ILUSTRAÇÃO: NEGREIROS_2009
Réquiem para Rafaela
A estrela global que jamais ganhou cachê e chegava aos estúdios amparada por cinco pessoas não deixa sucessoras à altura de sua pompa
Roberto Kaz | Edição 35, Agosto 2009
Na quarta-feira, 1º de julho, o biólogo carioca Claudio Machado foi do júbilo ao luto em questão de horas. O dia começara bem, com uma visita, pela manhã, à Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o Ibama, em Juiz de Fora. Lá, como lhe havia sido prometido, Machado foi presenteado com 104 cobras venenosas, todas vivas, metade jararaca, metade cascavel. O contingente se somaria ao plantel de 400 serpentes que ele gerencia no Instituto Vital Brazil, responsável pela produção de soro antiofídico no estado do Rio de Janeiro. Machado acondicionou-as em cinco caixas e, na companhia de um motorista, pôs o pé na estrada a bordo da camionete Sprinter da entidade.
Assim que chegou ao Vital Brazil, em Niterói, no fim da tarde, Machado foi recepcionado pela veterinária Vanessa da Matta, com uma notícia preocupante: Rafaela, a sucuri xodó da casa, estava com a cabeça tombada para o lado. Para o biólogo, qualquer serpente enferma seria apenas mais uma – exceto Rafaela. De pronto, ele largou as 104 novatas e correu em direção ao cercado que a abrigava. “Quando entrei e ela não virou a cabeça, percebi que estava morta”, contou. Colocou o réptil de 100 quilos e 5 metros e meio de comprimento em uma caixa e, amparado por um funcionário, carregou-o até um freezer comum, na esperança de conservá-lo para a taxidermia. Emocionou-se: “Não vou dizer que não dormi, mas confesso que naquela noite ela ficou na minha cabeça. Cobra não reconhece, não responde, não interage, mas a Rafaela era diferente. Beirava o místico.” O Brasil acabava de perder uma estrela televisiva.
Quando levada do Pantanal a Niterói, em 1976, Rafaela fora inicialmente batizada de Rafael – acreditava-se tratar de um macho. Constatado o erro, acrescentou-se a vogal. Sobrenome não teve. “Biólogo nem gosta de dar nome a cobra, mas a mídia abraçou”, justifica Machado. Rafaela chegou ao Instituto medindo apenas 2 metros, estatura que ofuscava qualquer sonho de construir uma carreira midiática. Durante quase quinze anos, teve a vida que cabe às sucuris de cativeiro. Dormia, rastejava e comia dois coelhos vivos por mês. Jamais haveria de rever a terra natal.
A oportunidade bateu à porta em 1990, ao ser escalada para uma ponta na abertura de Pantanal, a novela de maior sucesso da extinta Rede Manchete. Emplacou de imediato, contracenando com uma onça. Pouco depois da primeira gravação, foi convocada de volta ao estúdio, no Rio de Janeiro. Contracenou com o protagonista Cláudio Marzo, que interpretava o fazendeiro José Leôncio. “Foi a primeira novela que desbancou a Globo”, aponta Machado, com orgulho. Cláudio Marzo afirmou não guardar grandes lembranças do animal.
Daí ao jet set, foi um pulo. Rafaela tinha as duas características que mais se apreciam em um réptil-artista. A primeira, intrínseca à espécie: como toda sucuri, não era venenosa – poderia, no máximo, abater um colega de estúdio por estrangulamento. A segunda, inerente à sua personalidade: Rafaela era uma serpente pacífica. Nos mais de trinta anos em que viveu no Vital Brazil, provocou apenas um acidente. “Ela mordeu o pé de um funcionário, mas logo tirou a boca. Deve ter confundido com um animal”, defende Machado. Em 2007, matou a também sucuri Tieta, com quem dividia o cercado, mas em circunstâncias atenuantes que não abalaram sua carreira. Em reportagem publicada pela Folha Online, Machado afirmou que o incidente se devera à queda da temperatura, que forçara as duas cobras a se amontoarem. “Com o frio as sucuris ficam letárgicas. Pode ser por isso que Tieta morreu [ficou imóvel embaixo da outra cobra]”, afirmou, na época.
A prova de fogo ocorreu em 2005, quando Rafaela participou da minissérie Mad Maria, da Globo. Era sua primeira cena dentro d’água. “O diretor precisava simular um rio. Então a coloquei na piscina de um clube, em Jacarepaguá. Eu receava sua reação, pois na água a sucuri se enrosca no corpo com muita facilidade.” Prudente, Machado fez um primeiro teste, mergulhando com outros seis funcionários do serpentário. Rafaela continuou nadando cândida e languidamente – sinal de que os câmeras poderiam se juntar ao grupo. “No final, acabou tendo umas quinze pessoas na piscina ao mesmo tempo. Filmaram por baixo, por cima, de tudo que é lado”, relembra.
A fama da estrela estava selada. Se Rafaela era capaz de nadar entre quinze pessoas, por que não enfrentaria um auditório lotado? Pouco depois, ela apareceria em vários programas – ao lado de Luciano Huck, na Globo, de Cynthia Howlett, no GNT, de Wagner Montes, na Record –, sempre em quadros instrutivos sobre cobras. A carreira atingiu o ápice quando foi convidada a se apresentar no Fantástico ao lado de Lázaro Ramos, para protagonizar uma reportagem sobre fobia. Só ficou faltando ser imortalizada pelo fotógrafo Richard Avedon, sensualmente enroscada na nudez divina de Nastassja Kinski.
Apesar da fama, Rafaela jamais ganhou cachê, à diferença de outras estrelas televisivas do reino animal. Chegava aos estúdios em uma caixa de plástico, amparada por cinco pessoas.
Morreu sem deixar herdeiros. “Ela devia ter uns 40 anos, e as sucuris vivem no máximo 50”, conta Machado. Ainda assim, seu óbito abalou os funcionários do Instituto. “No dia seguinte, o clima era de luto”, lembra. No pequeno cercado em que habitava, restam uma píton e uma jibóia – ambas sem nome, assim como as outras centenas de cobras do local. Para Machado, ainda está para nascer uma estrela com a mesma pompa.
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