Éramos um casal travestido, dois seres híbridos, meu marido e eu, cada um de nós metade homem e metade mulher VÂNIA MIGNONE_2018
Saldo final
Éramos um casal travestido, dois seres híbridos, meu marido e eu, cada um de nós metade homem e metade mulher
Rachel Cusk | Edição 143, Agosto 2018
Eu e meu marido nos separamos há pouco tempo, e nas últimas semanas a vida que construímos juntos desmoronou como um quebra-cabeça reduzido a uma pilha de peças desiguais.
Às vezes, quando a figura do quebra-cabeça está completa, mal detectamos o contorno das peças – há quem seja muito bom nesse jogo e se orgulhe de tal proeza. Mas em geral dá para perceber os contornos. A luz incide sobre os recortes da superfície – e só de longe a imagem parece indivisível. Minha filha mais nova gosta de montar quebra-cabeças. A mais velha, não: ela faz casas de baralho e quem estiver por perto precisa ficar em silêncio, imóvel. Vejo nessas atividades duas tentativas diferentes de exercer controle, mas também fico impressionada como elas demonstram que há mais de um jeito de ser paciente, e de ser intolerante. Minhas filhas levam um pouco a sério demais essas variantes de índole. Uma recrimina a outra pela tendência oposta; aliás, eu quase diria que cada uma vai atrás da própria atividade como se fosse um argumento. Afinal, um argumento nada mais é do que a urgência de se definir. E de tempos em tempos eu me pergunto se essa não seria uma das armadilhas da família moderna, com sua alegria incansável, seu otimismo ilimitado, família que não se apoia nem em Deus nem na economia, mas se baseia no princípio do amor, de tal modo que não consegue perceber – nem se precaver contra – a necessidade humana de guerra.
Naquelas semanas, sempre me vinha à mente o termo “a nova realidade”: era assim que as pessoas descreviam minha situação, como se uma “nova realidade” representasse uma espécie de progresso. Mas a verdade é que era um retrocesso: as engrenagens da minha vida deram marcha a ré. De repente estávamos todos indo para trás em vez de para a frente, retornando ao caos, à história e à pré-história, ao começo das coisas e mais além, ao tempo em que as coisas ainda não tinham começado. Tive que me acostumar à nova realidade. Minhas duas filhas pequenas tiveram que se acostumar à nova realidade. Mas, até onde eu podia enxergar, a nova realidade era apenas uma coisa quebrada. Havia sido criada, cumprira seu papel durante anos e, a menos que seus pedaços pudessem ser colados outra vez, ela não teria nenhuma serventia.
Meu marido acreditava que eu tinha sido um monstro com ele. Era uma crença inabalável: todo o seu mundo dependia dela. Era essa a narrativa que ele contava, e ultimamente começo a detestar narrativas. Se alguém, por exemplo, quisesse saber que desastre havia ocorrido comigo, eu perguntaria se a pessoa quer ouvir a verdade ou a narrativa. Talvez, para não ter que explicar, eu dissesse que um importante voto de obediência fora quebrado. Talvez eu explicasse que, quando escrevo um romance de um jeito errado, uma hora ele começa a enguiçar até que deixa de funcionar e não se deixa mais escrever; preciso, então, voltar ao início e procurar as falhas no texto. Em geral o problema está na relação entre narrativa e verdade. A narrativa tem que obedecer à verdade, tem que representá-la, como a roupa representa um corpo. Quanto mais rente for o corte, mais prazeroso seu efeito. Sem roupa, a verdade pode ficar vulnerável, deselegante, escandalosa. Com roupa demais, vira uma mentira. Para mim, as dificuldades da vida costumam estar na tentativa de reconciliar narrativa e verdade, como a criança de um casal divorciado tenta reconciliar pai e mãe. É o que as minhas filhas fazem, quando estamos todos juntos e elas colocam a mão do meu marido sobre a minha. Estão tentando fazer com que a narrativa seja novamente verdadeira, ou que a verdade não seja mais verdadeira. Fico bastante feliz de segurar a mão dele, embora meu marido não goste disso. Não é uma boa forma de fazer as coisas – e a forma é importante nas narrativas. Todas as coisas sem forma da nossa vida comum agora pertencem a mim. Assim não fico nem incomodada nem preocupada quando pego na mão dele. De modo geral, deveria haver mais mãos dadas no mundo. Foi nesse tipo de coisa que eu comecei a pensar.
Enfim o tempo parou de andar para trás. De todo modo, nós já tínhamos retrocedido um bocado. Ao longo daquelas poucas semanas, desfizemos tudo o que nos havia levado até o momento da separação; desfizemos até mesmo a história. Não sobrou nada além das crianças – para desfazer as crianças, porém, a ciência teria que intervir. Só que nós paramos antes da invenção da ciência: estávamos na Inglaterra em meados do século VII, antes do advento dos Estados-nações. Naquela época, a Inglaterra era um território dividido em partes; eu me lembro de, na escola, olhar para um mapa da heptarquia[1] do começo da Idade Média e sentir certo pavor daquela coisa difusa, da falta de um poder centralizado, da ausência de um rei, de uma capital e uma instituição. Só havia regiões cujos nomes tinham um quê de afeminado – Mércia, Wessex –, que se envolviam em briguinhas, com perdas e ganhos insignificantes e trabalhosos, e pareciam precisar de uma força motriz unificadora, uma força que, se eu tivesse parado para pensar, provavelmente teria considerado masculina.
Nossa professora de história, a sra. Lewis, era uma mulher grande e graciosa, uma espécie de elefanta-bailarina na qual os princípios de volume e feminilidade travavam uma luta crescente. O negócio dela era a Alta Idade Média: tinha estudado em Oxford, e agora estava lá, na sala de aula de um medíocre colégio católico para meninas, envolta em roupas bege feitas sob medida, que usava sucessivamente, com sapatos de salto combinando; parecia que um dia sua figura rosada poderia emergir daquele invólucro, para a surpresa de todos, qual uma estátua livre de seus lençóis empoeirados. A outra coisa que sabíamos sobre ela é que era casada, e isso por causa do nome. Mas como juntar esses aspectos disparatados da sra. Lewis, nós não fazíamos ideia. Ela dava grande importância ao Offa da Mércia, em cujo projeto de unificação da Inglaterra era possível detectar as primeiras pulsões da ambição masculina, e cuja imensa obra territorial, o Dique de Offa,[2] permanece até hoje como um lembrete de que a divisão também é um aspecto da unificação, de que é possível definir a si mesmo começando por quem você não é. E, de fato, os historiadores nunca chegaram a um consenso sobre a construção do dique, se foi projetado para afastar os galeses ou simplesmente para demarcar o território. A sra. Lewis tinha um posicionamento ambíguo diante do poder de Offa: com certeza o caminho para a civilização passava por ali, mas o preço a pagar era a perda da diversidade, do florescimento quieto que ocorre onde não há nada sendo construído nem objetivos sendo perseguidos. Nossa professora tinha gosto pelo antigo mundo saxão, quando os conceitos de poder ainda não haviam se reconfigurado; pois, de certo modo, a Idade das Trevas foi uma das versões da “nova realidade” – cacos do maior prato de todos, o Império Romano. Há quem chame de “trevas” o rescaldo daquela unidade, daquelas conquistas megalomaníacas; a sra. Lewis, não. Ela gostava daquelas terras sem dono nem função, gostava dos monastérios onde a criatividade era cultivada sem alarde, gostava dos místicos e dos visionários, dos antigos escritos religiosos, das mulheres que, naqueles séculos primordiais e informes, aos poucos arrebanharam uma grandeza própria; ela gostava das organizações populares, da esfera pessoal em que as questões de crença e justiça tinham que ser resolvidas longe da presença daquela grande administradora, a civilização.
Essas trevas – ou qualquer outro nome que se queira –, essa escuridão e desorganização não eram total negação, total ausência. Eram tanto rescaldo como prólogo. A civilização, a ordem, as significações e as crenças não são cumes ensolarados de montanhas que atingimos após uma escalada decidida e equilibrada. São construídas e então caem, são construídas e caem de novo, ou são derrubadas. A escuridão e a desorganização que surgem em seguida têm uma existência própria, uma integridade própria; formam um par com a civilização, como o sono se casa com o estado ativo. Na vida segmentada, a unificação é uma possibilidade; no interior do unificado, existe um horizonte de segmentação. Do ponto de vista da sra. Lewis, era melhor viver num lugar segmentado e desorganizado, onde é possível sentir a corrente obs-cura da criatividade, do que habitar a u-nidade civilizada, atormentada pela pulsão de destruição.
Pela manhã, levo minhas filhas à escola; à tarde, trago-as de volta. Arrumo seus quartos, lavo suas roupas, preparo a comida. Em geral ficamos sozinhas à noite; faço a lição de casa com elas, alimento-as e as ponho para dormir. De tantos em tantos dias, elas vão para a casa do pai, e então a minha fica desocupada. No começo era difícil aguentar esses intervalos. Agora já existe certa neutralidade neles, algo firme, mas vazio – algo vagamente acusatório a despeito do vazio. É como se essas horas solitárias – as primeiras, em muito tempo, em que nada me é solicitado, nem de mim esperado – fossem meus espólios de guerra, aquilo que recebi em troca de todos esses conflitos. Vivo cada uma dessas horas, uma depois da outra. Engulo cada uma como se faz com as refeições de hospital. E assim me mantenho viva. Vivo cada uma dessas horas, uma depois da outra, processando minha doença, sobrevivendo.
E você se diz feminista, meu marido me diria, enojado, durante as semanas amargas e doídas após a separação. Ele acreditava ter ficado com o papel da mulher em nosso casamento, e parecia esperar que eu o protegesse de mim, o macho opressor. Para ele, cabia à mulher fazer as compras, cozinhar e buscar as crianças na escola. E, no entanto, era quando eu fazia essas coisas que me sentia mais distante de ser mulher. Até minha mãe não me parecia grande coisa no exercício de seus deveres maternais; também para ela era como se aquilo fosse uma ameaça à sua feminilidade, não um fortalecimento. Naquela época, vivíamos numa cidadezinha no condado de Suffolk; minha mãe passava horas ao telefone. O som de sua voz, como se falasse consigo mesma, de algum jeito me enlouquecia. Suas frases pareciam ensaiadas, sua risada, artificial. Eu tinha a suspeita de que ela adotava uma voz particular, como se fosse uma atriz. Essa mulher frívola era uma impostora – minha mãe era uma pessoa que eu nunca podia ver ou ouvir com clareza. Era como se eu compartilhasse seu ponto de vista, como se vivesse seu tédio, ou prazer, ou irritação. Sua persona era uma espécie de segunda casa, fantasmagórica, que existia dentro da nossa casa de verdade: era lá que eu vivia, às cegas. Como poderia saber o que minha mãe era de fato? Como enxergá-la? Sentia sua atenção como a espiada de um olho interno que nunca me fixava diretamente, mas bebia da fonte do meu conhecimento sobre mim mesma.
Era só quando minha mãe estava com outras pessoas que eu, criança, conseguia percebê-la de modo objetivo. Quando ela às vezes convidava alguma amiga para almoçar em casa, de repente lá estava seu rosto de verdade. Subitamente eu via minha mãe, podia comparar as duas mulheres, saber qual delas era melhor ou pior, podia vê-la sendo gostada ou invejada ou provocada, podia conhecer seus hábitos particulares, seu caráter, tudo o que pertencia a essa mulher e não àquela outra. Naqueles momentos, a persona da minha mãe, minha morada, tornava-se inacessível para mim, escurecia como uma casa desocupada. Se eu batesse à porta, logo em seguida – e até com certa rispidez – era dispensada. O corpo dela, que costumava ser tão vasto, tão despreocupadamente onipresente, parecia ter sido empacotado e guardado num lugar fora do alcance. Ela também ficava trancada por fora e, durante aquele curto período, livre da tarefa de ser ela mesma. Fora esses momentos, ela representava; era pura narrativa, que podia ser bem ou mal contada.
A maioria de suas amigas também eram mães, mulheres cuja geografia eu já conhecia – enigmas ao redor daquelas máscaras de maquiagem e conversa, como campos abertos ao redor das cidades. A gente não podia ir até o campo, mas sabia que ele estava sempre lá. Minha mãe, no entanto, tinha uma amiga, Jane, que era diferente das outras. À época eu não entendia, mas agora percebo: ela não tinha filhos. Era uma mulher grande, esperta, apesar do rosto triste. Era possível dar voltas em torno da tristeza de sua boca e de seus olhos; eles estavam abertos a todos. Um dia ela nos visitou; minha mãe tinha feito um bolo de chocolate e tentava lhe passar a receita. Jane disse: “Se eu tivesse feito esse bolo, teria comido ele todo numa sentada.” Eu nunca tinha ouvido falar de mulheres que comessem bolos inteiros. Fiquei impressionada – parecia um feito extraordinário, como a prática do halterofilismo. Mas percebi que minha mãe não gostou daquele comentário. De algum modo, Jane havia entregado o jogo. Sem querer ela havia aberto uma fenda no grande muro da condição feminina, e me ofereceu um raro lampejo do que existia do lado de lá.
É impossível ter conhecimento prévio de algumas partes da vida – da guerra, por exemplo. O soldado que vai à guerra pela primeira vez não sabe como deverá se portar ao ser confrontado por um inimigo armado. Ele ainda não conhece essa parte de si mesmo – é um assassino ou um covarde? É no confronto que ele vai responder. E no entanto não sabe de antemão qual será sua resposta.
Meu marido me disse que queria ficar com a metade de tudo – inclusive das crianças. Não, eu respondi. Como assim não, ele disse. Foi pelo telefone. Pela janela, olhei o jardim; mais um retângulo urbano em meio a outros, os limites espreitados por gatos. Nos últimos tempos, nosso jardim tem se transformado em mato. Os canteiros soterrados de ervas daninhas. A grama comprida como cabelo. Mas, por mais desarranjado que o jardim ficasse, sua moldura seguia imperturbável: cada retângulo mantinha sua forma, a despeito do resto.
Não dá para dividir as pessoas ao meio, eu disse.
Elas têm que passar metade do tempo comigo, ele disse.
Elas são minhas filhas, eu disse. Elas pertencem a mim.
No teatro grego, distorcer as funções biológicas das pessoas é cortejar a mudança que é morte, a morte que é mudança. A mãe vingativa, o pai egoísta, a família perversa, a criança assassina – eis as ruas sangrentas que levam à democracia, à justiça. As meninas pertencem a mim: no passado eu teria criticado asperamente uma fala como essa. Onde é que essa heresia tinha sido gestada? Se era parte de mim, por onde estivera durante todos aqueles anos de nosso lar igualitário? Onde tinha se escondido? Minha mãe gostava de falar sobre os primeiros católicos da Inglaterra, forçados a viver e a reverenciar em segredo, dormindo dentro de armários ou sob as tábuas do chão. Para ela, soava extraordinário que as crenças verdadeiras precisassem se esconder. Seria essa, de fato, a verdade proibida, e nosso modo de vida a heresia? Eu disse mais uma vez: não conseguia não dizer. Eu disse para minha amiga Elea-nor, minhas filhas pertencem a mim. Eleanor tem um emprego, frequentemente se vê obrigada a passar semanas longe de casa; seu marido assume a responsabilidade quando ela não está, bota as crianças para dormir à noite, de manhã as entrega à babá. Eleanor tensionou os lábios e fez um leve sinal de reprovação com a cabeça. Os filhos pertencem tanto aos pais quanto às mães, ela disse. Para minha amiga Anna, que tem quatro filhas e nenhum emprego, eu disse, minhas filhas pertencem a mim. O marido de Anna passa muitas horas trabalhando. Ela cuida das crianças basicamente sozinha, assim como eu, hoje em dia. Sim, ela disse, as filhas são suas. É de você que elas precisam. Elas devem ser sua prioridade número um.
A história da minha carne encarnada nas minhas filhas sempre existiu numa espécie de exílio. Será que eu, como mãe, fui privada de algo? A longa peregrinação da gravidez, prenhe de maravilhas e humilhações; a apoteose do parto; a espoliação e a lenta reconstrução de cada centímetro da minha privacidade: todas as coisas que vêm com a maternidade passaram batido, foram esquecidas com o tempo, de propósito ou não… toda essa Idade das Trevas na qual agora sinto que a civilização de nossa família foi construída. E, de certa forma, eu também fiz parte desse pacto de silêncio. Uma das condições desse tratado que me dava o direito à igualdade era que eu não fizesse alusão ao primitivismo das mães, à superioridade inata de sua posição, que eu não invocasse esse vodu que faz o mecanismo dos direitos iguais desmoronar. Uma vez minha mãe chorou à mesa de jantar, descontrolada, acusando-nos de nunca ter manifestado gratidão por ela nos ter dado à luz. Algo de que mais tarde nós, adolescentes sofisticados e cruéis, rimos. Foi com razão que nos sentimos desconfortáveis: havíamos sido culpados injustamente. Não era nosso pai que deveria ter manifestado gratidão por ela ter dado forma, substância e continuidade a ele? Ao contrário, a contribuição dele, seu trabalho, corria em paralelo ao dela: era ela que tinha que ser grata a ele, ao menos na superfície. Durante anos, ele ia ao escritório e voltava com a precisão de um trem suíço, autorizado a fazer o que a ela era negado. Era a racionalidade do comportamento dele que fazia o dela ser irracional, pois para ela ser mulher era pura imposição e causa, ausência de regras e limites, um tipo de problema para o qual o trabalho dele era uma solução. Então como é que ela poderia querer nossa gratidão por algo que ninguém tomava como dádiva? Era por meio dela que todos nós servíamos às causas da vida; era ela a representante rigorosa de nossa mandante muda, a natureza. Ela se dava, assim como a natureza se dá; mas ninguém sobrevive na natureza só à base de gratidão. Nós tínhamos que domesticar e cultivar suas dádivas. Pouco a pouco, fomos nós que começamos a colher o reconhecimento por nossos resultados. Era no time da civilização que a gente jogava.
Assim como Deus, meu pai se manifestava pela ausência; talvez seja mais fácil sentir gratidão por alguém que não está presente. Ele também parecia responder ao chamado da civilização, reconhecer sua voz. Racionais que éramos, nós nos aliávamos a ele, em oposição ao paganismo de minha mãe, suas orgias emocionais, seu olhar eternamente pendurado em tudo o que já era passado, que já estava feito, ou, senão, no consolo do que era vazio e ainda estava por vir. Essas qualidades pareciam não ter origem: não pertenciam nem à condição materna nem a minha mãe, mas a algum fator eterno que emergia da união entre uma e outra. Em algum momento minha mãe teve uma realidade própria, viveu, por assim dizer, no tempo real. Era sempre impressionante ver como na foto de seu casamento, disposta sobre o aparador, ela estava magra. Lá estava ela, de branco, a vítima sacrificial: a bela sorridente, de cintura fina, compacta como uma semente. A chave, a inteligência da coisa toda, parecia residir no fato de que não havia, dela, quase nada ali. Nas linhas delicadamente cinzeladas de sua beleza estavam codificadas as ramificações de nossos futuros. Mas agora aquela beleza já estava desfeita, se esgotara, como o óleo sugado para fora da terra e transformado em combustão. O mundo engordou, ficou inchado, desorganizado, tornou-se perdulário de tanto óleo. Às vezes, quando olho para aquela foto, minha família parece ser o produto inflado da beleza da minha mãe.
Para mim, em algum momento no curso da vida, a noção de beleza feminina se transformou numa ideia abstrata, como aquela que um imigrante tem sobre lar. E, nessa transição geracional entre mim e minha mãe, ocorreu uma espécie de migração. De fato, meu lugar de nascimento era minha mãe – mas a nacionalidade que adotei foi a do meu pai. A ambição dela fora se casar e se tornar mãe, ser desejada e possuída por um homem de modo a ser legitimada. Minha existência era fruto dessa ambição. Porém, de algum modo, na evolução que partiu dela e veio até mim, minha legitimação passou a ser um assunto só meu. E no entanto as ambições do meu pai – ser bem-sucedido, vencer, prover – tampouco cabiam em mim. Eram malas com roupas de outra pessoa. Contudo, era o que tinha. Então vesti aqueles trajes – fiquei um pouco desconfortável, um pouco privada do meu gênero, mas pelo menos estava vestida. Tanto meu pai como minha mãe incentivavam essa forma de travestismo – minha mãe tendia, como meu pai, a se aborrecer com um boletim escolar ruim ou uma nota medíocre, apesar de ela mesma nunca ter sido uma aluna nota 10. Entrei em Oxford, e minha irmã, em Cambridge, as duas estimuladas por nossos pais, imigrantes no novo país da igualdade sexual, que esperavam atingir a assimilação por meio da segunda geração.
As pessoas se formam a partir do que seus pais dizem e fazem; e se formam por aquilo que seus pais são. Mas o que acontece quando aquilo que eles dizem não combina com o que fazem? Meu pai – um homem – passava seus valores masculinos para nós, suas filhas. E minha mãe – uma mulher – fazia o mesmo. Assim, era minha mãe que estava fora do esquadro, era ela que não fazia sentido. Pertencemos tanto a nossos pais quanto ao momento histórico em que estamos; imagino que teria sido condenável ela nos dizer, na Inglaterra do século xx, que não precisávamos nos preocupar com matemática, que o mais importante era encontrar um bom marido para nos sustentar. Ainda que sua mãe lhe deva ter dito exatamente isso. Como mulher, ela não tinha nenhum legado para nos transmitir; nada para passar de mãe para filha além desses valores masculinos adulterados. E, sobre a beleza, aquela terra natal abandonada, e agora tão espoliada – assim como espoliados foram os arredores de Suffolk enquanto eu crescia, desfigurados por ruas e casas que ofendiam meus olhos demasiado sensíveis –, sobre a beleza, a beleza feminina, sobre o lugar de onde vim, eu não conhecia nada. Ignorava suas maneiras e seus costumes. Eu não falava aquela língua. Naquele mundo de feminilidade onde eu tinha direito de reivindicar cidadania, eu era uma estrangeira.
E você se diz feminista, diz meu marido. E talvez um dia eu responda, sim, você tem razão. Eu não deveria me dizer feminista. Você tem razão. Por favor, me desculpe.
E, de certa forma, será sincero. O que, afinal, é uma feminista? O que significa se dizer feminista? Existem homens que se dizem feministas. Existem mulheres antifeministas. Um homem feminista é um pouco como um vegetariano: imagino que sua baliza seja o ideal humanitário. Algumas vezes o feminismo parece envolver tantas críticas aos modos femininos de ser que não dá para culpar quem acredita que as feministas sejam mulheres que odeiam mulheres, que as odeiam por serem tão idiotas. Mas, afinal, a feminista deveria odiar os homens. Ela despreza a servidão emocional e física que eles impõem. Ela os chama de o inimigo.
Seja como for, você não toparia com uma delas voltando à cena do crime – perdendo tempo na cozinha, na ala de maternidade, no portão da escola. Ela sabe que sua condição de mulher é uma fraude, manufaturada pelos outros em interesse próprio. Ela sabe que não se nasce mulher, uma mulher se faz. Então ela fica longe da cozinha, da ala de maternidade – como o alcoólatra fica longe da bebida. Alguns alcoólatras fantasiam a possibilidade de beber socialmente, com moderação; são os que ainda não fracassaram o bastante. A mulher que acha que pode optar pela feminilidade, que pode brincar com ela como aquele que bebe moderadamente brinca com uma taça de vinho, é a mulher que está pedindo, está pedindo para ser desmentida, devorada, pedindo para passar o resto da vida perpetuando mais uma fraude, manufaturando mais uma identidade falsa – com a diferença de que, desta vez, a farsa é a da igualdade. Ou ela está fazendo o dobro do que fazia antes, ou sacrifica sua igualdade e faz menos do que deveria. Ou ela é duas mulheres, ou é meia mulher. E, seja como for, ela terá que dizer que é disso que gosta: afinal, foi sua opção.
Imagino que uma feminista não se casaria. Não teria uma conta conjunta ou uma casa comprada no nome dela e do marido. Ela talvez não tivesse filhas cujo sobrenome não fosse o seu, e sim o do pai – de modo que, ao viajar para o exterior, precisa jurar para o sujeito na imigração que ela é, sim, a mãe. De fato, eu não deveria ter dito que era feminista, porque o que disse não combinava com quem eu era. Igual à minha mãe, só que ao contrário.
As experiências que tive sob o nome de “feminismo” nada mais eram do que os valores que meus pais (entre outros) me inculcavam, com todas as boas intenções; eram os valores travestidos do meu pai, e os valores antifemininos da minha mãe. Eu não sou feminista, então. Sou uma travesti que se odeia.
Como muitas mulheres que conheço, nunca fui sustentada financeiramente por nenhum homem. É uma informação anedótica – as mulheres têm uma queda por esse tipo de dado. E talvez uma feminista seja alguém que possua esse traço personalista num grau maior do que a média: a feminista se autobiografa, ela é uma artista dela mesma. Age como uma interface entre o público e o privado, como as mulheres sempre fizeram: com a diferença de que a feminista faz ao contrário. Ela não facilita: faz objeções. Ela é uma mulher virada do avesso.
De todo modo, quando se vive o bastante, a anedota vira estatística. Você surge com seu bando de dentro da selva da meia-idade, e cada um de vocês possui o conhecimento do que é coragem e do que é covardia; rapidamente vocês contam quantos sobreviveram, contam quantos perderam. Conheço mulheres que têm quatro filhos, e mulheres que não têm nenhum; mulheres divorciadas e mulheres casadas; mulheres bem-sucedidas e que fazem concessões; mulheres que pedem perdão e mulheres ambiciosas, esforçadas; mulheres insatisfeitas, mulheres que aceitam, mulheres que não pensam em si mesmas, mulheres frustradas. E, sim, algumas delas não dependem financeiramente de homens. O que tenho a dizer sobre as que dependem? Posso dizer que em geral elas se ocupam sendo mães em período integral. E se realizam sobretudo por meio dos filhos. É assim que me parece. O filho atravessa a mãe como a tinta atravessa a água: nada fica desprovido de cor. Vitórias e fracassos do filho são vitórias e fracassos da mãe. A beleza da criança é a beleza da mãe, e o que é insatisfatório na criança, idem. E, já que administrar filhos é o trabalho dessa mãe, seu modo de administrar o mundo segue o mesmo caminho. Sua subjetividade tem mais do que uma fonte, mas apenas uma saída. Disso pode resultar uma competência extrema: para algumas das minhas amigas essas mulheres são assustadoras, ameaçadoras. Essas amigas são, de modo geral, mulheres que sustentam mais do que uma identidade a partir de um mesmo eu, e talvez por isso tenham medo de serem acusadas de incompetência extrema. O poder delas é difuso: nunca o sentem retido num só lugar, e consequentemente nunca sabem quanto dele possuem. Não sabem se é maior ou menor que o daquela outra criatura, a mãe em período integral, ou dos seus colegas de trabalho do sexo masculino, que devem, imagino, compartilhar pelo menos em parte esse mesmo sentimento de dispersão.
Algumas dessas amigas que são mães e trabalham conseguem uma ou outra licença para ficar em casa, em geral nos primeiros anos da maternidade. Como criminosos perseguidos e finalmente encontrados, elas erguem os braços e se entregam: sim, foi demais para mim, foi impossível administrar a correria para lá e para cá, o sentimento de culpa, a pressão no trabalho, a pressão em casa, a pergunta sobre por que, afinal, você se deu ao trabalho de ter filhos se nunca ia ter tempo para eles. Assim elas decidem passar um ou dois anos em casa para nivelar de novo as coisas, como se nivela, conforme a receita, a massa de bolo em duas assadeiras, uma delas afinal sempre parecendo ter mais massa do que na outra. Seus maridos também -trabalham, vivem nas mesmas casas e cuidam dos mesmos filhos, mas não parecem ter que lidar com a mesma dose de conflito. Na verdade, às vezes é como se eles fossem melhores nesse negócio de ter filhos e trabalhar do que as próprias mulheres – mais uma vez, a insuportável superioridade dos homens!
Mas um homem que é um bom pai não comete nenhuma heresia contra seu sexo; e trabalhar é parte do que um bom pai faz. A mãe que trabalha fora distorce a função que lhe cabe no mito fundador da civilização – não é à toa que ela se sente levemente exausta. Ela está tentando desafiar sua relação profunda e duradoura com a lei da gravidade. Em algum lugar, li que existe uma estação espacial que está sempre caindo de volta para a Terra e que, de tantos em tantos meses, um foguete é enviado para empurrá-la para longe. É mais ou menos assim que as mulheres são sempre arrastadas pela força imperceptível do conformismo biológico: a vida delas é feita de repetições implacáveis; é preciso esforço para mantê-la em órbita. E elas se esforçam ano após ano – mas se, por acaso, o foguete não vem, elas caem.
A mãe em período integral costuma dizer que tem sorte: é esse seu macete, sua fala, caso alguém, uma mãe que trabalha, por exemplo, lhe pergunte sobre o assunto. Temos muita sorte que, com o salário de James, eu não precise trabalhar, ela diz, como se tivesse feito uma aposta considerável num só cavalo e de repente descobrisse que ele é o campeão. Você não ouve os homens dizendo por aí que eles têm sorte de poder trabalhar todos os dias. Mas a mãe em período integral costuma chamar de privilégio a “permissão” de exercer seu trabalho doméstico, e absolutamente banal. É claro que a afirmação é uma forma de defesa – ela não quer ser tachada de preguiçosa ou que pensem que não tem ambições. E, como é usual em defesas, ela esconde (ou quase esconde) um núcleo de agressividade. Podemos imaginar, porém, que fique em êxtase quando sua filha passa em primeiro lugar na prova de matemática, ou é aprovada em Cambridge, ou vira física nuclear. Será que ela desejaria aquele privilégio para sua filha – esta vida de ficar em casa com as crianças que remonta a tempos imemoriais? Ou será que ela pensa que esse é um enigma que de algum jeito o futuro vai resolver, junto com a cura do câncer?
Lembro quando minhas filhas nasceram, quando as peguei no colo pela primeira vez e as alimentei, lembro quando conversei com elas e tomei consciência desse aspecto novo e estrangeiro, um aspecto que fazia parte de mim e que no entanto parecia não ser meu.
Era como se de repente eu soubesse falar russo. Aquilo que eu era capaz de fazer – esse trabalho feminino – tinha uma forma muito particular, mas eu não sabia de onde esse conhecimento tinha vindo. De certo modo, eu queria poder afirmar que ele era meu, inato, porém isso me parecia implicar certa desonestidade, um tipo de fingimento. Mas como é que poderia fingir ser quem eu já era? Eu me sentia habitada por uma segunda criatura, uma irmã gêmea que brincava – como os gêmeos brincam – de se parecer comigo enquanto fazia coisas alheias a minha personalidade. Essa gêmea, no entanto, parecia má: tudo que ela queria era um grau maior de liberdade, uma libertação temporária dos protocolos rígidos da identidade. Ela queria agir feito uma mulher, uma mulher genérica. Mas as identidades não são genéricas. São total e profundamente específicas. Para agir como mãe, eu precisei colocar em suspensão minha personalidade, que havia se desenvolvido à base de uma dieta de valores masculinos. E meu hábitat natural, meu meio ambiente também tinha se alimentado da mesma dieta. Uma adaptação se fazia necessária. Mas quem se encarregaria dela? Naqueles primeiros dias, eu percebia que as pessoas que me conheciam estranhavam meu comportamento. Era como se eu tivesse sofrido uma lavagem cerebral, como se fora doutrinada por uma seita. Eu tinha ido embora – e não podia ser encontrada no endereço habi-tual. No entanto, essa seita, a maternidade, não era um lugar onde eu podia de fato morar. Nada nela dizia respeito a mim: a literatura, as práticas, os valores, os códigos de conduta, a estética – nada. E, além disso, era genérica: como toda seita, exigia um total abandono de si para que a admissão nela fosse autorizada. Assim, durante algum tempo não pertenci a lugar nenhum. Sendo mãe de crianças pequenas, eu estava à deriva, sem casa, itinerante. E durante aqueles anos, sem que o reconhecesse, eu sentia pena de mim e das minhas filhas. Para mim, parecia quase catastrófico o desencantamento desse contato com a maternidade. Como a filha adotiva que enfim localiza seus pais e descobre que eles não passam de estranhos, minha inabilidade para encontrar um domicílio onde ser mãe me impressionava, não por culpa do mundo, mas porque eu não era bem-vinda. Eu, mulher, era estrangeira.
Então fiz duas coisas: retornei à velha identidade moldada pelos homens; obriguei meu marido a cuidar das crianças. Era ele que deveria assumir o papel daquela irmã gêmea, a feminilidade. Cabia a ele oferecer-lhe um corpo como abrigo, pois dentro de mim ela parecia não encontrar paz. Minha ideia era que vivêssemos como dois seres híbridos, cada um de nós metade homem e metade mulher. Não era isso, afinal, a igualdade? Ele abriu mão do emprego de advogado, e eu abri mão de meus direitos exclusivos e primitivos de ser mãe das minhas filhas. Foram esses os sacrifícios iniciais para os novos deuses sob cuja proteção esperávamos viver. Só dez anos mais tarde, na sala de uma procuradora numa barulhenta avenida no norte de Londres, meu maternalismo de fato me pareceu primitivo, quase bárbaro. As meninas pertencem a mim – não era por esse blá-blá-blá tosco que eu costumava me interessar. Mas era só nisso que eu pensava, naquele escritório de vidro e aço escovado, de frente para a delicada procuradora com um vestido preto feito sob medida. Eu estava magra, esquelética de tanta angústia, e no entanto na presença dela eu me sentia enorme, bruta, uma rocha maternal encrustada de emoções primordiais e feias. Ela me disse que eu não tinha direito algum. Que a lei em casos assim não operava a partir de direitos. O que importava eram os precedentes, e os precedentes podiam ser tão sem precedentes quanto se quisesse. Então, no fim das contas, era como se não existisse nenhuma realidade primitiva. Não existia isso de pai, não existia isso de mãe. Só existia a civilização. Ela disse que eu era obrigada a apoiar meu marido financeiramente, talvez para sempre. Mas ele é um advogado diplomado, eu disse. E eu sou apenas uma escritora. O que queria dizer é que ele é um homem. E eu sou apenas uma mulher. O velho vodu continuava tocando seu tambor, lá no coração das trevas matrimoniais. A procuradora arqueou as sobrancelhas finas e deu um sorrisinho amargo. Bom, então ele sabia exatamente o que estava fazendo, ela disse.
O verão chegou, com seus reluzentes dias de sol retinindo na cidade à beira-mar onde moro – os gritos das gaivotas de manhã cedo, uma agitação resplandecente por toda parte, as águas ao longe, com luzes pipocando sobre o mar. Eu já não conseguia mais dormir. A cabeça repleta da tralha de sonhos, de peças recortadas do passado que subiam e giravam na ressaca do mar. No portão da escola, ao buscar minhas filhas, as outras mulheres me pareciam esquisitas, como se avistadas a distância. Eu as enxergava a partir do vazio aniquilado do oceano – elas, pessoas que habitam a terra firme, viviam em lugares construídos. Elas não haviam destruído a própria casa. Por que eu destruíra a minha? Numa visita a minha irmã, fiquei sentada na cozinha enquanto ela dobrava roupas limpas. Eu a observava dobrar as camisas do marido, as calças dele. Fiquei chocada ao ver esses trajes masculinos, e ao ver minha irmã tocar neles. Era como se ela apalpasse algo proibido. Seu direito de manipular esses itens proibidos era demais para mim.
Você sabe qual é a lei, disse meu marido pelo telefone. Ele estava se referindo a minha obrigação de lhe dar dinheiro.
Eu sei o que é correto, eu disse.
E você se diz feminista, ele disse.
O que eu preciso é de uma esposa, brincou a executiva feminista estressada, e todos riram. A graça é que a busca da feminista por valores masculinos a levou ao limite da exploração feminina. É irônico. Sacou? A feminista despreza aquela criaturinha cúmplice, a dona de casa. Seu primeiro ato feminista pode ter sido, por exemplo, a tentativa de libertar a dona de casa que foi sua mãe, só para descobrir que aquele resgate não era desejado nem necessário. Eu odiava a condição não remunerada da minha mãe, sua domesticidade, sua servidão, odiava muito mais do que ela, até porque minha mãe jamais disse que não gostava daquilo. Mas lá estava eu, acusada de recriar exatamente essas mesmas condições na minha vida adulta. Odiei a condição não remunerada do meu marido tanto quanto tinha odiado a da minha mãe. E ele, assim como ela, dizia estar contente com sua vida. Então por que eu sentia tanto ódio? Porque representava uma dependência. E tinha mais coisa aí, porque seria possível pensar que a dependência é um acordo entre duas pessoas. Meu pai também dependia da minha mãe: ele não podia preparar uma refeição nem cuidar dos filhos enquanto estava no escritório. Eles eram duas metades que formavam uma coisa só. Em termos morais, o que é uma meia pessoa? Mas as duas metades não eram a mesma: de certa forma, meus pais eram um ser humano único segmentado em duas partes. A metade do meu pai era muito diferente da metade da minha mãe, mas apesar das diferenças nenhuma das duas metades fazia sentido sozinha. O problema então estava na diferença.
Minha noção de metade é mais parecida com a da minhoca: se cortada ao meio, cada metade continua sendo uma minhoca, se contorcendo e lutando. Na nossa casa, quem ganhava dinheiro era eu; eu cumpria com a minha parte da cozinha e da arrumação, pagava alguém para cuidar das crianças enquanto eu trabalhava, e, quando elas cresceram, era eu quem as buscava na escola. E meu marido ajudava. Era essa a frase dele, e ainda é: ele me ajudava. Eu era a mulher moderna segmentada, a mulher que tinha tudo o que queria, e ele me ajudava a ter, ele me ajudava a ser. Mas eu não queria ajuda: eu queria igualdade. Na verdade, essa ideia de ajuda começou a me irritar. Por que não podíamos ser iguais? Por que ele não podia se segmentar? E por que razão, exatamente, um homem está ajudando quando ele cuida dos filhos, ou cozinha a refeição que ele vai comer? Quando uma criança bem-comportada ajuda a mãe, o que ela está fazendo é ajudar. Uma pessoa que ajuda realiza funções que estão além de sua responsabilidade, e o faz por generosidade. A ajuda é perigosa porque ela está fora da economia humana: o único pagamento possível é a gratidão. E, do meu lado, será que nada do que eu fazia, quando ganhava meu dinheiro, mereceria um agradecimento? Será que eu não achava que, em parte, estava prestando uma ajuda imensa sendo uma mulher que sustenta sua família?
E assim, sob a superfície das coisas reconfiguradas, encontram-se as tensões das velhas ortodoxias. Éramos um homem e uma mulher que, em nossa luta por igualdade, tínhamos apenas trocado de roupa. Éramos dois travestis, um casal travestido – e, afinal, por que não? Bom, porque eu estava fazendo as duas coisas, estava sendo tanto homem quanto mulher, enquanto meu marido, por mais que bem-intencionado, fazia apenas uma. Certa vez uma amiga me confessou que admirava nosso estilo de vida, mas que ela mesma não aguentaria. Ela admitiu que deixaria de respeitar seu marido se ele virasse uma esposa. Nós dois éramos matéria de admiração: eu, por não precisar de um homem, e ele, por aceitar não ser mais um. Mas fiquei interessada. O quê, exatamente, estava sendo admirado? E como isso poderia provocar perda de respeito?
Às vezes a consciência da minha competência me assustava. Como é que eu continuaria ligada ao mundo se não fosse por uma relação de necessidade? Eu parecia não necessitar mais de ninguém; eu conseguia fazer tudo sozinha. Eu era as duas metades. Será que isso queria dizer que eu era completa? De certa forma, eu estava vivendo o ápice das possibilidades feministas: não havia mais coordenadas para depois do “Tenho tudo o que quero”. Tudo nessa frase é pertinente: a riqueza, a sugestão de um esplendor descarado. Poder ter tanto a maternidade quanto o trabalho era ter duas vidas em vez de uma, era um refinamento deslumbrante da experiência histórica das mulheres, e para as pessoas que reclamavam que “ter tudo” significava “fazer tudo”, eu respondia, sim, é óbvio. Não dá para ter “tudo” a preço de nada. “Ter tudo o que se quer”, como qualquer outra forma de sucesso, exige muito trabalho. Exige que se assuma o modo heroico. Mas a heroína é solitária, é uma individualista, apartada da comunidade humana. Ela vagueia, sempre atrás do Santo Graal, para sempre buscando, perseguindo a meta que irá lhe oferecer um espelho adequado a suas habilidades. A heroína, por excepcional, é fundamentalmente solitária.
Assim, eu era tanto homem como mulher, mas com o tempo a mulher adoeceu; a mulher tinha menos recompensas. Eu precisava ficar fora do caminho, longe da cozinha, manter certa distância das minhas filhas – não só para definir a feminilidade de meu marido, mas para apaziguar meus valores masculinos. É o truque mais velho do machismo, essa necessidade que as mulheres têm de controlar os filhos. Eu percebia que no narcisismo e no sentimentalismo da condição materna havia uma ameaça à objetividade que eu, como autora, valorizava tanto. Mas não era por causa do controle das crianças que eu adoecia. Era por algo mais sutil – o prestígio, o prestígio que serve de recompensa à mãe pelo trabalho de ter carregado suas crias. E agora esse prestígio era do marido. Eu lhe tinha dado, ou ele o tomou de mim – de qualquer modo, era isso que nosso acordo lhe concedeu. E o trabalho doméstico que eu fazia estava, de certa forma, a serviço desse prestígio, pois ele abrangia o trabalho servil, corriqueiro, banal e abertamente entediante; como se, enquanto isso, eu estivesse ocupada nos bastidores, trabalhando para garantir que um bom espetáculo fosse realizado no palco. Então, no fim das contas, eu não era um homem – homens não cuidam do trabalho sujo, do trabalho chato. Mas tampouco era mulher. Eu me sentia feia. Afinal, as coisas que eram minhas – as roupas sujas, o imposto de renda – eram feias. Pensando bem, nada do que era belo me dizia respeito. Eu passei dois dias em Paris com meu marido, e estava decidida a cortar o cabelo num salão de beleza francês. Não é assim que as mulheres fazem? É isso, eu queria me feminilizar. Queria que alguém me devolvesse minha feminilidade perdida. Um cabelereiro homem cortou meu cabelo. Ele ficava rindo sozinho enquanto cortava; era uma tarde sem graça no salão e ele estava se divertindo com aquilo, fazendo um corte meio punk, meio nouvelle vague para uma mãe de família de rosto cansado e vazio. Depois saí andando pelas ruas parisienses, ansiosa para ver meu rosto refletido nas vitrines. Eu tinha passado por uma transformação ou uma deformação? Não sabia dizer. Meu marido tampouco. Parecia terrível que nós dois somados não pudéssemos chegar a nenhuma verdade. Parecia terrível aquilo: estar à luz do dia, nas ruas públicas e anônimas, e não saber.
Às vezes as crianças choram no banho. Sua nudez, ou a água quente, ou a velha rotina confortável, ou alguma outra coisa arranca o esparadrapo das emoções e expõe a ferida antes coberta. E acredito que fui eu que infligi essa dor, então sou eu que devo levar a culpa. Essa é outra versão do modo heroico, no qual é difícil distinguir a heroína da vilã.
Eu as feri, e foi assim que aprendi a realmente amá-las. Ou melhor, eu admiti, eu admiti que as amava, admiti o quanto existia desse amor. Eu exteriorizei o amor; quando ele estava só dentro de mim, tinha sido um instrumento de autotortura. Mas agora ele estava no mundo, visível, colocado em prática. O que é uma mãe amorosa? É alguém cuja preocupação por si mesma transbordou para os filhos. O sofrimento de seus filhos causa mais dor do que o seu: é Maria ao pé da cruz. Na missa de Páscoa, a descrição do estado emocional de Maria me tocava, pois no meio daquele drama de tormento físico, dizia-se que ela sentia como se seu coração tivesse sido atravessado por uma espada. Achava curiosa a imagem que descrevia seus sentimentos – uma imagem vinda do mundo externo, frio e duro, uma imagem do plano físico dos homens. De algum jeito, na transição entre ser outro e ser mãe, o ativo se torna passivo; o real, teórico; o físico, emocional; o objetivo, subjetivo. O golpe é mais macio: quando minhas filhas choram, uma espada atravessa meu coração. Mas também sou eu que provoco o choro. E durante algum tempo eu me desmorono nessa contradição, na dificuldade de relacionar a pessoa que agiu em interesse próprio à mãe de coração partido que vem logo em seguida. Parece ser a evolução final e -fatal da mulher segmentada, uma es-pécie de transtorno de personalidade, como a esquizofrenia.
O inverno chega: os dias são curtos e pálidos, o mar se retrai para o mundo da inconsciência. A água friamente prateada vai e volta sobre o cascalho. Chegam as longas noites de estrelas e geada, e de manhã as poças congeladas parecem espelhinhos estilhaçados ao longo das ruas. Nós dormimos muito, como quem se recupera de uma cirurgia. A dor é fortíssima, e o torpor da recuperação é tamanho que às vezes a gente nem percebe quando a dor vai embora. Um dia você acorda e se dá conta de que ela se foi e só deixou um curioso vazio na memória, uma sensação de mistério transitório, como se a pessoa que sofreu não fosse a mesma, ou não fosse bem a mesma que agora segue curada, por aí. Mais um segmento foi criado, o que agora guarda todos os retalhos, os fios soltos da experiência, as perguntas para as quais nunca se encontrou resposta.
Nós reorganizamos os móveis para cobrir os buracos. Começamos a economizar, aceitamos ter um inquilino, compramos um aquário. Os peixes dão piruetas e rodopiam eternamente entre as algas, não importa o dia. As meninas vão para a casa do pai e depois voltam para a minha. Elas já não choram mais: reclamam efusivamente de como o novo arranjo é inconveniente. Elas estão com as bochechas rosadas. Uma amiga vem visitar e repara no som de risadas na casa, como pássaros cantando após o silêncio do inverno. Mas o inverno não passou: saímos para ouvir canções de Natal na igreja, e eu observo as outras famílias. Observo a mãe, o pai, os filhos. E é tão claro, é como se eles estivessem atrás de uma janela, calorosamente iluminados, e eu estivesse do lado de fora, no escuro, olhando; eu vejo a narrativa na qual eles cumprem suas funções, tendo o mundo todo como cenário. Nós já não pertencemos mais a essa narrativa, minhas filhas e eu. Pertencemos mais ao mundo: ao mundo desorganizado e arriscado, o mundo fragmentado e livre. O mundo está sempre evoluindo; a família se empenha em permanecer igual. Ela se renova, troca os móveis, fica moderna, mas é essencialmente a mesma. Uma casa numa paisagem: prisão e abrigo.
Nós cantamos juntas, formamos um trio. São as mesmas canções que venho cantando desde sempre, ano após ano: primeiro, cantei-as como uma criança que amava tradições, no convencional banco de igreja para uma família de seis pessoas; depois, como uma jovem adulta que se dizia apaixonadamente feminista; mais tarde, como esposa e mãe, em cuja vida esses princípios inconciliáveis – o tradicional e o radical, a narrativa e a verdade – fizeram nascer, do centro de sua hostilidade, uma espécie de câncer. Quando olho para as outras famílias, consigo sentir nosso estigma, nossa falta de prestígio: somos uma caravana cigana itinerante, temporária, estacionada em meio às casas. Vejo que perdemos um grau de proteção, um grau de certeza. Vejo que trocamos uma forma de prestígio por outra, um conjunto de valores por outro, uma balança por outra. Vejo também que ficamos mais abertas, podemos receber mais do que recebíamos antes; que, se um dia o mundo se mostrar um lugar generoso, cheio de maravilhas, nós estaremos prontas para percebê-las.
Ao olhar por aquelas janelas imaginárias e iluminadas, começo a reparar que as pessoas do lado de dentro estão olhando para fora. Eu vejo as mulheres, vejo as mães e esposas olhando para fora. Elas parecem felizes o bastante, satisfeitas o bastante, capazes o bastante: estão bem-vestidas, atraentes, firmes ao lado do marido e dos filhos. Mas, enquanto olham em volta, mexem os lábios. É como se estivessem dando por falta de algo, ou se perguntando sobre alguma coisa. Eu ainda me lembro bem de como era ser uma delas. Às vezes um desses olhares passa por mim e nossos olhos se encontram. E me dou conta de que essa mulher que fixou os olhos nos meus, ela não consegue me ver. Não é que ela não queira, ou que não tente. É que do lado de dentro está tão claro, e fora está tão escuro, que ela não consegue; ela não vê absolutamente nada.
[1] Na Inglaterra, do século V d.C. até a segunda metade do século IX, sete reinos anglo-saxões dividiam o poder.
[2] Para separar Mércia do reino de Powys, o rei Offa (757-96) mandou construir um dique, que hoje marca a divisão entre Inglaterra e País de Gales.