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Respeitem meus cabelos, brancos!
Nova lei da Califórnia proíbe discriminação contra penteados afro
Carol Bensimon | Edição 156, Setembro 2019
A senadora estadual Holly Mitchell entrou no Capitólio, em Sacramento, e logo se dirigiu à sala 112, onde se acomodou. Construído no século XIX, o palacete em estilo neoclássico abriga tanto o Poder Legislativo da Califórnia quanto o gabinete do governador. Com blazer azul e tranças puxadas para trás, a parlamentar ajeitou o lenço branco que lhe cobria o pescoço e, naquela tarde de março, explicou calmamente à audiência: “Colegas, tenho dois objetivos ao apresentar esse projeto de lei. O primeiro é fornecer informações básicas, que talvez muitos de vocês desconheçam, sobre as singularidades do cabelo de pessoas negras. O segundo é questionar alguns mitos comuns a respeito do profissionalismo nos ambientes de trabalho.”
Em seguida, a senadora democrata relembrou um episódio ocorrido em dezembro de 2018, quando o adolescente Andrew Johnson, que cursava o ensino médio em Nova Jersey, teve seus dreadlocks cortados durante um torneio estudantil de luta livre. Minutos antes de dar início a um combate, o juiz alegou que as mechas emaranhadas do rapaz feriam o regulamento do campeonato e que era preciso se livrar delas caso o atleta quisesse competir. Mesmo contrariado, Johnson se curvou à determinação e permitiu que lhe aparassem os cabelos no próprio ginásio onde iria lutar. O fato gerou um ruidoso debate nacional. “Foi a coisa mais difícil que já enfrentamos. Meu filho está bem agora, mas aquela situação toda me pareceu muito brutal”, desabafou a mãe do garoto no Facebook, logo após o incidente.
São acontecimentos como esse que Holly Mitchell – uma negra de 55 anos, eleita pelo distrito de Los Angeles – pretendia evitar ao propor a lei SB 188, conhecida como Crown Act. Aqui, além de significar coroa, o termo crown faz as vezes de uma sigla em inglês que quer dizer “criando um mundo aberto e de respeito aos cabelos naturais”. A lei almeja proteger negros e negras que adotam dreadlocks, tranças, twists e outros penteados afro não apenas nos ambientes profissionais, mas também nas escolas.
De acordo com Mitchell, os Estados Unidos colecionam casos de estudantes que, mal chegam às aulas, são obrigados pela direção dos colégios a voltar para casa por ostentarem “cabelos rebeldes demais” e passíveis de “distrair os outros alunos”. Trabalhadores de diferentes setores costumam enfrentar discriminações semelhantes. “Minha mãe contava que ia para as entrevistas de emprego com uma peruca lisa e que só se atrevia a assumir os próprios cachos depois de conseguir uma vaga”, recorda Malika Imhotep, doutoranda no Departamento de Estudos Afro-Americanos e da Diáspora na Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Desde criança, aprendemos que ser negra numa empresa ou escola representa um desafio extra. Então, queremos nos apresentar da maneira mais aceitável possível.”
Realizado em 2016 pelo Perception Institute, um consórcio de pesquisadores e ativistas que se dedica a questões raciais e de gênero, o chamado “estudo do cabelo bom” corrobora o testemunho de Imhotep. A partir de entrevistas com mais de 4 mil pessoas, o levantamento concluiu que, nos Estados Unidos, cabelos crespos são vistos como menos profissionais e menos atraentes se comparados aos lisos. Tal percepção vem principalmente de mulheres brancas. A pesquisa também apontou que 20% das entrevistadas negras sentiam-se pressionadas a alisar o cabelo e que 25% relatavam alguma dificuldade em encontrar produtos capilares que lhes satisfizessem. Além disso, 33% das negras afirmaram não praticar exercícios físicos com regularidade porque, após a piscina ou a academia, eram impelidas a se ocupar excessivamente de seus penteados. Entre as brancas, esse índice caía para 10%.
Os parlamentares californianos acabaram aprovando a Crown Act por unanimidade no final de abril. Em julho, o governador Gavin Newsom a promulgou. A Califórnia se tornou, assim, o primeiro estado norte-americano a proibir esse tipo de preconceito. Cinco meses antes, a cidade de Nova York já havia adotado restrição similar. “Isso tudo soa como avanço, mas para mim apenas confirma que mulheres negras não são bem-vindas em locais de trabalho ou estudo”, prossegue Malika Imhotep. “Eu adoraria não precisar de uma lei que considera injusto discriminar alguém por algo tão trivial quanto o modo de usar o cabelo.” A Crown Act entra em vigor a partir do próximo dia 1º de janeiro.
Se o padrão caucasiano de beleza ainda se impõe, a ascensão em vários países dos movimentos que valorizam os cabelos naturais sugere que o quadro pode mudar em breve. Cada vez mais mulheres – independentemente da cor – optam por deixar de lado a química agressiva dos cremes alisantes ou de relaxamento, e essa mudança de atitude já vem alterando as estratégias da indústria de cosméticos. Segundo a agência Mintel, que faz pesquisas de mercado, a venda de produtos à base de guanidina, tioglicolato e outras substâncias que alteram a textura capilar despencou 36,6% nos Estados Unidos entre 2012 e 2017.
Imhotep acredita que os fabricantes de cosméticos acabam por exercer um papel fundamental na mudança de percepção sobre os penteados afro. “Antes os negros tinham muita dificuldade para encontrar informações a respeito de cabelos naturais. Agora, há milhões de blogs em diversos países que falam do assunto e se dispõem a avaliar produtos de beleza. Claro que, por um lado, a indústria está somente reagindo a uma demanda. Mas, por outro, estimula os consumidores a se relacionarem de um jeito novo com seus próprios cabelos e os alheios.” Um dos apoiadores da lei defendida pela senadora Holly Mitchell é justamente a marca Dove, que pertence à gigante Unilever. No site norte-americano da popular grife de sabonetes, xampus e condicionadores, pode-se assistir a um vídeo sobre a Crown Act e assinar uma petição reivindicando que parlamentares adotem legislação parecida em outras regiões dos Estados Unidos.
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