Jorge Baron Biza, em 1943, com pouco mais de 1 ano de idade, junto dos pais: a história trágica de sua família foi a inspiração para seu único romance CRÉDITO: ACERVO DA FAMÍLIA BARON BIZA_1943
Semeando o deserto
Jorge Baron Biza e a tarefa inglória de retratar uma das grandes tragédias familiares cisplatinas
Alejandro Chacoff | Edição 204, Setembro 2023
Leia a seguir uma apresentação da vida e da obra do escritor argentino Jorge Baron Biza. Neste link, pode ser lido um trecho de seu livro O Deserto e Sua Semente.
Na cidade de Córdoba, capital da província homônima, na Argentina, se destaca o maior mausoléu do país, 14 metros mais alto do que o famoso obelisco do Centro de Buenos Aires. A estrutura de concreto – no formato da asa de um avião – foi encomendada em 1931 por Raúl Barón Biza para servir de monumento à memória de sua primeira mulher, a atriz Myriam Stefford.
Megalomaníaco e fálico, o monumento evoca menos Stefford do que o próprio Barón. Nascido em 1899, herdeiro de latifundiários que fizeram fortuna na época em que a Argentina era uma potência econômica em ascensão, Raúl Barón Biza passou sua juventude em cruzeiros mundo afora, gastando o dinheiro de sua família em festas e estadias prolongadas em Paris. Foi numa dessas viagens que conheceu Stefford, uma atriz suíça com o mesmo gosto pela vida social. Apaixonaram-se e foram morar na estancia de Barón em Córdoba. O casal desenvolveu uma paixão mútua pela aviação. Stefford colocou-se então um desafio: queria atravessar de uma vez só todas as catorze províncias da Argentina em sua pequena aeronave, Chingolo. Lançou-se à tarefa, e, depois de dois pousos de emergência e uma troca de aeronave, ela morreu ao cair no interior de San Juan, província fronteiriça à Cordilheira dos Andes (daí a homenagem anatômica do monumento).
A morte de Stefford aos 26 anos foi trágica, mas inevitavelmente se reduz a mera anedota quando se leva em conta o segundo casamento de Barón, desta vez com Rosa Clotilde Sabattini, filha de Amadeo Sabattini, famoso político progressista e membro da União Cívica Radical (UCR), cuja facção mais à esquerda Barón apoiava. (Em 1930, a UCR foi abatida do poder por um golpe militar; dois anos mais tarde, Barón foi preso sob acusação de financiar a resistência ao golpe.)
Barón e Sabattini se casaram em 1936, quando ela tinha 17 anos e ele quase 37. Ao longo da década de 1930 e 1940, e início da década de 1950, foram companheiros de luta. Em diferentes momentos, tiveram que se exilar no Uruguai e, a depender de quem estivesse no poder, foram intermitentemente punidos ou recompensados. Foram décadas de extrema instabilidade política – um momento em que a Argentina, antes vista como aspirante a potência mundial, passou a enfrentar um ambiente tumultuado de reviravoltas no poder, imagem que de alguma forma persiste ainda hoje.
O casal coincidia em algumas de suas crenças políticas, mas seus estilos de ativismo eram distintos. Apesar de ser herdeiro e ter investimentos em mineração e na produção de azeite de oliva, Barón financiava veículos de retórica marxista revolucionária, um dos quais (La Víspera) pregava a nacionalização dos meios de produção. Já Sabattini teve uma carreira mais discreta e consistente. Com especialização em pedagogia, foi professora e uma pioneira feminista de sua época. Quando Arturo Frondizi, quadro histórico da UCR, assumiu a Presidência do país em 1958, ele a indicou para o cargo de diretora do Conselho Nacional de Educação.
O casamento em si foi mais instável do que a política em que os dois estavam metidos – “um divórcio infinito”, na expressão do escritor Jorge Baron Biza, um dos três filhos do casal (que grafava o sobrenome sem acento). Foram décadas de brigas e reconciliações, idas e vindas, e o casal viveu por muito tempo separado, embora unidos no papel. Até que, em 1964, decidiram assinar o divórcio. Encontraram-se uma tarde no apartamento de Barón em Buenos Aires, na presença de advogados. A certa altura, ele se levantou para pegar um drinque, e, quando voltou, jogou um líquido no rosto de Sabattini. Era ácido sulfúrico. Horas depois, quando Sabattini estava no hospital com seu rosto desfigurado, Barón cometeu suicídio ao dar um tiro na própria cabeça. Catorze anos mais tarde, em 1978, Sabattini também se matou, pulando de uma janela.
Em 1998, decorridos quase 35 anos da agressão e quase duas décadas da morte de sua mãe, Jorge Baron Biza publicou O Deserto e Sua Semente, seu primeiro e único romance. Nele, seu alter ego Mario narra as horas, dias e anos seguintes a um ataque de ácido de Arón, pai do narrador, contra a mãe do narrador, chamada Eligia. Mario acompanha a mãe ao hospital em Buenos Aires, e depois a Milão, na Itália, onde ela se encontra com médicos que tentam reconstituir sua face.
O Deserto e Sua Semente foi recusado por diversas editoras. Talvez soe surpreendente, pois os detalhes sórdidos da matéria-prima do livro – riqueza, perseguição política, desfiguração, suicídios – dão a impressão de um best-seller já pronto. Mas, ao ler o romance, não é difícil entender as recusas. O estilo de Jorge Baron Biza é frio, desapaixonado. Sua missão mais nítida parece ser a de não se render ao potencial apelativo de sua história pessoal. Ele não se furta de descrever o rosto desfigurado da mãe, até de forma obsessiva, mas a sua prosa é contida, de alguém sempre vigilante e refratário a qualquer tipo de arroubo sentimental.
Recusar o sentimentalismo é também uma forma de recusar a violência do pai, já que frequentemente o sentimentalismo é apenas outra forma de descontrole: psicopatas choram e a empatia pouco tem a ver com lágrimas. Mas a recusa do filho não é apenas moral; ela é também literária. Além de playboy e revolucionário, Raúl Barón Biza também foi escritor, lançando oito livros e três romances em vida, o primeiro dos quais supostamente tinha uma capa com pedacinhos de prata (sob pseudônimo, escrevia resenhas favoráveis aos próprios livros nos veículos que financiava). Às diatribes pornográficas e cheias de exclamações do pai – duas delas censuradas, e uma se chamava O Direito de Matar –, o filho contrapôs seu estilo pericial e civilizado. O pai não tinha talento; o filho sim. O que não tornava mais fácil a busca do filho por se distanciar da figura do pai.
Depois de ser recusado por grandes casas, O Deserto e Sua Semente foi finalmente publicado pela pequena Ediciones Simurg, com os custos da publicação pagos pelo autor. Em 2013, porém, a editora Eterna Cadencia – mais conhecida pela livraria homônima em Buenos Aires – republicou a obra e gradualmente ela foi ganhando outro status. Edições em francês e italiano surgiram; Alejandro Zambra e Alan Pauls, entre outros, elogiaram o romance; e em 2018, a editora New Directions publicou uma versão em inglês nos Estados Unidos. No fim de setembro, a Companhia das Letras lançará a versão em português pela primeira vez, da qual a piauí publica um trecho inédito a seguir. Nada disso, porém, será apreciado pelo autor. Em 2001, Jorge Baron Biza, que tinha problemas com alcoolismo e passara boa parte de sua vida laboral como crítico de arte, escrevendo regularmente para La Voz del Interior, um jornal de Córdoba, também se suicidou pulando da janela. Seguiu os passos do pai, da mãe e de uma irmã que, anos antes, havia ingerido barbitúricos.