A saúde versus Bolsonaro: uma das falhas da comunicação científica na pandemia foi o destaque dado a manifestações pessoais de especialistas, colocando as instituições em segundo plano CREDITO: GUILES OFICIAL_2020
A queda dos experts
A pandemia colocou em xeque o papel exercido pelos intermediadores da ciência com a política
Tatiana Roque | Edição 176, Maio 2021
Em 9 de outubro do ano passado, o médico David Nabarro colocou a Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual é delegado especial para Covid-19, na linha de tiro da guerra de opinião a respeito do vírus. “Nós realmente apelamos a todos os líderes mundiais: parem de usar o lockdown como método de controle principal”, disse em uma entrevista. Para Nabarro, o único momento em que vale a pena acionar essa medida é quando se precisa ganhar tempo para reorganizar recursos e proteger os trabalhadores da saúde. Naquela data, o mundo registrava 1 milhão de mortos e uma nova onda da pandemia estava por vir.
A declaração deixou eufóricos os governantes que vinham atacando o isolamento desde o início da crise sanitária, como Donald Trump, que correu para escrever no Twitter: “A OMS acabou de admitir que eu estava certo.” Jair Bolsonaro aproveitou a ocasião para, em sua live de 15 de outubro do ano passado, mostrar uma notícia de abril, quando a OMS disse que a contenção do novo coronavírus deveria incluir o lockdown (entre diversas outras estratégias) – e comemorou o que teria sido uma mudança de posição da entidade. Animado com a declaração de Nabarro, soltou frases como: “Não perdi nenhuma ainda” e “está 7 a 0 para mim”. Em tom de deboche, chegou a se candidatar como substituto do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Bolsonaro sempre combateu o isolamento social e desprezou a vacina e o uso de máscaras, atitudes que fazem dele o maior responsável pela tragédia que vivemos. Mas não se pode desconsiderar que a OMS acabou ajudando os negacionistas ao promover certa confusão de informações. Nabarro queria dizer que o lockdown não deve ser a principal forma de conter o vírus. A frase foi tirada do contexto, mas ele havia sido bem enfático quanto aos efeitos negativos da medida para a economia. A OMS sempre defendeu a coordenação de estratégias, como aumentar os testes, rastrear os infectados e isolá-los. Manter as pessoas em casa seria um último recurso, ao qual se deveria recorrer por períodos limitados. Essa orientação é correta, mas supõe condições políticas ideais. No mundo real, a ausência de testes e rastreamento faz do distanciamento social uma das medidas mais eficazes contra a explosão de contágios – desde que acompanhada de políticas que assegurem a renda e os empregos.
Outra declaração que envelheceu mal foi dada em 6 de abril de 2020, quando a OMS disse que máscaras deveriam ser usadas apenas por profissionais de saúde e sintomáticos (além de pessoas que enfrentam situações em que o acesso à água é limitado ou é difícil manter distância física). Deu-se a impressão de que o uso de máscaras deveria ser reservado a casos específicos. Em 5 de junho, já em pleno caos sanitário, a OMS atualizou a orientação, recomendando que os governos incentivassem o público em geral a usar máscaras, mesmo que apenas em situações específicas. O documento incluía a ressalva de que não havia “evidências diretas […] da eficácia do uso universal de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade para prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo o vírus causador da Covid-19”. Ou seja, mantinha a hesitação sobre uma recomendação simples e barata, sem efeitos colaterais, que acabou sendo admitida como uma das formas mais eficazes de combate à transmissão do vírus. Em 8 de junho, em outro deslize, Maria Van Kerkhove, líder técnica da OMS para Covid-19, disse à imprensa que seriam muito raros os casos de pessoas assintomáticas que transmitem a doença. Corrigiu-se em seguida, mas os efeitos da declaração anterior já haviam prejudicado a prescrição de isolamento social e ajudaram a corroer a confiança da população nas recomendações dos especialistas.
Não foi apenas a OMS que se enroscou em declarações conflitantes, mesmo que tivessem base científica, mas com potencial de gerar incompreensões e distorções. Temos ouvido muitas delas durante a crise sanitária, tanto da parte de instituições como de experts falando por conta própria. Em tempos de redes sociais, os cuidados com recomendações à população precisam ser redobrados: qualquer deslize tende a provocar efeitos nocivos à sociedade. A atenção aos usos que são feitos de pronunciamentos públicos precisa ser maior ainda durante a pandemia, pois pequenas imprecisões tendem a ser amplificadas. Afirmações desmentidas e sinais contraditórios influenciam na maneira como as pessoas percebem o trabalho da ciência e dos experts, tanto mais nessa época em que o negacionismo caminha a passos largos.
Uma pesquisa de opinião feita em abril pelo Conselho Europeu para as Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês) indagou a pessoas de nove países europeus sobre a imagem que tinham dos experts. Os resultados foram preocupantes: apenas 35% dos entrevistados avaliam o trabalho deles como benéfico, sendo que 38% desconfiam de que as recomendações dos especialistas têm motivação empresarial ou política e 27% simplesmente não confiam neles, em geral. Ou seja, para boa parte dos entrevistados, os experts não são fonte de verdades objetivas e imparciais.
Mas o que são experts, afinal? Basicamente, são mediadores entre a ciência e a política, entre o conhecimento científico e a vida pública. São muitas vezes cientistas ou pesquisadores que trocaram os laboratórios e as universidades pela ação na linha de frente das instituições, com o objetivo de, valendo-se de seu conhecimento especializado, aconselhar políticos, criar regulações, ajudar na elaboração de políticas públicas ou fazer recomendações aos tomadores de decisão. Seu papel é produzir e comunicar informações baseadas em evidências científicas. A OMS, por exemplo, é uma entidade multilateral de experts, criada em 1948 e subordinada à ONU, com o objetivo de desenvolver a saúde global. Desde então, as pessoas – cientes de que, mesmo bem-informadas, jamais saberiam sobre tudo em todas as áreas do conhecimento – depositaram sua confiança nesses especialistas.
A meio caminho entre a ciência e a política, os experts, à diferença dos cientistas, precisam intervir a quente no debate público, ao ritmo dos fatos (não dispondo, portanto, de um tempo longo para pesquisas). E, diversamente dos políticos, os experts não são eleitos e têm pouca autonomia para tomar decisões, tais como decretar lockdown.
A atual crise dos experts e suas instituições está relacionada, paradoxalmente, ao sucesso que eles obtiveram nas últimas décadas. Uma busca pela palavra “expertise” (em várias línguas) nos livros disponíveis no Google Books mostra que o uso do termo cresceu 4300% entre 1955 e 2000. Esse sucesso deve-se a dois fatores. Em primeiro lugar, porque a tecnologia passou a ter efeitos amplos sobre a população, como no caso da energia nuclear e da automação da indústria, o que demandou a intermediação de especialistas capazes de explicar os riscos aos cidadãos. Em segundo, porque a política viu-se envolvida em questões tecnicamente complexas, como as de saúde pública, regulação do alimento industrializado e controle da poluição, e necessitou do apoio dos experts para levar adiante projetos para as diferentes áreas. Os dois fatores fizeram com que um número grande de pesquisadores entrasse para a vida pública a fim de organizar programas de governo e transmitir informações às pessoas sobre os assuntos relacionados às demandas sociais.
No ambiente democrático, não bastava implementar políticas e impor o cumprimento das regras: era preciso também convencer a população. Foi assim que o embasamento científico, trocado em miúdos para os cidadãos, serviu durante um bom tempo como meio de persuasão. Recomendações, guias de conduta, controle de danos, prevenção de riscos e projeções de impacto são exemplos de insumos intelectuais que passaram a ser usados tanto para embasar decisões políticas como para convencer o público de que tais decisões são acertadas.
O casamento entre ciência e política foi feliz enquanto os avanços científicos estiveram identificados de forma inequívoca com melhorias na qualidade de vida. Desde o fim dos anos 1970, no entanto, tem crescido a percepção dos riscos decorrentes da tecnologia. Vivemos numa “sociedade de risco”, como sugeriu o sociólogo Ulrich Beck, e uma de suas características é a possibilidade de acidentes graves, como o da usina nuclear de Chernobil, em 1986, ou de catástrofes em escala global, como a pandemia. A legitimidade de decisões políticas fundamentadas na ciência passou a depender de acordos mais frágeis, pois muitas vezes são incertos – e uma pequena quebra de confiança pode ter um efeito bola de neve.
O livro The Crisis of Expertise, publicado em 2019 pelo sociólogo norte-americano Gil Eyal, ressalta que a nossa sociedade “pós-industrial, computadorizada e medicalizada”, tendo confiado durante longo tempo nos experts, resolveu agora reavaliar o trabalho deles. Isso ocorre após se acumularem várias recomendações ambíguas dadas por eles sobre temas que afetam o cotidiano das pessoas. Eyal dá um exemplo: durante anos, a Food and Drug Administration (FDA), órgão que controla os medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, endossou o adoçante ciclamato como substância segura. Na década de 1970, entretanto, resolveu proibi-lo, dizendo que causava câncer. A mudança de posição é compreensível, porque, como é normal à dinâmica da ciência, pode ocorrer a descoberta de novas evidências que levem a rejeitar a hipótese anterior. Acontece, porém, que um comitê da FDA decidiu, em 1984, que a substância não era cancerígena e, no ano seguinte, a Academia de Ciências interveio, dizendo que era insegura quando administrada com sacarina. Assim funciona a ciência, de fato, renovando-se sempre em razão de conhecimentos novos. Mas para os cidadãos comuns ficou esta pergunta: Causa ou não causa câncer, afinal? Não seria razoável pensar, em vista da inconstância das posições, que a FDA possa, futuramente, voltar atrás, mais uma vez? Outros casos não faltam, como as inversões na orientação sobre o consumo de ovos (faz mal/não faz mal) ou os prejuízos causados à saúde pelo colesterol. Essas mudanças de visão, quando não assustam, viram motivo de chacota das pessoas.
Vale lembrar, sobretudo, o grave episódio de 1998, quando a revista científica The Lancet publicou um artigo que associava a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) ao autismo – e que levou o autor, o médico Andrew Wakefield, a ter sua licença cassada. Um artigo com tão grave conclusão deveria ter sido examinado com mais rigor pela comunidade de especialistas que participa da revista, ela própria uma instituição que faz certa intermediação entre a ciência e o conhecimento público. A Lancet, contudo, se retratou apenas doze anos mais tarde, colocando uma tarja vermelha sobre o texto da publicação. Antes disso, em 2004, publicou a retratação da maioria dos cientistas que assinaram o estudo. Durante esse período, um vasto número de pesquisas científicas provou que a vacina tríplice viral e outras tantas são seguras, desmentindo a correlação com o autismo. Mesmo assim a taxa de vacinação começou a cair em alguns países. Entidades organizadas se aproveitaram do medo das pessoas para intensificar sua ação, ampliando a dúvida e a desinformação, e espalhando pelos países, inclusive o Brasil, o movimento antivacina. Ter um artigo científico publicado em revista de boa reputação ajudou nesse processo.
Eyal pergunta: Em face dessas inconstâncias, será uma atitude tão irracional da parte dos leigos duvidar dos experts? Talvez não, principalmente porque as pessoas parecem desconfiar cada vez mais que muitas pesquisas são financiadas por empresas, o que as leva a suspeitar que os experts possam ter motivos ocultos (de ordem política ou comercial) para endossá-las. A suspeição e o ceticismo foram, assim, corroendo a palavra dos especialistas.
O abalo na credibilidade dos experts, que é um fenômeno mundial, coincidiu com o avanço da extrema direita, que tem entre seus temas preferidos a desqualificação do trabalho dos especialistas, das instituições científicas e da ciência em geral. São muitos os motivos que levam esses conservadores a desmerecer a ciência – um deles tem a ver com a estratégia de destruir a independência das instituições em uma democracia, a fim de concentrar o poder numa só instância, o Executivo. Como os experts se reúnem em órgãos relativamente autônomos, dotados de saber, de autoridade e de relativa capacidade de mediação com os cidadãos, constituem por isso uma ameaça ao poder do governante autoritário. Seguem-se, então, os esforços desse governante e seus seguidores para corroer a confiança nas instituições, com acusações injustas, mentirosas e estapafúrdias, valendo-se de uma desconfiança prévia das pessoas (como mostrei no artigo O negacionismo no poder, publicado na piauí_161, de fevereiro de 2020).
São parte desse fenômeno a tentativa (malsucedida) de Bolsonaro de controlar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de intervir no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ou no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Político oportunista, Bolsonaro surfa na desconfiança generalizada para concentrar em si mesmo uma autoridade antes distribuída entre diferentes órgãos e especialistas. Infelizmente, boa parte dos políticos oposicionistas tem preferido minimizar as declarações de Bolsonaro, interpretando-as como bravata, loucura, burrice ou mera caricatura. Trata-se de um tremendo equívoco, como apontou Marcos Nobre no livro Ponto-Final: A Guerra de Bolsonaro Contra a Democracia, pois há uma racionalidade própria em sua estratégia política, o que vale também para as narrativas que inventa. Fazer o contraponto aos seus discursos requer, antes de tudo, levá-los a sério. A desqualificação pura e simples pode dar munição ao adversário.
Devemos aprender com o exemplo trágico da cloroquina, episódio em que Bolsonaro soube explorar as dúvidas de modo convincente para boa parcela da população. Em 16 de julho, na mesma live em que disse que Eduardo Pazuello fez o Ministério da Saúde recomendar a cloroquina para casos leves, justificou-se assim: “Se não tem alternativa, por que proibir? ‘Ah, não tem comprovação científica que seja eficaz.’ Mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem.” Na dúvida, segundo ele, a cloroquina deveria ser usada, e foram muitos os médicos dispostos a prescrevê-la, como mostrou a reportagem Jalecos em guerra, de Bernardo Esteves (piauí_169, de outubro de 2020).
A maior parte dos cientistas sempre defendeu que a cloroquina não fosse administrada para a Covid-19 porque realmente não há comprovação de sua eficácia. A Cochrane (uma biblioteca de análises sistemáticas da literatura científica na área da saúde) publicou uma revisão, em fevereiro, afirmando: a hidroxicloroquina não reduz mortes, nem o número de pessoas que precisam de ventilação mecânica; e a substância causa mais efeitos adversos do que um placebo. Ou seja, há evidências de que o remédio é ineficaz, em alguns casos até mesmo prejudicial, mas ainda falta explicar à opinião pública por que isso deve ser suficiente para evitar seu uso. Como convencer as pessoas a não tomar cloroquina e outros medicamentos similares, “por via das dúvidas”, como argumentam seus defensores? A fim de evitar a administração leviana do remédio, um artigo foi publicado às pressas, em maio do ano passado, outra vez na Lancet, buscando associá-la a riscos cardíacos – só que o texto foi retirado do ar logo depois da publicação, pois usava dados pouco confiáveis. Ora, no meio de uma polêmica mundial, evitar erros é mais importante do que publicar conclusões apressadas. De novo: isso só dá munição ao adversário. Remédios milagrosos estão sendo recomendados, de forma irresponsável, por muitos governantes brasileiros devido à impopularidade da única medida comprovadamente eficaz (antes de termos vacinação em massa): o distanciamento social. Ou seja, trata-se de um problema político, e não científico. Usar “o nome da ciência” na disputa política, como temos visto no debate público, pode deturpar seu papel e reforçar a crise de confiança.
Em épocas normais, a pesquisa científica lida bem com erros e correções de rumo, pois dispõe de tempo e de discrição para fazê-lo. Em tempos de grandes riscos coletivos, quando toda a atenção está voltada para as pesquisas, qualquer equívoco pontual pode ter consequências imprevisíveis. Durante a pandemia, temos vivido meses em que a ciência demonstra impressionante capacidade de dar respostas rápidas, porém assistimos também a tentativas de experts de ganhar destaque midiático e obter financiamento, de maneira mais ou menos oportunista, como apontou o artigo How Science Beat the Virus and What It Lost in the Process (Como a ciência debelou o vírus e o que perdeu no processo), publicado em dezembro na revista norte-americana The Atlantic.
O que fazer, uma vez que, como vimos, a crise da expertise não é de agora e ainda serve de esteio para o discurso de governantes autoritários? Uma pesquisa publicada em novembro de 2020, no âmbito do Centro de Risco Sistêmico, da London School of Economics and Political Science, mostrou que a desconfiança em relação aos especialistas científicos costuma historicamente aumentar em ocasiões excepcionais, como uma pandemia. As evidências sugerem que isso se traduz também em uma adesão mais baixa a políticas de saúde. O ceticismo, entretanto, parece afetar apenas os experts, poupando a ciência, que o senso comum não deixa de avaliar como parte do empreendimento humano como um todo.
Ou seja, não é a ciência em geral que está na berlinda da opinião pública. As ofensivas se voltam contra a posição dos especialistas em relação a saberes com efeitos diretos e atuais na vida coletiva: a saúde (vacinas e medicamentos), o clima (poluição e outras questões ambientais), a alimentação (o uso de transgênicos e agrotóxicos) e mesmo a teoria da evolução, por seu impacto nas religiões. A partir dessa constatação, os autores da pesquisa da London School of Economics sugerem que a comunidade científica passe a se preocupar mais com os fatores capazes de aumentar a credibilidade de seus posicionamentos públicos.
Também o historiador da ciência Steven Shapin diz que, hoje, não existe uma crise da verdade, como se tem aventado, e sim uma “crise do conhecimento social”. Isto é, a sociedade está com dificuldade para discernir o conhecimento científico confiável: reconhecer quem sabe e quem não sabe, quem é e não é confiável, que instituições produzem um saber genuíno e desinteressado. Há muito tempo, lembra Shapin, a ciência deixou de ocupar o lugar sagrado de prática desinteressada e protegida. Se, como vimos, a ciência, por meio de instituições de experts, teve um papel determinante na afirmação do pacto democrático no pós-Segunda Guerra, não é surpresa que sua legitimidade e autoridade sejam atingidas pela mesma crise que agora afeta esse pacto. Recuperar a confiança, portanto, significa melhorar a reputação das instituições democráticas, entre elas as científicas.
Uma das formas de recuperar a confiança é ir na direção oposta ao estímulo para que cientistas falem diretamente com o público, de maneira individual e improvisada. Fazer mais divulgação científica é ótimo. Mas, quando se trata de fazer recomendações de saúde à população ou aconselhar sobre políticas públicas em geral, penso que é preferível privilegiar posicionamentos institucionais. Universidades públicas, bem como centros de ciência estabelecidos, têm mais chance de conquistar confiança do que indivíduos. No Brasil, uma das falhas da comunicação durante a pandemia pode ter sido justamente o destaque excessivo dado a manifestações pessoais de especialistas, que viraram celebridades na internet e na televisão, deixando em segundo plano as instituições. Especialistas estarão mais protegidos se aparecerem como porta-vozes de instituições, que, também elas, deveriam se dedicar mais à produção de orientações voltadas para o público amplo – elaboradas por comitês coletivos, autorizados a falar em seu nome. Voltando à OMS, sua prioridade é fornecer subsídios para orientar tomadores de decisão, daí a linguagem excessivamente técnica de suas declarações. Talvez seja preciso, daqui em diante, desenvolver uma comunicação institucional mais direta com o público.
Outra forma de recuperar a confiança é ampliando o debate público e democrático. As principais discussões políticas que estão por vir tendem a acirrar os conflitos argumentativos em torno de resultados científicos, como é o caso do clima. É preciso que a população tenha espaço para expressar e debater suas inquietações, e não apenas que seja convencida por experts. Já há ideias inovadoras na mesa, visando aprofundar mecanismos de deliberação que envolvem temas científicos. No livro Open Democracy (Democracia aberta), a cientista política Hélène Landemore sugere que decisões sobre questões comuns possam ser feitas por cidadãos escolhidos por sorteio. Um artigo assinado por ela e outros autores na revista Science mostrou que as pessoas em geral são plenamente capazes de evitar manipulações e tomar decisões coerentes sobre temas de interesse coletivo, inclusive os mais difíceis. A mesma revista publicou outro artigo, assinado por vários autores (entre eles Ricardo Mendonça e Yurij Castelfranchi, da Universidade Federal de Minas Gerais), defendendo as vantagens de uma “deliberação cidadã global sobre a edição de genoma”.
Uma iniciativa inspiradora nesse sentido foi a Convenção Cidadã pelo Clima, realizada na França, que selecionou por sorteio 150 pessoas para que elaborassem propostas para diminuir a emissão de gases de efeito estufa. A convenção fez ao governo 149 propostas, entre elas a de um referendo para incluir a defesa do clima e a preservação ambiental na Constituição. A despeito dos possíveis resultados, o debate sobre mudanças climáticas na opinião pública foi aquecido. Em vários países já se vislumbra a tendência de ampliar fóruns democráticos de decisão, como mostrou Ricardo Abramovay, no artigo A Opinião das Pessoas Comuns Pode Colaborar nas Decisões Científicas? (publicado em sua coluna no UOL), invocando o documento Innovative Citizen Participation and New Democratic Institutions (Participação inovadora do cidadão e novas instituições democráticas), da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Esses são caminhos promissores para enfrentar a crise de confiança nos experts e responder à erosão do sistema democrático, pois dotam a vida coletiva de mais democracia e de novas instituições abertas à participação das pessoas comuns, ampliando o diálogo entre os cidadãos, os experts e os cientistas.
Nesses tempos difíceis, com mudanças tão profundas e tantas incertezas, é compreensível que as pessoas fiquem ansiosas e desconfiadas. A politização dos debates acaba por ser inevitável. Mas ela também pode ser desejável, contanto que haja espaço para maior participação cidadã. Para retraçar as fronteiras entre ciência e política, bem como o trânsito dos experts entre essas fronteiras, é preciso ampliar os espaços de debate, levando em conta as expectativas, dúvidas e apreensões da população. Só assim se poderá ir na direção oposta à da extrema direita: oferecendo, no lugar da paranoia, mais transparência; e, no lugar do autoritarismo, mais democracia.
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