CRÉDITO: KLEBER SALES_2022
Professor sem diploma
O que aprendi com o cantor e instrumentista Eduardo Gallotti
Teresa Cristina | Edição 189, Junho 2022
Conheci Eduardo Gallotti no início da década de 1990. Eu tinha acabado de me mudar para o Leblon, vinda do subúrbio carioca – mais precisamente da Vila da Penha, onde nasci. Não consigo me lembrar direito da primeira vez que escutei o Gallo. Pode ter sido no bar Mandrake ou no restaurante Sobrenatural. O fato é que, naquela época, a Zona Sul do Rio respirava pandeiro, tam-tam, chocalho, surdo e violão, e o Gallo comandava as rodas de samba mais animadas da cidade.
Branco, de cabelos encaracolados e óculos pesadões, ele beirava os 30 anos. Era cria de Botafogo, onde conviveu com dois sambistas lendários, Walter Alfaiate e Mauro Duarte. Não bastasse cantar magnificamente, tocava cavaquinho como poucos. Aprendeu o instrumento por conta própria, mas depois fez aulas com o grande Henrique Cazes, que o ensinou a ler as cifras. O Gallo se apresentava desde os tempos de escola. Começou nos saraus do São Vicente de Paulo, colégio de padres onde estudava, e debutou na noite em 1984. Tinha 21 anos. Curtiu tanto a brincadeira que largou a faculdade de biologia para se dedicar principalmente à música.
Seria irônico – e é – dizer que só passei a dar mais atenção ao samba quando decidi morar na Zona Sul. Devo isso ao Gallo. O samba que eu ouvia era o das rádios – ou seja, só escutava o que as gravadoras queriam que eu escutasse. Talvez por isso gostasse mais de dance music (Donna Summer, Barry White) e heavy metal (Van Halen, Iron Maiden). Recordo-me de uma madrugada em que cheguei no Mandrake com meu então companheiro, o violonista Bernardo Dantas. Eu tinha visto o Gallo outras vezes, não muitas, mas aquela ocasião foi especial. Já sei a notícia que vens me trazer/Os teus olhos só faltam dizer/O melhor é eu me convencer, entoava o crooner sambista de voz rouca e ar debochado. Aqueles versos, aquela melodia sinuosa… Vingança, meu amigo, eu não quero vingança/Os meus cabelos brancos me obrigam/A perdoar uma criança. Hipnotizada, precisava a todo custo de mais informações sobre a música. Fui até o Gallo, meio envergonhada, e perguntei baixinho quem compôs o samba. Quando ele entendeu que eu havia me deslumbrado com Notícia, de Alcides Caminha, Nourival Bahia e Nelson Cavaquinho, abriu um sorriso e falou no microfone: “A partir de agora, só vou cantar sambas do Nelson.”
Dito e feito. O Gallo passou o resto da madrugada explorando o majestoso repertório do autor. Foram tantas canções, tantas histórias… Eu quase enlouqueci. Ninguém fazia isso tão bem: apresentar as criações de um compositor que as rádios e a tevê já não mostravam. O contentamento do Gallo era visível. Cada música tinha um porquê. Ele narrava os “causos” que se escondiam atrás dos sambas e caía na gargalhada, agitando freneticamente a cabeça e os cachinhos. Não por acaso, sempre o considerei também um humorista. Devo a meu amigo o hábito e o prazer de lincar histórias às músicas que escolho cantar.
Para mim, o Gallo se tornou o melhor intérprete de Noel Rosa. Ele costumava emendar um Noel no outro durante as rodas de samba. Parecia uma máquina boêmia do puro suco da galhardia. Ouvi o poeta da Vila Isabel pela primeira vez na voz de Maria Bethânia e fiquei maravilhada, claro. Mas foi graças ao Gallo que conheci a diversidade da obra de Noel.
Certo dia, meu amigo tocava na Rua do Lavradio com o fiel escudeiro Luís Filipe de Lima, sete cordas estrelado. Os dois dividiam olhares cúmplices e não engasgavam em nenhuma canção de Noel. Naquela tarde, descobri o impagável Coração, que o compositor chamava de “samba anatômico”: Coração, grande órgão propulsor/Transformador do sangue venoso em arterial/Coração, não és sentimental/Mas entretanto dizem/Que és o cofre da paixão/Coração, não estás do lado esquerdo/Nem tampouco do direito/Ficas no centro do peito – eis a verdade!/Tu és pro bem-estar do nosso sangue/O que a casa de correção/É para o bem da humanidade. Dava gosto ver o Gallo, os olhos brilhando, a risada no canto da boca a cada verso sarcástico.
Às vezes, ao longo de uma apresentação, ele se entusiasmava com o trecho de alguma música. Depois de cantá-la, fazia um comentário sobre a beleza do trecho e ia recitando toda a letra novamente, de maneira quase didática, como um sábio sem diploma, de bermuda e havaianas.
Foi nas rodas do Gallo que eu soube de duas célebres brigas musicais: a de Noel com Wilson Batista na década de 1930 e a do compositor Herivelto Martins com a ex-mulher, a cantora Dalva de Oliveira, na década de 1950. Também ali me interessei pelas gravações de Cyro Monteiro e me encantei por Vassourinha.
Meu amigo lutava contra um câncer nas cordas vocais. A imprensa do Rio lhe fez justiça e, no dia 12 de maio, quando o Gallo nos deixou aos 58 anos, enfatizou a importância dele não só para o renascimento das rodas de samba cariocas, que andavam esquecidas na década de 1980. (Foi meu amigo, aliás, quem fundou as do Mandrake e do Sobrenatural, além de outras que acabaram virando tradicionais.) Sites, revistas e jornais também destacaram o talento do Gallo como compositor de blocos carnavalescos, a exemplo do Simpatia É Quase Amor, Barbas, Suvaco do Cristo e Imprensa que Eu Gamo.
Quis muito escrever esta despedida porque acredito que as futuras gerações precisam conhecer Eduardo Gallotti. O samba tem por ele carinho e gratidão. Adoraria poder abraçar Luís Filipe de Lima, Bernardo Dantas, os cantores Pedro Miranda e Mariana Bernardes, o percussionista Marquinho Basílio e tantos artistas que o acompanharam. É triste demais ver um amigo partir… Para sempre, a madrugada do Rio cantará em sua homenagem: Estou morrendo de saudade/De um tempo feliz que passou e eu não vi/Gosto de manhã, de sapoti/Carícias no ar, um colibri/Samambaias na varanda/Tudo isso passou, perdi.
Leia Mais