ainda do enorme vazio que senti quando ele foi embora pela primeira vez, quando eu tinha 8 anos de idade, daquela gigantesca ausência que eu não conseguia compreender e não queria trazer de volta.
As mudanças inevitáveis, essas eu tentei minimizar e, quando possível, escondê-las de meu pai. Não compareci a nenhuma das cerimônias de formatura a que tinha direito, saí pouco e sempre evitei festas, cursei uma universidade pública às escondidas. Tive, portanto, poucos amigos e ainda menos namoradas. Era difícil explicar minha necessidade de estar de volta em casa impreterivelmente à hora do jantar, a impossibilidade de fazer uma viagem ou a inviabilidade de apresentar meus pais a novos conhecidos. Como explicar que eu não podia me ausentar muito tempo de casa, principalmente à noite, sob pena de deixar minha mãe abandonada com o corpo de meu pai estendido no tapete da sala?
Minha adolescência foi calma, como o resto de minha vida, que continuou seguindo o ritmo da rotina de meu pai. Mesmo hoje, meu horário de trabalho é o seu, pois tenho de estar em casa antes que ele volte. Para meu pai, ainda brinco de queimado no recreio da escola, ainda corro com meus colegas no pátio, ainda me recolho ao quarto para fazer o dever de casa. Minha infância nunca terminou e as contrariedades de trabalho que ouvimos à mesa ainda são as dele – as minhas passam despercebidas até mesmo por mim, que continuo vivendo como se só tivesse de me preocupar com um teste de matemática ou uma prova de ciências. Nossa vida é simples e previsível, e talvez isso já seja um consolo. Talvez ele tenha voltado por nossa causa, talvez não pudesse nos abandonar ou nós sejamos o seu paraíso, sua segurança. Por isso tenho de continuar, para que ele não fique abandonado num canto da mesa de jantar. Sua fé em mim é ingênua e comovente, e tento justificá-la com a minha constância. O que mais importa? Continuo vivendo na sua casa, mesmo depois de tantos anos, mesmo já adulto, e participo pontualmente dos jantares de família. Minha mãe continua fitando-o com olhos atônitos nos quais já é possível ver uma ponta de ressentimento, agora que ela está ficando velha. Ele continua, distraidamente, o mesmo.
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