Um morcego poliniza uma flor, no Panamá: se o novo coronavírus veio de um morcego, cabe lembrar que, quando nos apossamos de seus nichos, eles se espalham e invadem nossos quintais CREDITO: MERLINTUTTLE.ORG_SCIENCE SOURCE
Será que entendemos?
O que a atual pandemia nos ensina sobre a nossa relação com a natureza
Kevin Berger | Edição 165, Junho 2020
Tradução de Sergio Flaksman
O cinema na minha vizinhança, que agora está fechado, tem um letreiro que diz o seguinte: “Vemos vocês do outro lado.” Gosto quando me deparo com essa frase durante a minha caminhada diária. Me faz achar que é possível uma vida depois da pandemia do novo coronavírus, coisa agora muito difícil de imaginar. Mas vai acontecer. Quando adoecemos e nos vemos internados num hospital, sozinhos e assustados, com tubos intravenosos e cabos ligando o corpo a monitores digitais, tudo o que queremos é voltar logo à normalidade. Nada parece mais importante do que tomar uma cerveja num bar mal iluminado e ler um livro sob uma luz âmbar. Pelo menos era tudo que eu queria no ano passado, quando estive internado, não infectado pelo coronavírus. Quando, em fevereiro deste ano, pude tomar uma cerveja e ler um livro num bar, senti uma felicidade profunda. O pior sempre pode passar.
Com fé, podemos nos perguntar como será a vida do outro lado. Você, pessoalmente, estará mudado? Mudaremos coletivamente? Todo o conhecimento que acumulamos agora está nos transformando em pessoas diferentes. A dor pede alívio, pede que não fiquemos repisando as suas causas. A dor desta pandemia irá apontar novos caminhos? Porque isso nunca aconteceu, como atestam todas as guerras. E, desta vez, não será diferente. Mas a pandemia inoculou o corpo público com um certo conhecimento que pode não ser fácil de reprimir. É uma visão de que cientistas e poetas vêm falando há séculos. Não estamos apartados da natureza, nós somos a natureza. O meio ambiente não está fora de nós, o meio ambiente somos nós. Ou vivemos em consonância com o meio ambiente que nos dá vida ou o meio ambiente irá acabar com a vida.
Nada pode enfatizar mais nossa união com a natureza do que a letalidade do novo coronavírus. Sua existência se deve a uma molécula onipresente na Terra há 4 bilhões de anos. O ácido ribonucleico pode não ser a primeira ponte entre a vida geoquímica e a bioquímica, como afirmam alguns cientistas, mas é um catalisador da vida biológica. Ele escreveu o livro sobre replicação. As moléculas que caracterizam o RNA, os nucleotídeos, codificam outras moléculas, as proteínas, blocos que constroem organismos. Quando entrou em cena, o DNA, esse irmão mais estável do RNA, competiu com o ancestral e o suplantou. Organismos primitivos uniram-se em células, e o DNA instalou sua oficina no núcleo de cada uma. Ele usou seus nucleotídeos para codificar proteínas capazes de compor cada tecido em cada espécie multicelular, inclusive a nossa. Como oportunista desavergonhado que é, o RNA tornou-se indispensável na fábrica de células, transportando informações do DNA para a estação de força da célula, onde as proteínas são sintetizadas.
O RNA e o DNA tinham outras funções. Podiam reduzir-se a seus nucleotídeos e enrolar-se em cápsulas viscosas de proteína. E isso lhes conferiu a capacidade de infiltrar-se em toda e qualquer espécie, sequestrar seu maquinário reprodutivo e propagar-se de tantas maneiras que até os coelhos parecem castos comparados à sua proliferação. Esses parasitas que vivem à custa dos outros têm um nome: vírus. Mas os vírus não são apenas destruidores. Também podem ostentar outro figurino evolucionário: o de pioneiros que promovem o desenvolvimento. Luis P. Villarreal, fundador e diretor do Centro de Pesquisa de Vírus na Universidade da Califórnia, em Irvine, diz que os vírus “podem ter dado origem ao sistema de replicação do DNA existente nos três domínios celulares (Archaea, Bacteria, Eukarya)”. O papel que exercem na natureza obteve tamanho sucesso que os vírus de DNA e RNA são as entidades biológicas mais abundantes do planeta. Os cientistas gostam de dizer que existem mais vírus na Terra do que estrelas no universo.
Hoje, os vírus de RNA prosperam em células como as nossas mais do que os vírus de DNA, indicando o quanto continuam impiedosos. No geral, os vírus de RNA se reproduzem mais depressa que os de DNA, em parte porque não precisam carregar um gene extra para revisar sua fusão molecular com o DNA alheio. Assim, quando o aventureiro vírus do RNA encontra uma nova residência, os organismos se convertem em tristes motéis repletos de infelizes como o da canção Heartbreak Hotel, gravada por Elvis Presley em 1956. Depois que se infiltra numa célula, o vírus do RNA barra a porta de entrada para as substâncias de resgate enviadas pelos sensores que monitoram a imunidade das células. O vírus sequestra os poderes de replicação do DNA e se espalha aos milhões, subvertendo as funções cumulativas das células. Por exemplo, a capacidade de respirar.
Nós, humanos, adoramos metáforas. Elas nos permitem comparar coisas complexas, como a infecção viral, a coisas quase banais como um sucesso de Elvis. Mas as metáforas que usamos para nos referir aos processos naturais quase nunca são precisas. A linguagem é porosa demais e incita nossas mentes antropomórficas a preencher todas as lacunas. Imaginamos que os vírus têm uma agenda, um propósito definido, e são assim impelidos a rastrear e destruir. Mas a natureza não age com intenção: ela simplesmente age. Um vírus vive numa célula como um planeta gira em torno de um sol.
Os biólogos discutem se um vírus pode ser classificado como ser vivo, pois, em si mesmo, é um peso morto; só assume vida nos outros. Mas isso supõe que a vida de um organismo independe do seu ambiente. O escritor e bioquímico Nick Lane assinala: “Os vírus usam seu ambiente imediato para criar cópias de si mesmos. Mas nós também: comemos outros animais e plantas, e respiramos oxigênio. Isole-nos do nosso ambiente, com um saco plástico cobrindo a cabeça, e morremos em poucos minutos. Pode-se dizer que parasitamos nosso meio ambiente – como os vírus.”
É devido à nossa aliança irrecorrível com o meio ambiente que estamos contraindo o novo coronavírus. Sua assinatura genômica corresponde quase perfeitamente a um coronavírus que prospera em morcegos cujos hábitats se espalham pelo planeta. Os humanos ingressaram no território dos morcegos, e os vírus dos morcegos transferiram-se para os humanos. Essa troca não é mais do que a maneira como a natureza sempre agiu e age. “A natureza vem atuando assim há 3,75 bilhões de anos, um tempo em que as bactérias combatiam os vírus da mesma forma como os combatemos hoje”, lembra Shahid Naeem, o animado professor de ecologia na Universidade Columbia, onde dirige o Centro de Desenvolvimento Sustentável do Instituto da Terra. Se for o caso de atribuir culpa, ela estará em nossa paupérrima compreensão coletiva da ecologia.
Os organismos evoluem por meio de traços adaptativos singulares. Os morcegos desempenham muitos papéis ecológicos. Polinizam, espalham sementes e contêm pragas. Não morrem do mesmo coronavírus que mata os humanos porque a anatomia do morcego consegue empatar com o vírus, neutralizando sua atuação letal. E qual é o problema do sistema imunológico dos humanos? É que não voamos. “Os morcegos são mamíferos voadores, o que é muito incomum”, diz Christine K. Johnson, epidemiologista no Instituto One Health da Universidade da Califórnia, em Davis, que estuda o chamado transbordamento zoonótico, fenômeno em que o vírus “salta” dos animais para os humanos. “Os morcegos, quando voam, atingem temperaturas corporais muito altas. Então, para se adaptarem a essas temperaturas, eles desenvolveram características imunológicas que os humanos não possuem.”
Uma invasão viral pode provocar uma resposta química exagerada por parte do sistema imunológico dos mamíferos, um fenômeno que tende a resultar em uma inflamação excessiva dos tecidos. A citocina, uma pequena proteína que organiza as respostas celulares a invasores externos, pode ser estimulada além da conta por um agressivo vírus de RNA, provocando uma resposta explosiva como uma “tempestade” que, por sua vez, destrói as funções normais das células – processo que os médicos documentaram em muitos casos fatais de coronavírus. Os morcegos contam com mecanismos genéticos que inibem essa reação excessiva. De maneira similar, o voo do morcego requer uma taxa metabólica aumentada. Sua ação de bater as asas produz altos níveis de radicais livres de oxigênio – um subproduto natural do metabolismo – que podem danificar o DNA. Segundo um estudo de 2019 publicado na revista Viruses, “é provável que os morcegos tenham desenvolvido mecanismos capazes de suprimir a deflagração da resposta imunológica ao DNA danificado pelo voo, levando assim a uma inflamação atenuada”.
Os morcegos não têm um sistema imunológico melhor que o dos humanos; os sistemas são apenas diferentes. Nosso sistema imunológico evoluiu para dar conta de muitas coisas, mas não o voo. Os humanos convivem bem com o fungo Pseudogymnoascus destructans, que é comum nas cavernas e produz a “síndrome do focinho branco”, que devasta morcegos no mundo inteiro. O problema começa quando invadimos, precipitadamente, hábitats da vida selvagem sem o devido respeito pelas diferenças. (Problema para nós e para outros animais. A síndrome do focinho branco espalhou-se em parte por meio dos calçados e roupas dos frequentadores de cavernas, que os transportaram de um ponto a outro.) Cavamos minas em busca do ouro, criamos loteamentos e derrubamos florestas para cultivar alimentos. Nos apoderamos dos hábitats de outros animais.
Nossa mente moralista teima em enxergar represálias. O carma. Uma irrupção viral é a ira da natureza, que despertamos ao expulsar animais de casa com nossos tratores. Não é assim. “Não violamos qualquer lei evolucionária ou ecológica, porque a natureza é indiferente ao que fazemos”, diz Naeem. Reformar o mundo para nos acomodar é só nossa forma de existir como animais que somos. “Se tivesse a oportunidade, qualquer espécie transformaria o mundo naquilo que deseja”, diz Naeem. “Aves fazem ninhos, abelhas constroem colmeias, castores erguem represas. A isto se dá o nome de construção de nicho. Se os gatos domésticos dominassem o mundo, transformariam o mundo à sua imagem. Espalhariam bandejas de areia para dejetos por todos os lugares, povoariam tudo com muitas aves, muitos pequenos roedores e muitos peixes.”
Mas a natureza não é uma terra idílica com aldeias animais construídas pela evolução. As práticas de construção de nicho pelas espécies sempre puseram umas em contato com as outras. “A natureza é regida por processos como a competição, a predação e o mutualismo”, diz Naeem. “Alguns são positivos, outros são negativos, e outros, neutros. E isso também se aplica às nossas interações com o mundo microbiano, inclusive os vírus, que vão de superbenéficas a supernocivas.”
No fim das contas, a natureza acaba promovendo uma trégua. “Se a flor fornece ao colibri menos açúcar, o colibri não vai conseguir polinizá-la”, diz Naeem. “Se o beija-flor suga todo o néctar e não se desincumbe adequadamente da polinização, esta também será prejudicada. Através desse tipo de toma lá dá cá, as espécies vão forjando a maneira ideal de interagirem na natureza. A evolução acaba encontrando um meio-termo.” Naeem faz uma pausa. “Se você tentar chicotear todo mundo, simplesmente não vai dar certo.”
E adivinhem qual espécie quer resolver tudo na marra? “Nunca houve no planeta qualquer espécie que tenha tido uma capacidade equivalente à nossa para modificar seu nicho”, continua Naeem. Nosso nicho – as cidades, as plantações, as fábricas – transformou o planeta numa densa Manhattan zoológica. Viver em intensa proximidade com outras espécies e seus vírus significa que convivemos com elas ombro a ombro. Viver em aglomeração não é para todos. Mas uma economia global, sim. E, junto com ela, vem todo um sistema de transporte internacional. Um vírus não tem nacionalidade. Tanto pode viajar do Arkansas para a China como vice-versa. Uma pandemia é a decorrência inevitável do nosso nicho modificado.
Embora a natureza não pratique represálias, nossos entrechoques com ela têm consequências recíprocas. Ainda não se mapeou com precisão a rota da transmissão do Sars-CoV-2 do morcego para os humanos. Será que o vírus foi transmitido diretamente a alguém que manipulou um morcego? Ou houve um animal intermediário? O que está claro é o primeiro passo: um morcego excretou o vírus de alguma forma. Christine K. Johnson, a epidemiologista da Universidade da Califórnia, em Davis, explica que os morcegos excretam vírus pela urina, pelas fezes e pela saliva. Podem urinar numa fruta ou morder um pedaço dela, e depois deixá-la cair no chão, onde outro animal irá comê-la. O surto do vírus de Nipah entre 1998 e 1999 originou-se num morcego que deixou para trás uma fruta que, por sua vez, entrou em contato com humanos e porcos domésticos. O mais provável é que as irrupções de ebolavírus no início da década de 2000, na África Central, tenham começado quando um macaco, prestes a converter-se em caça para consumo humano, teve contato com algum resto de comida de morcego. “A mesma coisa aconteceu com o vírus de Hendra na Austrália, em 1994”, explica Johnson. “Cavalos foram infectados porque morcegos frugívoros viviam nas árvores próximas a uma fazenda de criação de equinos. Espécies domesticadas são muitas vezes as intermediárias entre morcegos e humanos, e amplificam a infestação de vírus antes que ela chegue aos humanos.”
Apossar-nos de nichos de morcegos faz com que eles se espalhem – invadindo nossos quintais. Num estudo divulgado no mês de abril, Johnson e colegas mostram como o maior risco de transbordamento zoonótico ocorre entre espécies animais, especialmente vindo dos morcegos, pois eles expandiram sua área de alcance para paisagens geridas por humanos devido à urbanização e à expansão das lavouras. “As maneiras como alteramos a paisagem trouxeram muitas consequências para as pessoas”, diz Johnson. “Mas exerceu maior pressão adaptativa sobre as espécies silvestres, e algumas delas se adaptaram mudando-se para os lugares que habitamos.”
A pressão sobre os morcegos tem outras consequências. Estudos indicam que o estresse fisiológico e ambiental pode fazer com que os morcegos aumentem a replicação viral, levando-os a excretar uma quantidade de vírus bem maior que a normal. Um estudo, elaborado pela pesquisadora Christina M. Davy e outros treze cientistas, mostrou que morcegos com a síndrome do focinho branco tinham “sessenta vezes mais coronavírus nos intestinos” que morcegos não infectados. Outro estudo, publicado na revista Viruses em 2019, informa que, apesar dos indícios de um aumento da replicação e da excreção viral em morcegos estressados, “uma associação direta com o transbordamento ainda não foi demonstrada a contento”. Mas pode-se afirmar com segurança que expulsar perpetuamente os morcegos de suas cavernas e levá-los a se instalar em nossos celeiros não é a situação ideal para nenhuma das duas espécies.
Quando esgotei minhas perguntas para o professor Naeem, pedi-lhe que lançasse, para mim, uma luz ecológica definitiva sobre essa horrenda pandemia.
“Nós nos imaginamos resilientes e robustos, mas uma coisa como esta acaba sendo necessária para percebermos que continuamos a ser uma entidade biológica não totalmente capaz de controlar o mundo à nossa volta”, ele respondeu. “Nosso sistema social se desconectou a tal ponto da natureza que não entendemos mais que fazemos parte dela. Ar respirável, água potável, lavouras produtivas, um meio ambiente estável – tudo isso ocorre porque fazemos parte desse sistema sofisticado, a biosfera. Agora sofremos as consequências ambientais, como a mudança climática, a perda da segurança alimentar e surtos virais, porque não sabemos mais como harmonizar nossos esforços com a natureza.”
Um estudo de 2014, produzido por uma série de ecologistas da vida silvestre, economistas e biólogos especialistas em evolução, apresenta um plano para barrar a maré de doenças infecciosas emergentes, em sua maioria originárias da vida silvestre. Os casos de novas doenças infecciosas praticamente quadruplicaram desde 1940. Os líderes mundiais poderiam ter tomado providências. Poderiam ter contribuído com dinheiro para uma pesquisa sobre o transbordamento zoonótico entre espécies, capaz de identificar centenas de milhares de vírus presentes em animais e com letalidade potencial. Poderiam ter coordenado os preparativos para uma pandemia, com a adoção de regras sanitárias mundiais. Poderiam ter dado apoio à conservação animal criando barreiras que os pioneiros do desenvolvimento não podem atravessar. Os cientistas nos dão 27 anos para reduzirmos em 50% o crescimento das doenças infecciosas. Depois disso, o estudo não nos informa como será o mundo. Imagino que irá lembrar um hospital de Nova York nos dias de hoje.
Há pacientes deitados em macas pelos corredores, enrolados em lençóis, os rostos cobertos por respiradores. Aparecem cercados de médicos e médicas, enfermeiras e enfermeiros que tentam desesperadamente reanimá-los. Na dor, no desconsolo e na solidão. Sei perfeitamente que não desejam mais que rever suas famílias e seus amigos do outro lado, sair do hospital numa cadeira de rodas e se sentir novamente normais. Mas conseguirão? Conseguirão outros no futuro? Uma vontade política imensa será necessária para evitar a próxima pandemia. E precisa partir de uma reavaliação da nossa relação com a natureza. Aquele pequeno colar de RNA que hoje devasta os pulmões dos hospedeiros é o mundo em que vivemos. Em que vivemos desde sempre. Não podemos nos apartar do meio ambiente. Quando vejo o sofrimento nos hospitais, só sei perguntar: Será que agora entendemos?
Texto publicado originalmente na revista Nautilus
Tradução de Sergio Flaksman
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