Antes e depois: almas pagãs sugeriram que, sendo Deus um esteta, o raio que antingiu e incendiou a estátua de Cristo em Ohio nada mais seria do que um comentário crítico à obra FOTOS: JESSIE RAUCH/ROB LAMBERT_FICKR.COM/DARTHBENGAL
Raios!
Jesus virou cinzas
Paula Scarpin | Edição 46, Julho 2010
Os céus se manifestaram na noite de 14 de junho, na pequena cidade de Monroe, em Ohio. John Centers, do Corpo de Bombeiros, admirava o espetáculo da natureza na varanda de casa, quando a luz fulgurante de um raio iluminou a escuridão. O relógio marcava 23h10. Quatro minutos depois, o telefone tocou. Era do batalhão. A maior estátua de Jesus Cristo dos Estados Unidos, a famosa (pelo menos ali) King of Kings, estava em chamas.
Descerrada em setembro de 2004 pela igreja presbiteriana Solid Rock Church, a imagem era o principal ponto turístico de Monroe, cidade do Meio-Oeste com uma população de 8 mil criaturas, quase todas tementes a Deus. Quem passasse pela rodovia Interestadual 75 não podia deixar de vê-la. Fora apelidada por ímpios com senso de humor duvidoso de Big Butter Jesus, Grande Jesus de Manteiga, pela cor amarelada, e também de Touchdown Jesus, por causa dos dois braços em direção aos céus, o que lembrava o gesto do árbitro de futebol americano quando aponta a chegada da bola na extremidade do campo adversário. Alguns ainda tratavam a King of Kings de Drowning Jesus, Jesus Afogado, gracejo estimulado pelo fato de a estátua representar Cristo somente da cintura para cima, dando a entender que ele estava afundando nas águas batismais, e não emergindo delas.
John Centers e seus companheiros empenharam os melhores esforços para salvar a estátua. Conseguiram conter o fogo que se alastrava pelo anfiteatro da igreja, mas a grande imagem de Jesus foi completamente consumida pelas chamas. Em questão de minutos, Jesus derreteu, sobrando-lhe apenas o esqueleto. Que, para alegria da oposição, sugere a estrutura de um inseto gigante – mais precisamente, de uma baratona – a varetinha dos braços fazendo as vezes de antenas. Uma situação verdadeiramente cabeluda para os teólogos de plantão.
Concebida pelo artista plástico e cristão praticante Brad Coriell, e executada por James Lynch, cujas obras valorizam logradouros públicos e estabelecimentos comerciais em Las Vegas e na Disneylândia, a estátua era composta de uma epiderme de fibra de vidro, carnes de poliestireno e ossos de metal. O poliestireno pareceu a Lynch o material perfeito para a obra. Parente do isopor, ele resiste muito bem à água, fator essencial a um Jesus cuja representação simbolizaria a purificação batismal. O escultor estava bem à vontade com o poliestireno. Foi graças à maleabilidade do material que entregara ao Caesars Palace Casino, de Las Vegas, um Netuno portentoso, inspirado no da Fontana di Trevi, em Roma. Lynch não contava, porém, com outra característica do poliestireno: o fato de ser altamente inflamável. “É de partir o coração. Eu investi dois anos da minha vida neste trabalho”, lamentou-se por e-mail.
A Solid Rock Church, por sua vez, investiu uma dinheirama no templo e na imagem. O prejuízo com a destruição da estátua e com os danos ao anfiteatro foi estimado em 700 mil dólares. Tudo segurado, como reza a prudência. Ocorre que seguradoras oferecem paz de espírito contra todos os infortúnios do mundo, mas se eximem de responsabilidade quando cataclismos naturais se abatem sobre as coisas dos homens. A tais eventos dão o nome de “atos de Deus”, expressão técnica que aparece assim mesmo nos contratos. Não se tem notícia de uma apólice de seguro tão irônica.
E bota ironia nisso. O raio fez com que Monroe perdesse uma de suas duas atrações turísticas. Mas a menos de 5 quilômetros da igreja, exibe-se, em toda a sua glória impudica, uma megaloja especializada em revistas, filmes e brinquedos eróticos. “Não consigo acreditar que Jesus foi destruído, mas a Hustler ficou de pé”, declarou, perplexo, um morador da cidade ao jornal Dayton Daily News. Como se sabe, a marca Hustler, que dá nome à cadeia de lojas eróticas, é de propriedade de Larry Flynt, o pornógrafo oficial dos Estados Unidos e um dos homens mais odiados pelos conservadores americanos.
Se o patrimônio de Flynt está intacto, o dos pastores, não. Antecipando-se a um eventual resultado desfavorável na negociação com a seguradora, cujos advogados operam segundo desígnios muitas vezes mais insondáveis do que os de Deus, a igreja Solid Rock está apelando para os fiéis. No seu site, onde já era possível pagar o dízimo com cartão de crédito, agora também se pode fazer um donativo para reconstruir a estátua.
O imbróglio do seguro é uma questão a ser resolvida nas barras dos tribunais. Resta o aspecto teológico da coisa. Na internet, opinou-se que a desdita foi obra de Thor, o deus do trovão. Alguns sugeriram que, sendo Deus um esteta, o raio nada mais seria do que um comentário crítico à obra. Eruditos buscaram apoio nas Sagradas Escrituras e invocaram Êxodo 20, 4 – “Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.” Em comentário à passagem, um hermeneuta sustentou que o Senhor estava claramente “pegando mais pesado” na observação desse mandamento.
Revoltado com a repercussão do caso, o escultor James Lynch devolveu: “Vocês realmente acreditam que, se Deus quisesse mostrar o Seu poder, Ele escolheria explodir uma estátua de fibra de vidro? Ele teve oportunidades bem melhores de se pronunciar. Podia ter intervindo no Holocausto ou evitado que criancinhas fossem estupradas!”, argumentou. Empurrando mais fundo sua lógica abstrusa, Lynch poderia considerar que, se Deus reagiu com tamanha eloquência, foi porque não tolerou ser obra do mesmo escultor de Netuno, colega benquisto por muitos, mas irremediavelmente pagão.
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