FOTO: ANNA MARIANI_1977
República velha
Soltou um uivo animal, passou a mão no trabuco detrás da porta e descarregou quase toda a munição na cachola de Carlucho, que batia os dentes de terror
Vilma Arêas | Edição 16, Janeiro 2008
Tinha sido um ano difícil para o coronel Caetano Padilha, com seca e fuxico político. Tudo terminou com um escândalo que alegrou as gazetas por mais de um mês, só porque a junta da freguesia de São Salvador decidiu afrouxar os requisitos dos cidadãos votantes para vereadores e juízes de paz. A revanche veio no próprio dia das eleições, com a manobra dos governistas e seus capangas, que arremeteram, quebraram bancos, mesas e cadeiras – chegaram a dar bordoada em cego – ajudados pela autoridade do padre, que aconselhava a matar com toda a moderação.
O coronel Caetano tinha sido atraído pela promessa de abrandamento dos impostos sobre os grandes produtores como ele, e com a derrota adoeceu de abatimento. Mas os meses passaram e ele mergulhou no trabalho amargo, como remédio. Acabou agindo com tino na transação difícil da venda de uns garrotes no Caboio, e tomou o rumo de casa antes do tempo. Estava se sentindo curado e o coração se alegrou quando viu ao longe o bambual da Maravilha. O corpo pedia rede no alpendre, canto limpo de sabiá-laranjeira e a fresca do nordeste que sopra do rio. Janeiro era mês de trovoada e cantoria de cigarras. Naquele dia, o vento anunciava friagem, fazendo gemer as casuarinas e alguma janela mal trancada no casarão. Por isso o terreiro estava vazio, o povo encafifado. Quando atravessou a sala de jantar, o coronel pensava ainda no negócio concluído. Tinha começado o ano com o pé direito. O relógio grande bateu cinco da tarde. Ganhou o corredor, abriu a porta do quarto sem ruído, muito sossegado, e surpreendeu sua mulher na cama com o Carlucho. Sentiu uma friagem na boca do estômago e uma pontada no peito. Só se recuperou para perder as estribeiras. Logo o Carlucho, um escuro de nascença, contratado para trabalho de tocaia contra um vizinho salafrário, roubador de terra alheia. E ela, ela!, uma dona obediente com olho de porcelana, metida nos livros de devoção, zumbindo rezas com bafo de oratório, e apesar disso nojenta, se misturando com gentinha de cor. Onde estava Lilica, negra de confiança herdada do avô? E seu farrancho de crias a serviço do casarão? Que silêncio era aquele? Soltou um uivo animal, passou a mão no trabuco detrás da porta e descarregou quase toda a munição na cachola de Carlucho, que batia os dentes de terror. Como arremate natural, a última bala atingiu o cachorro que pertencia ao patife, cujo choro agoniado foi calado para sempre.
À ordem do coronel, os camaradas jogaram o corpo do matador no brejo atrás do pasto, o que atraiu de imediato os volteios emocionados dos urubus, no aguardo da carniça.
A mulher foi obrigada a velar dia e noite a colcha ensangüentada tremulando no varal, sem licença de se afastar para nada, nem para as necessidades. Mas contra todas as regras da tradição, nela o fazendeiro não encostou um dedo. Não vou sujar as mãos, gritou, em puta dessa laia.
A suspeita de desvario se deu durante a festa armada no terreiro, ocasião em que todos puderam testemunhar o coronel dançando uma quadrilha estropiada de sapateado trêmulo com as cabrochas e os tropeiros, berrando a plenos pulmões: “Negro não fuma charuto/ porque charuto já é/ se é branco deixa passar/ e morrer se negro é”.
Acabou bêbado na rede, sofrendo alucinações. O avô morto boiava por sobre os ramos das casuarinas, branco como filó, enquanto o casarão navegava como uma caravela no topo do canavial espumando de flor. À Lilica, que o foi cobrir com uma manta, sussurrou que não acreditasse que dentro da cana tinha açúcar. Tinha era o sal de seu suor. “O sal, está ouvindo bem? O sal do meu suor.”
Quando a colcha finalmente apodreceu, se desfazendo no tempo, disse à mulher que tomasse rumo, que não queria vagabundas à vista. Nesse momento não se conteve e soltou na cara fina duas bofetadas com a mão aberta, ofensa pior que a morte, o que imobilizou a gente e fez cessar todos os ruídos e vozes ao redor. Ela bateu de boca no terreiro, suja como no dia em que nascera. Quando pensaram que estava morta, se levantou como pôde, desapareceu aos soluços na curva do bambual.
Os filhos que não tardaram a chegar, atraídos pela desgraça, foram expulsos no momento mesmo da chegada, aos gritos e ameaças. O pai jurava cortar todos eles do testamento se ousassem mover um dedo a favor daquela ordinária. Era argumento forte, irrefutável. O coronel lhes deu as costas com deboche, os filhos de uma égua. Bateu a porta e mergulhou de cabeça no mau caminho, deflorando negrinhas nas moitas das restingas, ao pé dos brejos. Acabou por instalar no casarão mulheres da vida alegre, uma depois da outra, descobrindo que de alegres não tinham nada, tudo fingimento. A prova era que desfolhava em poucos dias todas aquelas corolas, atirando fora o talo que restava. Nunca mais ia querer compromisso com donzelas de primeira mão, porque se passavam por peça domada, mas por dentro tinham tanta manha quanto um carretel.
Um dia, olhando o mar azul de Macaé depois de uns tragos, concluiu que o único jeito era amigar com moça de certa marca, com arremate em rabo de peixe. Em sereia ninguém mete a colher. Raciocinou com lentidão, perdido nos fumos do charuto. Se as partes de baixo dessa dona não serviam para um homem, os recheios de cima não eram de se jogar fora. Melhor então desconfiar. Uma dúvida o assaltou e o fez estremecer. Estaria tomando entojo de mulher?
Com isso foi invadido por grande abatimento moral, um penar sem jeito que avivou a lembrança do vexame passado. Cachorra. Se arrependia agora de não ter incluído a mulher na lavagem da honra, com sua cara fina e olho de porcelana. Ele, o coronel Caetano Padilha, herdeiro único da Maravilha, tinha corrido da rinha. Procedera como um engomadinho de vento que não conhece a serventia delas, que não consegue ser autor de qualquer cabrita nos desmandos das esteiras. A peçonha azedou no peito, tinha a alma negra. Levou meses escoiceando e dando voltas no ar, enroscado no mesmo gancho. Deveria ter judiado dela, os tabefes e a expulsão não foram nada. E quanto ao matador de contrato, aquele tocaieiro de fala mansa, não bastou ter coçado o gatilho com aquela presteza. Devia era ter amarrado o desgraçado no pau-de-arara como faziam os meganhas com os pardinhos, socando a palmatória nas partes fracas do infeliz até a vida escapar. E não parava de ouvir o choro agoniado do cachorro do morto.
À depressão sucedeu a revolta. Apesar de ser sujeito de Irmandade, com estipêndio fixo para os necessitados, o coronel pôs abaixo a capela da Maravilha, espatifou imagem de santo, queimou paramentos de altar. O reverendo Moura quando soube correu ao casarão, levantou os braços aos céus, bradando que estava à sua espera uma vida trevosa nas labaredas do inferno. O coronel não deu o braço a torcer, e muito vento sul gemeu antes que ele amansasse o destempero.
Por essa época começaram a chegar notícias sussurradas e repetidas pelos recadeiros: que a mulher estava perambulando de um lado para outro, esfarrapada e falando sozinha como as doidas por aí. Dava medo. Que tinha envelhecido cem anos. E que agora esfregava de joelhos as lajes do hospital público, contando as pedras como uma amaldiçoada. O coronel pareceu não dar trela, mas passou a entreter a insônia cada vez mais freqüente pitando na rede, varando as madrugadas feito alma penada.
De novo rompeu janeiro com seus relâmpagos e seu cortejo de cigarras. Não demorou muito para o Coronel Caetano decifrar a própria sina. Não tinha como escapar. A prova era que andava sempre macambúzio como cachorro sem dono, ora pensando nas trapaças da política, ora naqueles desarranjos da vida.
Numa certa madrugada ficou muito tempo apreciando o canto do sabiá-laranjeira, a porcelana da cor do céu saudando o romper do dia. Parecia cochilar, mas quando saltou da rede estava decidido. Deu ordens expressas a Lilica e a seu farrancho. Queria tudo arranjado em todas as miudezas. Pela primeira vez em anos, seu coração batia no compasso. Só depois convocou os filhos. Na noite marcada, luar a pino por cima do bambual, serviu jantar de gala, que durou mais de uma hora, em toalha de linho, terrinas e bandejas iluminadas pelos castiçais acesos. Depois do cafezinho e da jenipapada, acendeu um charuto devagar, cozinhando a ansiedade dos convidados. Soprou a fumaça para cima com toda a calma, observando os anéis azuis que se abriam no ar.
– Meninos – disse enfim, enrolando o guardanapo e pondo termo ao jantar -, andei fazendo umas sindicâncias. Muito tempo já correu. Sei que não se compra ovo com azeite derramado, mas também sei que o que é do homem o diabo não come. Vou chamar a mãe de vocês de volta.
Dentro do silêncio que se fez, só quebrado por uns latidos de cachorro ao longe, completou, já de pé:
– Puta por puta fico com ela, que já estou acostumado.
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