CRÉDITO: CARLA CAFFÉ
Réquiem para um apartamento
O incômodo de lidar repentinamente com tanto passado
Arthur Nestrovski | Edição 207, Dezembro 2023
Foi num ensaio de 1920 que Sigmund Freud formulou pela primeira vez o conceito de “pulsão de morte”. Hoje um clássico da literatura psicanalítica, Além do princípio do prazer busca explicar o que está por trás de tendências agressivas e autodestrutivas que, em alguma medida, são detectadas em cada um de nós. Tendências que não podem ser explicadas no âmbito do princípio do prazer, até então visto como único regulador do comportamento humano.
Num trecho que o próprio Freud chama de puramente especulativo, ele descreve a pressão de tudo na natureza para voltar ao estado original. Uma compulsão em cada célula de retornar ao plano difuso, inanimado, anterior à perturbação que originou a vida. À tensão do que é vivo corresponde um desejado relaxamento – na morte. Indo mais longe: os equilíbrios e desequilíbrios dessa dinâmica caracterizam não só a existência de cada indivíduo, mas também a das sociedades, como elaborado em O mal-estar na civilização, outro ensaio freudiano clássico, de 1930.
Com relativa clareza, ainda sem ter relido ambos os livros, essas ideias me vinham à mente poucas semanas atrás, no processo de desmontar um apartamento em São Paulo, alugado há nada menos que 26 anos. Todo esforço de organização, toda tentativa de controle – da rotina, das coisas, da higiene – é expressão de vida, que se contrapõe à tendência natural da desordem, que é instinto de morte. Enquanto esvaziava gavetas e estantes, dava destino à mobília e às plantas, desmanchava a cozinha ou retirava cortinas e luminárias, eu repetia a lição para mim mesmo, como fizera muitas vezes antes na batalha civilizatória com filhas adolescentes (hoje crescidas).
Minha mulher, Claudia Cavalcanti, e eu já tínhamos nos mudado havia quase três anos para um apartamento vizinho, no mesmo clássico prédio modernista do arquiteto Vilanova Artigas. Desde fins de 2020, em plena pandemia, quem continuava no antigo imóvel era Dora, nossa filha menor – vizinhança que garantiu a salvação de nós três naquele período. Mas Dora recentemente ganhou uma bolsa de estudos e foi viver fora do país. Era preciso entregar o apartamento e guardar os objetos.
Eram milhares de objetos – livros, discos, quadros, fotos, documentos sem fim. Cada um tinha de passar pelo nosso crivo, para ser depois reacomodado, doado, armazenado ou jogado fora. Decisões ora pequenas, ora grandes, mas sempre envoltas em lembranças que abarcavam décadas e toda uma geografia de lugares, com o correspondente elenco de protagonistas.
Muita gente passa por isso em algum momento. Mas faz diferença se o momento é na juventude, no início da fase adulta ou, como agora, depois dos 60 anos, quando a soma de experiências do passado só pode ser maior que a do futuro. As evidências espalhadas pelo apartamento resumiam o já vivido.
Naqueles dias, Claudia e eu sofríamos um intermitente mal-estar. A questão era entender por quê. Afinal, quem não aprecia ver retratos antigos de tempos em tempos? Quem não tem prazer em reler uma carta há muito esquecida ou uma dedicatória carinhosa? Quem vai negar o alívio de se desfazer de objetos sem uso? Um sábio amigo octogenário certa vez nos falou: “Tudo o que não se usa é lixo.” Quer dizer, tudo aquilo que se guarda, sem jamais ser consultado ou posto em uso, deveria ser descartado. Perder peso é bom, até na balança da alma.
O exercício traz revelações. Hoje, quem lê a carta do pai já não é aquele aluno de música numa universidade estrangeira, na distante era geológica em que não existiam computadores, e-mails ou celulares. O fato de a carta ter sido escrita a mão provoca, de súbito, um abalo muito diferente do texto impresso. Foi a mão do pai que escreveu cada palavra, numa caligrafia eternamente reconhecível, como o tom de sua voz, tão cheio de carinho e amizade, que se faz ouvir em cada linha manuscrita. Por mais familiares que sejam, essas palavras – redigidas quando ele tinha dez anos menos do que eu agora – também causam estranhamento. Entendo nuances que me eram simplesmente inatingíveis à época e fico mais perto desse homem que, em alguma medida, não conheci (por maior que fosse nossa proximidade) e com quem gostaria de conversar como sou hoje.
Já a fotocópia de uma carta escrita por mim, ainda adolescente, provoca efeito oposto, assim como várias fotos. Muita coisa incomoda nas versões anteriores de nós mesmos. Não deixa de ser um consolo identificar aperfeiçoamentos com a evolução do tempo. O essencial do melhor que se tem já estava lá, mas muita besteira foi sendo deixada de lado.
Certamente, alguma parcela do mal-estar que sentíamos tinha a ver com esses reencontros sem filtro. E também com a apreensão de escolhas, conscientes ou não, que foram feitas no passado. Sem dúvida, há incontáveis motivos de alegria numa vida rica de experiências pessoais e profissionais. Mas nisso reside igualmente outro motivo da reação melancólica. Para além das perdas humanas, rememoradas de modo concentrado naqueles dias, emergia uma infinidade de situações, projetos e realizações que, na época, significavam tanto e agora… Tudo que era tão sólido acabou se desmanchando no tempo e deixou, quando muito, alguns traços.
Vêm daí dois tipos de reflexão, uma genérica, outra específica. A primeira, óbvia, é que nada dura para sempre. Quase tudo passa rápido e se vai, por mais intenso e significativo que seja durante sua vigência. A segunda é que o resultado de nossos esforços não foi irrelevante, mas nem isso garante que vá permanecer a longo prazo. E será que precisa? Não basta ter feito o que se fez? De onde vem o desejo de continuidade? Que ilusão é essa, que quer se contrapor àquela fatal entropia freudiana?
Observando a sala vazia, as estantes sem livros, as janelas sem cortinas, as paredes nuas e o espaço livre de mobília, eu via a ausência de mim mesmo, à sombra do que passou. Haja Eros (o princípio vital freudiano) para compensar tanto Tânatos (sua contraparte). Equilibrados entre apego e desapego, guardar e descartar, esquecer e preservar, Claudia e eu navegamos aqueles dias, cumprindo a rotina de reorganizar um apartamento e a existência. Nada dura para sempre: exceto o amor, ou a aposta no amor, ou o trabalho do amor que, a essa altura, dois sexagenários podem declarar um ao outro, mais uma vez, no mesmo ato com que se despedem de tanto no passado, se desprendem de tanto no presente e atravessam o pequeno espaço infinito até a porta ao lado, no domínio da vida.
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