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Maternidade: uma das minhas resoluções para o Ano-Novo era voltar ao curso de sapateado. Na primeira aula, a professora comentou que ser mãe era padecer no paraíso, e eu troquei de escola CRÉDITO: JULIA JABUR_2024
Quem nasce no inverno
Sempre fui popular entre os psicoterapeutas por causa das minhas parassonias de vida inteira
Vanessa Barbara | Edição 211, Abril 2024
“Por que a mamãe chora o tempo todo?”, o Heitor perguntou um dia enquanto comia uvas no sofá. Ele ainda não completara 2 anos. Tentei explicar que eu tinha uma doença e que às vezes ficava muito triste e cansada, mas que havia médicos a postos e várias opções de remédios para me ajudar. “E nem é o tempo todo!”, protestei.
A minha depressão era como o clima: ninguém sabia se o inverno viria forte ou suave, se ia chover fininho ou cair uma tempestade. Apenas acontecia. Mas dava para se preparar um pouco. Tínhamos cinco guarda-chuvas em casa, incluindo um tão grande que quase precisava de um alvará da prefeitura para circular. Quando o tempo fechava e a previsão era de tormenta, eu decidia dormir bastante, tipo a tarde inteira, até acordar um pouco menos exausta.
Nos momentos mais agudos, eu chorava muito e Heitor ficava impressionado. Tentava tomar alguma providência. Atravessava a sala correndo para segurar a minha mão, fazer carinho no meu braço ou me dar uma florzinha de plástico. Contava a única piada que sabia: a do elefante que passava por baixo da porta dentro de um envelope. Corria até o meu quarto e pegava da gaveta uma meia de lã bem grossa. “Não precisa chorar se você tem um balão”, ele me ofereceu outro dia. Era uma bexiga amarela com o rosto dele desenhado com canetinha.
Eu tentava explicar as razões circunstanciais de uma determinada crise: por exemplo, não estava conseguindo concluir um texto e me julgava incapaz. Ou: não tinha tempo para lavar o cabelo e perdi o bilhete do ônibus. Ou: passei a última quinzena resfriada e só encontrei batata para o jantar. Quase sempre eu havia acordado cedo por dois dias seguidos, não tinha nenhum controle das emoções e precisava dormir.
Nessas horas, até as boas notícias se transformavam em catástrofes. Haviam me convidado para escrever contos de ficção baseados na mitologia grega para uma editora, mas eu me sentia constantemente atormentada. Pensava em Zeus, que, depois da morte de Sêmele, gestou o filho Dioniso na própria coxa e o pariu com a segurança e a tranquilidade de quem chupa um picolé. Zeus também pariu Atena de sua própria cabeça, meses depois de engolir a esposa, Métis, que estava grávida; um dia ele se queixou de enxaqueca e pediu que Hefesto golpeasse seu crânio com um machado. Ao que consta, nem se espantou com o fato de a recém-nascida sair adulta e vestida com uma armadura, pronta para a guerra.
O que me faltava era a convicção de um deus do Olimpo em trabalho de parto. (Também me faltava a disposição masculina de engolir e explodir esposas, mas esse era um detalhe.) Na ausência de qualquer sinal de autoconfiança, eu agendava sessões de desalento para as segundas, quartas e sextas, com soluços extras nos fins de semana.
Em um desses momentos de choro, Heitor me trouxe um buquê de fitinhas coloridas para me alegrar. Dias depois, em uma tarde na biblioteca, enquanto remexia as estantes dos livros infantis, ele relembrou: “Não tá mais tisti a mamãe!” e “o Heitor pegou as fitinhas!”. Para ele, seres humanos eram como gatos: bastava acenar com uns brinquedos coloridos que tudo melhorava. Ele ficava confuso com a minha doença e se aborrecia também, mas posteriormente conversávamos sobre o assunto e ele se tranquilizava. Afinal, era normal ficar triste de vez em quando e expressar nossas aflições.
“Eu também quero ser escritor que nem a mamãe”, ele decidiu naquele dia na biblioteca, devolvendo à estante um exemplar de O grande rabanete. “Só que eu não vou chorar.”
Minha depressão é unipolar, o que significa que, ao contrário de outros poetas e escritores, nunca tive períodos de mania alternados com os episódios de desalento. Para essas pessoas, as fases de baixa energia podem ser circunscritas, delimitadas no tempo, e cedem o espaço a fases mais eufóricas. Confesso que já cheguei a pensar que a bipolaridade seria artisticamente “preferível”; o fato de esse pensamento ter passado pela minha cabeça me envergonha muito. Sei que a mania é uma fase devastadora e desorganizadora, permeada por um sofrimento que eu seria incapaz de mensurar.
Em todo caso, escrevo sobre o que sei, e, para os unipolares como eu, a sensação é a de andar com duas bigornas presas aos pés. O tempo todo. O esforço é gigantesco, e ainda assim mal consigo sair do lugar. Na maior parte dos dias, a impressão que se tem de fora é que estou apenas de pé, parada no lugar, porém mexendo vertiginosamente os braços.
(E agora, com um desses braços, eu tinha de segurar um bebê.)
A depressão de Sylvia Plath se revelava de forma episódica. Ela sabia que dormir menos de oito horas por dia era um de seus gatilhos. Segundo a biógrafa Heather Clark, “banhos quentes, tomar Sol e dormir” eram suas táticas para se manter no controle. Quando tudo o mais falhava, ela procurava obter energia de incentivos externos, como a publicação de um texto, a conquista de uma bolsa de estudos, o anúncio de um prêmio.
Plath teve dois episódios de depressão mais intensa. O primeiro ocorreu em meados de 1953, aos 20 anos de idade, após uma desalentadora temporada de estágio em Nova York que ela descreveu em A redoma de vidro. Depois disso, o plano de Plath era fazer um curso de verão ministrado por Frank O’Connor em Harvard, mas sua inscrição foi recusada. Ela então decidiu passar uns meses em casa escrevendo, porém se viu incapaz de produzir qualquer coisa. “As pessoas acham que eu tenho esse enorme poder de escrever e que as imagens simplesmente fluem, mas a verdade é que a minha mente está em branco”, ela confessou a uma amiga. “Fico vendo a Lua subir; fico vendo a Lua descer”, disse. Mais tarde, descreveu a um namorado sua depressão como uma “coisa orgânica, existente e viva”.
Clark observa, de forma perspicaz, que a dificuldade de Plath em ler e escrever não era a causa de sua depressão, mas um de seus sintomas. Nos meses seguintes, ela consultou um psiquiatra, fez sessões de eletroconvulsoterapia, tentou se matar e foi internada em um hospital psiquiátrico, onde fez mais sessões de ECT e com o tempo se recuperou.
Nesse caso, a remissão parece ter sido completa. Em meados de 1954, menos de um ano após a tentativa de suicídio, Plath estava escrevendo sua dissertação, aprendendo alemão e funcionando, sem muito esforço, em um alto nível acadêmico – tarefas que outrora a deixariam exausta e repleta de dúvidas. “O melhor é que o assunto me intriga e que, por mais que eu trabalhe nele, nunca vou me cansar”, ela escreveu sobre a dissertação. Seus poemas foram aceitos em várias revistas – um deles foi premiado –, ela ganhou uma bolsa de estudos quase integral do Smith College e foi aceita no curso de verão de Harvard. Durante as férias, pintou o cabelo de loiro e teve muitos namorados. Voltou para o time de remo da faculdade. Antes do fim do ano, entregou o primeiro rascunho da dissertação.
Já em 1963, quase uma década depois, a imagem que tenho é de um carro praticamente sem combustível, movimentando-se por inércia e tentando pegar no tranco, mas sem sucesso.
Em meados de 1962, poucos meses após descobrir que o marido a traía e não tinha mais interesse no relacionamento, Plath fez grandes planos de recomeçar. Na época, estava cuidando sozinha dos dois filhos do casal – Frieda, de 2 anos e meio, e Nicholas, um bebê de menos de 1 ano. Passou a tomar um remédio para dormir cedo e se levantava antes do Sol nascer para trabalhar enquanto as crianças dormiam. Ainda sem apoio psiquiátrico especializado, começou a se tratar com um clínico geral.
Conseguiu alugar parte da casa de William Butler Yeats em Londres – valendo-se do renome do ex-marido, o poeta Ted Hughes, como se ela mesma não bastasse – e encontrou uma ótima creche para a filha mais velha. “Meu quarto será o meu escritório – ele dá de frente para o nascer do Sol”, relatou para a mãe em dezembro de 1962. Os prognósticos eram otimistas. Em poucos meses, escreveu os melhores poemas de sua carreira, que acabaram por compor o livro Ariel. Disse que pretendia mobiliar o apartamento inteiro lentamente, “poema por poema”.
Mas a revista The New Yorker recusou tudo o que ela enviou de outubro a dezembro, com exceção de um poema. Conforme as cartas de rejeição chegavam, o otimismo e o impulso criativo foram se tornando mais difíceis de sustentar.
Ela esperava que A redoma de vidro, recém-lançado na Inglaterra, fosse um sucesso comercial, o que não ocorreu, a despeito das críticas favoráveis. Para piorar, duas editoras americanas recusaram o livro. “A publicação nos Estados Unidos teria renovado seu otimismo e autoconfiança em um período em que ela estava praticamente rodando no vazio. Em vez disso, as recusas esvaziaram suas reservas de energia, que já estavam baixas, e validaram suas piores autocríticas”, resumiu Clark.
Então o inverno chegou com força e, em fevereiro de 1963, Plath desistiu. “Chegamos tão longe, acabou”, ela escreveu pouco antes de se matar, em seu último poema, Edge [Limite]. Foi o inverno mais frio do século na Inglaterra.
Uma boa forma de descrever a depressão é evocar um pé de meia que fica preso no fundo da gaveta e passa anos extraviado, emperrando o trilho do móvel. Aí quando alguém tira a peça de lá, está toda seca e desbotada. E a pessoa: “Ué, eu tinha uma meia verde?”
Meu filho nasceu em maio, às vésperas do inverno. Já nos primeiros dias tive de empurrar a poltrona de amamentação para a parte menos fria da casa – de frente para uma parede – e dormia sentada, a cabeça mal apoiada, sonhando que deixava o bebê cair no chão. Éramos duas criaturas de fraldão, ambas desconfortáveis com as condições climáticas do mundo real. Ele fazia uns cocôs verdes e eu sangrava. Chorávamos o dia todo, em geral ao mesmo tempo.
O bloco de notas do meu Kindle passou três meses sem nenhum registro. Depois disso, há meia dúzia de apontamentos aleatórios da minha tentativa de reler o manual de mitos gregos do Robert Graves, em meio a uma espiral de recortes de livros sobre a maternidade: Cribsheet, The informed parent, What’s going on in there?, e até, vejam só, A encantadora de bebês – sinal de que estávamos mesmo desesperados. Nesse último livro, aprendi que o choro de fome do bebê seria “um ruído como uma tosse no fundo da garganta, que começa curto e depois assume um ritmo mais estável de uá, uá, uá”. Isso seria totalmente diferente do choro de cansaço, que começaria “com três gritinhos curtos, seguidos por um choro forte, e então duas respiradas curtas e um choro mais longo e ainda mais alto”. Minha tentativa de botar esses ensinamentos em prática falhou, mas tenho a vívida impressão de que numa dessas noites ele chorou: “Mamãe, meu nariz está coçando” em Código Morse.
Tudo culmina com esta marcação: “De fato, um estudo de 2012 com 1,2 mil bebês mostrou que a maioria deles acordou apenas uma noite por semana aos 6 meses de idade, mas – sempre tem um ‘mas’ – 34% deles não chegaram a esse ponto até os 24 meses de idade.”
Diante da crueza dessas estatísticas (e da minha falta de concentração para obras mais complexas), troquei a leitura de Graves por um manual pediátrico voltado para o público leigo e passei vários outros meses sem anotar quase nada, com exceção de uma ou outra informação sobre vômitos, engasgo e sintomatologia da coqueluche.
Aos 20 anos, em 1941, Clarice Lispector foi hospitalizada com depressão. Segundo seu biógrafo, Benjamin Moser, o episódio foi potencializado pela morte do pai, por uma desilusão amorosa e por pressões acadêmicas e profissionais. Os médicos lhe prescreveram um tratamento, que hoje se sabe ineficaz, chamado “sonoterapia prolongada” (ou “narcose contínua”), que a fez dormir por mais de uma semana sob o efeito de barbitúricos. Não se sabe muita coisa sobre esse primeiro episódio depressivo, apenas que ela se recuperou e voltou a trabalhar como jornalista. No ano seguinte, ainda no Rio de Janeiro, começaria a escrever Perto do coração selvagem, que foi publicado em 1943 e lhe rendeu certo renome no mundo literário brasileiro.
Também nesse ano casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente e começou a rascunhar seu segundo romance, O lustre. Em 1944, mudaram-se para Belém, onde passaram seis meses. “Estou aqui meio perdida. Faço quase nada”, escreveu em uma carta ao jornalista Lúcio Cardoso. Para a irmã Tania, ela disse: “Quanto ao meu trabalho, ando horrivelmente desfibrada: tudo o que tenho escrito é bagaço; sem gosto, me imitando, ou tomando um tom fácil que não me interessa nem agrada.”
Começaria em Belém uma forte sensação de deslocamento que atormentaria Lispector durante boa parte do tempo em que ela morou no exterior como esposa de diplomata.
As cartas que ela escrevia aos amigos e às irmãs eram repletas de solidão e desalento. Em fins de 1944, o casal estava vivendo em Nápoles, onde Maury ganhou o posto de vice-cônsul. Em uma carta a Lúcio Cardoso, pouco depois da mudança, ela disse: “O que importa é trabalhar, como você tantas vezes me disse. E é isso o que eu não tenho feito.” Exprimindo sua impaciência, acrescentou: “Não tenho gostado verdadeiramente da Itália, como não poderia gostar verdadeiramente de nenhum lugar; sinto que há entre mim e tudo uma coisa, como se eu fosse daquelas pessoas que têm os olhos cobertos por uma camada branca.” Disse que gostaria de escrever sem parar, mas que as coisas lhe vinham “esparsas” e ela ficava paralisada com a falta de autoconfiança.
Para a cunhada Eliane Gurgel Valente, Lispector tinha “um temperamento excessivamente sensível” e “sentia tudo o que eles [os outros] estavam sentindo antes mesmo que eles sentissem”. Na biografia da escritora, Moser conta que ela recortou um artigo de jornal intitulado Volume no cérebro, onde se lia: “A pesquisa mostrou que os mesmos eventos físicos são percebidos por algumas pessoas como se fossem mais ruidosos, brilhantes, rápidos, odoríferos ou coloridos do que para os outros […]. Em algumas pessoas, o volume é elevado ao máximo, amplificando a intensidade de todas as experiências sensoriais. Essas pessoas são chamadas de ‘amplificadores’.”
Lispector escreveu no alto da página: “Tudo me atinge – vejo demais, ouço demais, tudo exige demais de mim.”
Nos períodos mais pesados de inverno, eu tentava mitigar o frio do quarto do Heitor preenchendo as frestas das janelas com fitas de espuma e pedaços grandes de papelão. Deixava um aquecedor pequeno ligado por algumas horas. Tentei grudar um cobertor à janela com fita-crepe. A vizinha nos emprestou dois colchões de solteiro que encostamos à parede; o quarto não ficou menos frio, mas ficou muito silencioso. Ideia do Leandro, meu parceiro: “Vamos comprar um colchão king-size e botar no nosso quarto também!”
No desespero, encomendei uma cortina blecaute que me custou um mês de trabalho. (Estava revisando uma tradução comentada da Ilíada.) Ainda assim, sempre fazia 2 ou 3ºC a menos no quarto do bebê, que era voltado para a face Sul.
Mas quem sentia mais frio era eu; conforme o Heitor foi aprendendo a falar, aprendeu também a reclamar do excesso cotidiano de roupas e cobertores. Passou a dividir as pessoas de seu entorno em duas categorias: “friorento” e “calorento”. Ele pertencia ao segundo time, assim como o Leandro. Sempre que conhecíamos alguém novo, ele pedia, com gestos e fragmentos de palavras, que eu lhe perguntasse o nome, a idade e se era friorento ou calorento. (Em suma, as características mais básicas de um ser humano.) Conseguíamos repassar a família inteira no álbum de fotos, apontando-os um a um e classificando-os em uma das estirpes. Primos? Calorentos. Tias? Friorentas. Da mesma forma, gostávamos de conversar sobre as estações do ano. Minha preferida era o verão. Leandro era fã do outono, enquanto o bebê defendia ardorosamente o inverno.[1]
Comprei calças e blusas térmicas para vestir por baixo da minha roupa, enquanto ele implorava para dormir com um pijama fino. No ponto de ônibus, onde costumávamos passar um bom tempo juntos, um de seus passatempos favoritos era pedir que eu lhe mostrasse quantas camadas de roupa estava vestindo: diante de um público atento, eu ia folheando a primeira, a segunda e a terceira camada de meias. A blusa térmica, a camisetinha de algodão e o casaco de frio. O gorro, o cachecol, as luvas. Noites e mais noites em roupas escuras.
Nada me afetava tanto quanto um dia nublado.
Em setembro de 1948, Clarice Lispector teve o primeiro filho, Pedro. Na época, o casal estava morando em Berna, na Suíça. Ela passara os últimos meses da gestação tentando providenciar duas coisas: uma enfermeira para ajudar com o bebê e uma editora para A cidade sitiada. Só conseguiu a enfermeira.
O trabalho de parto foi induzido, durou dezesseis horas e terminou em uma cesariana de emergência. Lispector passou mais de duas semanas internada com febres e dores e não pôde amamentar. Contudo, a enfermeira suíça se encarregava de todos os cuidados com o bebê, permitia que a mãe saísse de casa para ir ao cinema e não a deixava “dar opinião demais”. Acabaram se mudando de casa em dezembro, depois que o médico “achou o quarto da criança sem Sol e frio”. Na visão de Benjamin Moser, ela estava feliz por ser mãe, mas nem mesmo o nascimento de Pedro foi capaz de arrancá-la da depressão.
Em janeiro de 1949, quatro meses após o parto, perguntou a Tania: “Eu sempre fui assim, difícil, melancólica?” E uns dias depois, desabafou às duas irmãs: “Ando em nova onda de apatia, o que é coisa velha… Chego a pensar que nem a volta para o Brasil me dará um jeito. Mas sonho com ela”, disse. “Em agosto teremos cinco anos de exterior. Não são cinco dias. Cinco anos de não saber o que fazer, cinco anos durante os quais, dia a dia, me perguntei como perguntava a vocês: Que é que eu faço?”
Para Lispector, a rotina no exílio a esmagava como se fosse uma tarde de domingo que não tinha fim. “Domingo em São Cristóvão, naquele enorme terraço daquela casa”, ela explicou, referindo-se ao bairro carioca onde morou na adolescência. “A vida começa a parar por dentro, e não se tem mais força de trabalhar ou ler.”
Sempre fui popular entre os psicoterapeutas por causa das minhas parassonias de vida inteira – sonambulismo, enurese, paralisia do sono, terror noturno, pesadelos recorrentes e transtorno comportamental do sono REM. O chato era que meus sonhos sempre foram abundantes e muito óbvios; analisá-los me parecia tão produtivo quanto pintar as unhas.
E ainda assim, tive sete terapeutas. Acreditei em todos. A primeira psicóloga prometeu que consertaria a minha timidez; a segunda me receitou florais de Bach. Insisti dez meses no divã de uma psicanalista lacaniana que atendia em um bairro nobre e me fazia chorar no ônibus depois de quase todas as sessões. Demorei tempo demais para entender que esse não era o propósito. Quando admiti que não estava sendo uma experiência produtiva, ela disse que eu não estava me doando ao processo terapêutico.
Tive uma experiência um pouco melhor com um terapeuta cognitivo-comportamental: era mais barato e divertido. Aprendi algumas técnicas úteis. Frequentei o consultório dele por um ano e meio, até sentir que as possibilidades da abordagem estavam se esgotando. Pelo menos era perto do metrô, mas eu vivia com sono porque era muito cedo para mim. Lembro de cochilar várias vezes nos bancos da plataforma antes de conseguir sair da estação. Na consulta final, ele tentou me convencer de que eu havia melhorado muito.
Passei outros dois anos em uma terapia de aceitação e compromisso, uma espécie de variação da terapia cognitivo-comportamental. Achei interessante – sobretudo porque não saía de lá aos prantos. A psicóloga me atendia em um horário decente e era perto de casa. Eu quase nunca faltava, e não só porque as ausências eram cobradas. Depois desse período, a própria profissional disse que não conseguiria mais me ajudar, o que achei honesto.
Fiz uma imersão de oito semanas em meditação mindfulness (sim!), uma sessão despropositada de EMDR (Eye movement desensitization and reprocessing) e uma sessão mais despropositada ainda de “processamento de memórias”, na qual passei umas três horas chorando. A terapia com cogumelos só me deu enjoo.
Lembro de permanecer mais de meia hora em silêncio com uma determinada analista: nunca mais voltei. Quase no fim da sessão, ela disse que os silêncios podiam ser produtivos, e eu me pergunto para quem. Outra analista garantia que a saída para a minha depressão era escrever – ao que eu e Sylvia Plath rimos muito. Chegava a ser ofensivo.
Ainda assim, vários amigos diziam que a terapia era o melhor investimento que já fizeram, e eu queria acreditar. Continuei tentando. Nos anos seguintes, gastei todo o dinheiro que tinha com psicanálise. Afundei ainda mais nos sintomas depressivos.
Minha última tentativa durou três anos. Até hoje uso a frase: “Vamos ficar por aqui hoje?” em discussões de relacionamento com o Leandro, naquele momento em que estamos chafurdando no fundo do poço e nada foi remotamente esclarecido. Durante a terapia, eu fazia os cálculos de quanto estava me custando dizer determinada frase e às vezes desistia de levantar um tema porque eu tinha coisas bem mais importantes para abordar. Logo teria de fazer um empréstimo.
No ápice da minha depressão pós-parto, a psicanalista disse que enxergava em minha relação com o Heitor “sorriso, vida e produção de sentido”. Em quase todas as experiências, eu é que precisava dizer que continuava muito mal. Em quase todas as experiências, a culpa era minha por não ter me doado ao processo terapêutico.
Clarice Lispector se mudou para Washington, comprou uma casa com quintal e teve um segundo filho. Até então, os livros que lançava não tinham grande repercussão crítica nem vendiam de forma significativa. Em 1958, começou a publicar contos periodicamente na recém-lançada revista Senhor. Segundo Benjamin Moser, “o resultado foi seu primeiro gostinho de genuína popularidade”. No ano seguinte, separou-se do marido e retornou ao Brasil com os filhos Pedro, de 10 anos, e Paulo, de 6.
No Rio, enfrentou dificuldades. Desfez várias amizades, evitando pessoas ligadas ao relacionamento com Maury, e passou a dormir às oito da noite. A pensão que recebia não era suficiente: “A vida estava muito dura. Não podia gastar um centavo à toa”, disse, na biografia de Nádia Gotlib. “As crianças estavam na escola e eu precisava comer. A fossa era completa.”
Como era impossível viver dos direitos autorais dos livros, Lispector retornou para o jornalismo. Em 1959, aos 39 anos, passou a escrever – sob pseudônimo – uma coluna de conselhos de beleza para a seção feminina do Correio da Manhã; em 1960, assumiu outra coluna, seis vezes por semana, no Diário da Noite, na qual exercia a função de ghost-writer da atriz Ilka Soares. Seus assuntos eram moda, maquiagem e comportamento.
Em entrevistas, afirmou que ficou sete ou oito anos “sem escrever”, mais ou menos de 1956 a 1963, quando trabalhou como jornalista e cuidou da venda de seus contos para periódicos. Também tratou da publicação de Laços de família e A maçã no escuro. Foi só a partir daí que seus livros começaram a vender mais. Em uma entrevista, já no fim da vida, declarou: “Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.”
Lispector tratou-se com inúmeros psicanalistas ao longo da vida, mas tinha vergonha de admitir. Durante seis anos, fez terapia quatro ou cinco vezes por semana com o dr. Jacob David Azulay, que declarou, em entrevista, que a escritora tinha uma carga de ansiedade que poucas vezes viu na vida. “Viver era para ela, nessa medida, um tormento. Ela não se aguentava. E as pessoas também não aguentavam. Eu mesmo, como analista, não aguentei”, reconheceu. Segundo o dr. Azulay, ela ingeria uma quantidade enorme de antidepressivos e tranquilizantes, mas, ainda assim, muitas vezes não dormia.
Sua última década foi de grande solidão e dependência emocional. Em 1966, aos 45 anos, caiu no sono com um cigarro aceso e foi resgatada do incêndio pelo filho adolescente. Passou três meses internada e quase precisou amputar uma das mãos. Depois do acidente, precisou de cuidados contínuos de enfermagem. Continuou escrevendo livros e agora também crônicas para jornais.
Só no penúltimo ano de vida é que ela recebeu um prêmio financeiramente significativo: pelo conjunto da obra, da Fundação Cultural do Distrito Federal. Em outubro de 1977, publicou A hora da estrela; dias depois foi internada por causa de um câncer no ovário. Morreu aos 56 anos, no hospital, segurando a mão da melhor amiga.
DIÁRIO DE CAMPO
Fui à biblioteca renovar o infantil Que cara é essa?, de Nicola Smee (catorze páginas), por mais duas semanas, após pedidos insistentes do Heitor. “É muito denso”, eu argumentei para o funcionário, à guisa de justificação.
Ele retrucou, filosófico: “Eu sei, é aquele que tem um espelho no final.”
***
Na primeira semana de janeiro, Heitor voltou de um passeio com o pai anunciando dramaticamente: “Acabou o Natal!” (Achei que ele podia ter me dado a notícia de forma menos brusca.) Apesar de jurar que preferia o inverno, meu filho parecia feliz com a chegada do calor e com a perspectiva de tomar banho de esguicho, brincar com potes de água e frequentar ambientes sociais só de fraldinha. Eu procurava absorver o máximo possível de raios de Sol em nossos passeios ao parque, mas nunca era o suficiente.
Uma dúzia de dentes havia nascido. O sono estava melhorando. Acho que, àquela altura, Heitor ganhara imunidade para uma lista de viroses que compreendia mais da metade do alfabeto. Eu tentava fazer meu trabalho avançar nos intervalos entre os pesadelos da madrugada, mas ainda era pouco. Pelo menos estava conseguindo dormir mais e já não sofria tanto com a privação do sono.
Uma das minhas resoluções para o Ano-Novo era a de voltar a fazer aulas de sapateado às sextas-feiras. Isso talvez me desse mais energia. Na primeira aula após o recesso de férias, minha professora, animada, comentou que ser mãe era padecer no paraíso, e eu troquei de escola. (Já não tinha mais paciência de ouvir platitudes sobre o tema.) Gostei da nova turma e achei as músicas melhores. Fiquei animada com a expectativa de me perder constrangedoramente em uma coreografia outra vez.
Com o início do verão, Heitor também passou a fazer menos xixi na cama. E agora conseguia explicar melhor o que o estava incomodando quando acordava à noite. Podia ser algo muito aleatório: ele queria que eu fizesse um nó de borboletinha (e não um nó simples) na fita que prendia o mordedor à cama. Ele estava com sede e não encontrava a garrafinha de água. O nariz estava entupido. Sonhou que caiu num buraco. Havia um fio de cabelo enrolado no mindinho do pé esquerdo. Tinha esquecido o final de Cai, cai, balão.
Eu conversava com ele de forma mais confiante, tentando acalmar a minha ansiedade e, ao mesmo tempo, aproveitando para pensar em voz alta enquanto falava. Isso era bom para ambos, já que assim ele entendia melhor como funcionavam os sentimentos. Logo Heitor estava dizendo coisas como: “Fiquei chateado por causa disso”, “Não gostei que você falou aquilo”, “Queria terminar o desenho antes da janta”, “O meu coração tá pulando”, “Eu ia ficar triste, mas fiquei feliz”, “Quando tá triste não adianta brigar”, e o já clássico: “Por que não dá tudo certo para mim?”. Era um alívio poder dialogar com uma pessoa de 80 cm de altura.
As palavras, novas e antigas, pareciam nos trazer novas possibilidades para o futuro. Estávamos no início de 2020. Dali para a frente, as coisas só podiam melhorar.
Este texto é uma adaptação de capítulos do romance Três camadas de noite, a ser lançado em maio pela editora Fósforo.
[1] Certa vez, depois de uma explicação preliminar dos conceitos “país”, “neve” e “inverno”, Heitor chegou às seguintes conclusões: “O inverno não é país. Mas o outono é país.”
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